segunda-feira, 29 de novembro de 2010

2413) Um Morcego na Porta Principal (28.11.2010)




Vi na TV a cabo este documentário sobre Jards Macalé (direção de Marco Abujamra e João Pimentel), que vem, não sei se por coincidência ou colateralidade, na esteira de vários outros trabalhos sobre artistas ligados ao Tropicalismo, como é o caso de filmes sobre Tom Zé e Os Mutantes. 

Macalé foi ligado ao Tropicalismo – mas do mesmo jeito que Tom Zé, outro grande bloco-do-eu-sozinho, também foi. Macalé é um sujeito imprevisível, personalista no bom sentido, que dança conforme a própria música. 

Como se sabe, existe Artista Bumbo e Artista Tarol. 

Artista Tarol é aquele que chama uma atenção danada, fazendo solos e floreios, exibindo-se, arrancando aplausos. Artista Bumbo é o que quase não aparece, mas é ele quem dita o ritmo. 

O Artista Tarol é muito bom para fazer enfeites, mas se entregue a si próprio perde o rumo porque não tem uma idéia muito clara de quem é nem pra onde está indo. Em geral, produz melhor se tiver ao lado um Artista Bumbo, que fica meio fora dos holofotes, ajudando o outro a se exibir, e mandando recados telepáticos: “Agora acelera. Agora retarda. Agora um breque. Agora samba. Agora maracatu”.

E há os que são Bumbo e Tarol de si mesmos, como Jards Macalé, que já foi hippie tropicalista, sambista de breque à Morengueira, cirurgião de dor de cotovelo, semi-roqueiro pop com tempero da Zona Norte... faltam rótulos. Numa única vida já teve mais encarnações do que certas socialites tiveram em vidas passadas. 

O filme reúne um bom material de arquivo com áudios e vídeos raros, de uma época em que fazer audiovisual custava uma gruta de Aladim, e o edita com depoimento dos companheiros de geração do Morcego.

Vi ou revi imagens de palco em que Macalé, debruçado sobre o violão, ronca, se esguela, rasga um rugido lá das entranhas da garganta, soluça e balbucia: trinta anos atrás ele fazia o que tempos depois consagrou Tom Waits diante do microfone. 

O violão de Macalé parte de um refinamento harmônico quase erudito para uma vigorosa desconstrução quase punk, de batidas e pancadas, lapadas e rasqueios sem intenção caligráfica. O filme dá uma boa ideia dos muitos e surpreendentes lados do parceiro de Waly Salomão nas canções de “morbeza romântica”. Fico pensando que os garotos punk de hoje, que torcem o nariz para a caretice do samba e da MPB, se vissem Macalé por inteiro concederiam: “Esse aí não, esse aí é maneiro”.

Com as gravadoras, principalmente, a personalidade de Macalé sempre foi angulosa e cheia de arestas, arriscada de conviver muito de perto ou durante muito tempo. Como todos os grandes individualistas, veste o próprio personagem 24 horas por dia, e quem não gostar que se explôda. Diz na cara o que lhe dá na telha, não costuma abaixar o queixo nem diminuir a voz. 

Como tantos outros artistas chamados de maldito, na verdade é maldizente, nunca teve papas na língua nem cardeais no Vaticano. Bolerista elétrico? Bossa Nova trash? Trópico-dadaísta? Faltam rótulos.






2412) Passeio num Lugar Público (27.11.2010)




Foi graças a Lula & Chico Pereira que, em 1967, entrei em contato com a obra de José Agrippino de Paula, o escritor pop-existencial-tropicalista (minha Nossa Senhora, como esses rótulos são insuficientes) que é uma espécie de 29 de fevereiro na nossa literatura – tem horas que existe, tem horas que não. 

Agrippino é mais conhecido pelo seu livro Panamérica (1967), mas o que li naquela época foi seu primeiro romance, Lugar Público (1965), que num certo sentido é superior ao livro mais conhecido. 

Na época, a Revista Civilização Brasileira (uma espécie de bíblia mensal dos jovens intelectuais de esquerda, em cujas fileiras eu era doido para entrar) promoveu um debate sobre literatura com meia dúzia de escritores, enviando para todos as mesmas perguntas. 

Do que foi respondido só me lembro de uma frase de Agrippino: “Para mim tanto faz começar um livro pela primeira página quanto pela última”. Tipo isso.

Lendo Lugar Público fiquei sabendo por que. O livro é um romance fora-de-esquadro em que cada parágrafo é uma unidade solta, independente dos demais. Cada vez que ele faz ponto-parágrafo, saltamos para outro espaço e outro tempo. 

