sábado, 30 de outubro de 2010

2387) Os autistas voluntários (30.10.2010)



Greg Egan, um dos grandes escritores da FC de hoje, colocou um capítulo sobre o autismo em seu romance Distress (1995). O tema do livro é outro, e o autismo só aparece no capítulo 6, numa entrevista feita pelo protagonista, um jornalista investigativo. Ele dá voz a um personagem, James Rourke, pertencente a um grupo chamado Associação dos Autistas Voluntários (a história se passa em 2055). Nesse futuro hipotético, foi descoberta uma área do cérebro chamada “área de Lamont”, e se postula que o autismo resulta de uma lesão produzida nessa área por uma variedade de razões. O mais interessante do caso, no entanto, é a existência da própria associação. Descobertas as causas do autismo, esses autistas não querem ser curados. Preferem permanecer do jeito que são.

Diz James Rourke que a mente humana desenvolveu ao longo de milênios de evolução uma capacidade para compor modelos das outras mentes. Somos capazes de imaginar o que os outros estão pensando ou sentindo. Somos capazes de nos identificar com esses sentimentos, desenvolvendo um senso de intimidade, ou de empatia. A evolução foi fortalecida pelos laços monogâmicos que os homens criaram com suas companheiras. Intimidade, empatia e amor são três aspectos básicos do nosso quadro de valores emocionais.

O que ocorre quando um indivíduo – um autista – é incapaz de produzir esses modelos de outras mentes? Segundo o personagem, esse talento não passa, na verdade, de um talento para a auto-ilusão. As pessoas na verdade não sabem o que as outras pensam ou sentem: elas apenas imaginam saber. E como é necessário, por razões evolutivas, que sejamos capazes de manter essa ilusão, que “dá liga” a nossa vida em grupo, somos condicionados a achar que somos capazes de empatia e de compreensão, mesmo quando encontramos provas e mais provas de que isso não ocorre. Mas precisamos dessa ilusão para que a espécie continue evoluindo.

Os Autistas Voluntários do livro não querem alimentar essa ilusão. Eles consideram que não sabem e nunca saberão, intuitivamente, o que se passa nas mentes alheias, e que só podem se relacionar com outras pessoas através de processos mais formais e explícitos, como a linguagem verbal. Para eles, continuar autista é uma recusa a deixar-se enganar. E Rourke faz uma provocação final, ao comparar os Autistas Voluntários com os transexuais. Diz ele que nossa sociedade acha que é justo uma pessoa mudar de sexo para que seu corpo corresponda à sua imagem mental de si mesma. Por que então proibir que pessoas acostumadas a interagir sem emoções, sem empatia, sem intimidade com as outras, mantenham essa condição? Será que mudar de sexo é normal, mas não ter empatia é uma anomalia que precisa ser curada? Um autista pode viver sem abraços, sem olho-no-olho, sem demonstrações de afetividade e ainda assim ser querido e respeitado pelas outras pessoas, e sentir-se em paz consigo mesmo. Por que motivo a sociedade quer lhe negar este direito?