quinta-feira, 1 de julho de 2010

2215) Ver o invisível (14.4.2010)





No seu famoso romance O Homem Invisível (1897), H. G. Wells conta a história de um cientista que descobriu uma maneira de reduzir de tal modo o índice de refração e reflexão da luz num objeto material que os raios luminosos passam através dele sem sofrer alteração; isso faz com que o objeto continue existindo ali, sólido, concreto, perceptível ao tato – mas invisível. Claro que uma das primeiras coisas que Griffin, o cientista, acaba fazendo é submeter o próprio corpo a esse processo e ficar invisível também. Por conveniências narrativas, ele sofre uma série de contratempos e não consegue reverter o processo. Continua invisível, mas aí não consegue mais se relacionar com ninguém, porque as pessoas se apavoram diante daquela “Voz” sem corpo. O que faz Griffin, para poder andar na rua, fazer compras, relacionar-se com o mundo? Veste roupas, usa luvas, põe um nariz artificial, barbas postiças, óculos, peruca, chapéu. De nada lhe serve ser invisível. Para poder viver normalmente, ele precisa cobrir-se de acessórios visíveis.

Jorge Luís Borges, um grande admirador de Wells, elogiava nos livros deste, mais do que as mensagens humanistas ou a crítica social, a infinita plasticidade dos símbolos que utilizava. Para Borges, o homem invisível é uma metáfora da solidão, da invisibilidade que todos nós experimentamos em algum momento da vida. Existe alguém mais invisível do que um sujeito tímido num restaurante cheio? Ele acena para os garçons, que só faltam mesmo passar através dele, cruzam por ele com o olhar perdido lá adiante, sem perceber suas tentativas náufragas de fazer contato. Existe alguém mais invisível do que um sujeito sem crachá diante de um segurança? Existe alguém mais invisível do que um sujeito mal vestido, do que um mendigo?

A invisibilidade de Griffin pode servir também como metáfora para o Mito. O Mito é uma narrativa que satisfaz uma necessidade profunda das sociedades humanas. As pessoas têm uma carência de que algo aconteça no presente ou tenha acontecido no passado. Essa necessidade é algo sem nome e sem forma, mas é poderosa e real, embora invisível. Para satisfazê-la precisamos recobri-la com coisas visíveis, que são as histórias que contamos, histórias que adquirem a forma dessa necessidade: o mito de Édipo, o mito de Caim e Abel, o mito de Dom Sebastião. Cada uma delas é a vestimenta de algo invisível.

Outra implicação da história de Wells é a relação entre o Inconsciente e suas manifestações conscientes. O Inconsciente, por definição, é invisível. Existe mas não pode ser percebido, ou melhor, só pode ser percebido através de suas interferências em nossa mente consciente, interferências que Freud identificou nos sonhos, atos falhos, traumas, fantasias, etc. Assim como o homem invisível precisava de cobrir de elementos visíveis para mostrar onde estava, o Inconsciente precisa cobrir-se de reações conscientes para indicar o que quer.

2214) O ofício do crítico (13.4.2010)



(Wilson Martins)
 

O jornal literário Rascunho, de Curitiba, prestou em seu número de março uma homenagem ao crítico Wilson Martins, falecido no final de janeiro. 

Wilson foi um grande “livre atirador” da crítica literária, à qual procurou impor critérios que me parecem os melhores para avaliação não apenas dos clássicos, mas dos novos autores que surgem a cada ano. Extraio do artigo de Rodrigo Gurgel um trecho do mestre, sobre o ofício que exerceu. 

“A crítica que fazemos hoje [dizia WM], como a ciência que hoje realizamos, não são necessariamente melhores que as dos nossos antepassados; e se de fato temos motivos para julgá-los melhores, a explicação deve ser outra que a idéia, supremamente discutível, de que nos encontramos num pináculo. (...) Não é com ilusões desse porte que se pode estabelecer nem uma sólida ciência nem uma crítica sólida.” 

Para muitas mentes isto pode parecer um contra-senso – será possível, então, que nossa visão crítica da literatura ainda esteja no mesmo estágio em que estava cem anos atrás? Duzentos, quinhentos anos atrás? Então de nada adiantou o estudo das línguas, dos estilos, dos gêneros, as descobertas estruturais, psicológicas, narrativas? Continuamos tão ignorantes quanto os nossos antepassados? 

Este receio infundado ocorre para os que têm uma visão evolutiva da cultura e acham que a cultura, com o passar do tempo, atinge estágios superiores de desenvolvimento. É uma verdade apenas parcial. Claro que os últimos cem anos produziram uma quantidade assombrosa de instrumentos críticos para analisar obras literárias. Esses instrumentos surgiram como eco ou reflexo de descobertas feitas em outras áreas (psicologia, linguística, etc.) ou então como respostas da crítica literária a obras que a inquietaram, e a forçaram a criar novos parâmetros. (Ou pelo menos é assim que eu vejo esse diálogo: a obra expande a literatura, a crítica recria-se a si própria para poder assimilar essa literatura expandida.) 