O que nos desnorteia é que graficamente os parágrafos se sucedem como os de um livro normal ou os deste artigo. Se estivessem separados por vinhetas, ou numerados, o desnorteamento seria diferente, e menor. O modo como ele corta de um parágrafo para o próximo lembra o jeito como Godard usava um corte brusco em pontos onde no cinema tradicional se usaria uma transição lenta (fusão, escurecimento e clareamento, etc.).

Há parágrafos de duas linhas e parágrafos de muitas páginas. Vários deles retornam ciclicamente, inclusive alguns com visões surrealistas tiradas de quadros de Hieronymus Bosch. 

Na maior parte do tempo, a história acontece numa cidade asfixiante, tenebrosa e opressiva, espécie de antologia das áreas mais boca-do-lixo e fuliginosas de São Paulo, e mostra as perambulações de um grupo de intelectuais com nomes como Pio XII, Péricles, Napoleão, Galileu, Bismarck... 

Os personagens são meio sem rosto e quase intercambiáveis, por trás desses nomes de gente famosa. Há um narrador na primeira pessoa que às vezes parece um personagem constante, às vezes parece um dos que são nomeados nos outros trechos.

A prosa de Agrippino (e em Panamérica isto é ainda mais intenso) é uma prosa meio autista, de quem contempla e descreve tudo sem envolvimento afetivo e sem ligar muito para o que ocorre. Uma linguagem gravador-e-câmara muito diferente da que o “nouveau roman” francês praticava. 

O que talvez mais impressione é percebermos que há pessoas que vivem assim, que veem as coisas assim, que pensam assim. Mais distanciados e estranhados do que qualquer brechtiano radical. 

Se o livro de Agrippino se intitulasse Relatório Coletivo de Alienígenas Amnésicos Naufragados no Planeta Terra, poderia ser lido e interpretado como um dos clássicos da FC brasileira.











2410) O Politicamente Correto (25.11.2010)




O quer significa ser “politicamente correto”, esta expressão tão em moda? É curioso como em poucos anos um rótulo passa de elogioso a ridículo. Existe alguém, hoje em dia, que afirme publicamente que age de tal ou tal maneira porque é politicamente correto? Deve existir, porque afinal o mundo é grande; mas o desgaste desta expressão, pelo menos na sociedade onde vivo, parece em certas horas ser maior do que o mundo.

A utilização consciente e sistemática do termo é uma coisa (me parece) do ambiente acadêmico, de esquerda, norte-americano. (Sim, o marxismo não morreu. Está vivinho da silva no interior da Tróia para onde se infiltrou na calada da noite. Fermenta nos cursos estruturalistas, nos programas de ação afirmativa, nas cadeiras que estudam o feminismo, a política do corpo, a semiótica de classe, a cyber-escravidão, a dialética do desejo, da submissão e do poder.) Surgiu como uma tentativa de resposta intelectual, argumentada, teorizada, às atitudes de menosprezo ou preconceito contra as mulheres, os negros, os gays, os índios, os imigrantes, os portadores de deficiência e outras minorias.

A teoria por trás disto é de que as estruturas de poder em nossa sociedade se exercem em função de uma ideologia produzida por e para uma minoria dona dos meios de produção, masculina, branca, heterossexual, patriarcal, de classe média para cima e (no caso específico dos EUA) de origem anglo-saxã e religião protestante. As minorias citadas antes são, no contexto dessa ideologia, grupos subalternos, que obedecem porque têm juízo. O mundo não foi feito para eles. Melhor ficarem caladinhos, sem reclamar, se não serão mandados embora do mundo.

O Politicamente Correto se revoltou contra esta situação e inverteu os estatutos de comportamento. Note-se que a expressão não é, p. ex., “moralmente, ou eticamente correto”. A inspiração dessa atitude é uma inspiração política, de trazer para perto de si os “partidos” pequenos de oposição, inexpressivos numericamente, mas, se agrupados numa aliança política, com poder-de-agito bastante para fazer uma diferença no jogo político. Foi isto que acabou por desgastar o rótulo. Porque muitos norte-americanos brancos que defendem os índios ou os negros na verdade não morrem de simpatia por eles nem pelo destino deles. Defendem-nos porque é politicamente correto, ou seja, é politicamente útil defendê-los.

Os membros de uma minoria desprestigiada (os “paraíbas”, p. ex.) sabem quando alguém sente uma simpatia natural e instintiva por eles, quando alguém não se julga superior a eles – por ter uma índole igualitária, ou por um princípio ético permanente. E sabe quando esse “alguém” se julga superior a eles mas não os ofende porque seria taticamente reprovável ofendê-los (ou seja, dizer o que realmente pensam); não seria politicamente correto, não seria politicamente útil. O membro da minoria ergue o rosto, cruza o olhar com ele e pensa consigo: “Esse aí, não”.