sábado, 7 de agosto de 2010

2314) O certo e o errado (7.8.2010)



O fato de que “2 + 2 = 4” exprime a tendência da Natureza a apresentar padrões e relações invariáveis. As quantidades são objetivas; o número é subjetivo. É a mente humana quem cria esse signo em comum entre dois pássaros, duas palavras ou dois dias. O número é uma abstração para ordenar coisas concretas. Quando começamos a conceber níveis mais rarefeitos, como a raiz de menos 2, é que entramos no terreno dos números que não pertencem à Natureza, mas apenas à Cultura. Números que já são mera linguagem, não exprimem coisas. É como a passagem da pintura figurativa para a pintura abstrata.

Já o Bem e o Mal, o Certo e o Errado... Jorge Luís Borges contou um episódio que ilustra bem este conceitos tão elusivos. Num clube chique de Buenos Aires um homem, numa noite de jogatina, perdeu tudo quanto tinha. No dia seguinte, recusou-se a pagar a dívida, alegando que não podia jogar a família na miséria por causa de uma noite de loucura. Borges comenta com sarcasmo a reação horrorizada dos outros cavalheiros portenhos, que passaram a tratar esse indivíduo “como se fosse um leproso”. Para eles, a palavra dada e o compromisso assumido num contexto entre “gentlemen” eram mais importantes do que o destino da pobre família, porque “não observar as dívidas de honra seria cair no anarquismo”.

Existe uma certa lógica no comportamento desses cavalheiros, se quisermos levar em conta apenas as relações matemáticas envolvidas na questão. Um jogo envolve sempre uma disputa entre habilidades matemáticas em que, como se trata de um processo quantitativo, é sempre possível refinar os números até alcançar um desempate. Se os amigos de Borges jogavam roleta, estão disputando a capacidade de prever o comportamento de um elemento aleatório. Se jogavam baralho, estão disputando quem é capaz de realizar combinações mais bem sucedidas com elementos (as cartas) recebidos aleatoriamente. A fascinação matemática que tais atividades despertam em pessoas com esse tipo de mentalidade é enorme. Tão enorme que em muitos momentos deixam em segundo plano coisa como família, filhos, posses, etc.

O Bem e o Mal não são leis da natureza, são construções artificiais inventadas pelos seres humanos. Mas acabaram se revelando úteis, tão úteis quanto os números. O Bem e o Mal não existem num mundo sem seres humanos. Fomos nós que criamos esses conceitos, como criamos os conceitos de Norte e Sul como direções. (Eles existiam apenas como polos magnéticos da Terra; usá-los para orientar-se é criação humana, é Cultura).

O que é mais importante, honrar uma dívida de jogo e mandar a própria família para a miséria, ou dizer “não pago, e pronto”? A resposta a um problema como este define duas formas de cultura bem diferentes. Não chegarei ao ponto de dizer que uma está certa e a outra errada, porque se aderirmos cegamente a qualquer uma das duas vamos ter problemas. Mas são um Norte e um Sul, para quem quiser ver.