quarta-feira, 15 de setembro de 2010

2347) A Hora do Homem (15.9.2010)



No ensaio “The Hour of Man”, Henry Miller comenta trechos da um ensaio homônimo publicado em 1951 por seu amigo Walker Winslow, que, como ele próprio, se horrorizava com o grau de despersonalização, frieza e indiferença que a sociedade industrial consumista (“o Pesadelo com Ar Condicionado”) impõe às pessoas. 

A certa altura, diz Winslow: 

“Eu gostaria de ver o rádio e a TV serem desligados durante uma hora por semana, a revista e o jornal jogados no chão, o carro trancado na garagem, a mesa de churrasco dobrada, a garrafa de bebida arrolhada, os sedativos mantidos dentro das embalagens. Gostaria de ver tanto a produção quanto o consumo de coisas sendo suspensos durante uma hora. A política seria esquecida, fosse nacional ou internacional. 

Essa hora que proponho se chamaria A Hora do Homem. Durante essa hora, os homens se interrogariam, e aos seus vizinhos, sobre o propósito de sua presença na Terra, sobre o que é a vida, sobre o que um homem e uma mulher têm o direito de pedir à vida, bem como o que têm para oferecer em troca.” 

Miller endossa esse sonho quimérico do amigo, lembra que nos países islâmicos os fiéis são convocados para rezar em uníssono cinco vezes por dia. E ele diz: 

“Arrisco-me a dizer que se esse procedimento viesse a ser adotado, iríamos receber da boca das nossas crianças as observações e sugestões mais sagazes , mais práticas e mais fecundas”. 

O que me chamou a atenção no texto – e despertou uma associação de idéias imprevista – foi que ele me lembrou, por vias transversas, um detalhe de um livro de ficção científica de Clifford Simak, O Planeta de Shakespeare (1976). 

Nesse romance insólito e humanista, um astronauta se vê naufragado num planeta semideserto, onde descobre vestígios de um náufrago anterior, que tinha consigo livros de Shakespeare. Ele percorre o planeta, passa por várias aventuras, mas a mais estranha delas é uma espécie de visão psicodélica que o ataca de maneira imprevisível, aleatória. 

Em alguma hora do dia ou da noite, sem aviso prévio, ele sente sua mente sendo invadida por uma torrente avassaladora de emoções indizivelmente grandiosas, emoções que o transportam para um estado de êxtase e beatitude que ele não tem palavras para descrever. Quando aquilo passa (e às vezes dura minutos, às vezes horas inteiras), ele está exausto mas gratificado, porque se sentiu em contato com alguma força poderosa e benéfica, mesmo que inexplicável. 

Ele sente que aquele influxo de emoções é produzido à distância por algum ser que “varre” o planeta ao acaso como a luz de um farol varre o espaço, e quando por coincidência ele está no trajeto dessa “luz”, o fenômeno acontece. E o personagem chama aquilo A Hora de Deus. 

O mais interessante é que a Hora de Deus, de Simak, é uma bela alegoria poético-científica do que talvez sentíssemos se a modesta e possível Hora do Homem, de Miller e Winslow, fosse posta em prática. Mas sendo o mundo o que é, ambas me parecem igualmente impossíveis.