Eu, por exemplo, tenho os meus instrumentos críticos para apreciar a literatura, e não os troco pelos instrumentos de que dispunha (por exemplo) Machado de Assis. Não porque julgue os meus necessariamente superiores aos dele, mas porque os meus me servem para ler a literatura do meu tempo (e qualquer outra) dentro do meu mundo. 

Literatura e crítica, num aspecto, se equivalem: ambas são parte do mesmo caldo espesso de idéias, imagens, e conceitos que nos ajuda a entender o mundo em redor. Cada época tem seu caldo específico. 

Um sujeito como eu, hoje em dia, estuda as obras literárias que lê comparando-as a filmes, canções populares, programas de TV, sei lá que mais. Tudo isto se articula à literatura. No tempo de Machado, a literatura era justaposta aos clássicos gregos e latinos lidos no original, à ópera, etc. O mundo das idéias pulsa e transforma-se, expande-se e encolhe, evolui e involui, muda o tempo inteiro. Não estamos num pináculo, estamos apenas no centro de nós mesmos.





2213) Contracapa de Kindlebook (11.4.2010)



& onde andará o charuto que o Viajante no Tempo mandou para o futuro? & vivo fazendo malabarismo com três bolas de bilhar, uma pena, uma xícara cheia de café e um jornal & eu penso dez vezes antes de tomar uma decisão e são dez coisas diferentes & é o tipo do cara que picha frases de protesto na parede do próprio apartamento & metralhadora com console de game embutido na coronha & o melhor instrumento é o piano, basta clicar nas notas prontas & quando o primeiro bisão foi desenhado na caverna os conceitos de verdadeiro e falso perderam todo o sentido & tem coisa que cabe num copo e vale mais que um oceano & uma rabeca parece mais com uma pessoa do que com um violino & uma chave em brasa enfiada na fechadura & um sarau de perucas, espinetas, librés, candelabros e caninos ensanguentados & uma cápsula do tempo em que fosse impossível entrar ou sair mas os viajantes pudessem ver e ser vistos & casamento é um carro com dois volantes & deve fazer uns dez anos que nenhum poeta brasileiro descreve um pôr-do-sol & no Juízo Final será descoberto que os personagens de livros e filmes também tinham almas imortais & na velhice a gente abandona os juízos de valor e se consola comparando estatísticas & eu lhe enrasco com um ser onipotente, onisciente, onipresente e sempiterno & quando Robinson Crusoe viu aquela pegada na areia pensou: “tava bom demais pra durar” & uma civilização de alquimistas nos esgotos da metrópole transformando merda em chumbo e enviando-o para que os da superfície o transformem em ouro & e tem a mulher spam, aquela que sai se oferecendo a todo mundo porque um dia alguém clica & um cravo-bem-temperado tocando sozinho no estacionamento do shopping & um dado com um hexagrama em cada face & dizem que o melhor remédio para gagueira é mandar fazer chá de ipecacuanha & ainda hoje não sei se para um trem os trilhos representam liberdade ou opressão & um ilusionista que fazia desaparecer o dinheiro do bolso dos espectadores & certas democracias são como um aeroporto com movimento de check-in e lojas, mas sem aviões partindo e chegando & uma mulher usando uma barba falsa para não ser reconhecida & granizo de meteoros, crisólitos em pepitas chuveirando do céu & ao entardecer, a vela da jangada era uma lua em quarto crescente pousada no verde do mar & era um lambe-lambe mambembe, uma trupe mulambenta e carroceira anunciando o Paraíso Final & sair na rua num escafandro com ar condicionado & mais difícil do que uma corrida é uma caminhada de obstáculos & um país de bandeira transparente, e de um hino sem versos e sem sons & o perigo é o que ocorre nos terrenos baldios da imaginação depois que a lógica apaga a luz & um personagem como um poliedro irregular, cada face um polígono diferente & é o tipo do jogador que basta receber a bola para quedar-se pensativo & só inspira respeito e lealdade quem é capaz de inspirar um pouco de medo &

2212) Ao vencedor, as batatas (10.4.2010)




(Quincas Borba, de Roberto Santos)

A frase famosa é de Machado de Assis, e como tantas grandes frases, pode ser interpretada de muitas maneiras. 

Ao vencedor os louros do triunfo, por exemplo; todas as glórias e troféus subentendidos na possibilidade do triunfo. 

Ou então: ao vencedor, um punhado de meras batatas, prosaicas batatas, para que ele aprenda que o bom da vitória é vencer, e não o prêmio da vitória. 

Ou um mero fatalismo que (segundo Quincas Borba, inventor da frase) justifica a necessidade da guerra: 

“Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas.”

É um lado nietzschiano do filósofo Quincas, e não admira que tanto ele quanto o autor de Zaratustra terminassem a vida de miolo mole. Essa filosofia parte do princípio de uma escassez de recursos a serem disputados por dois concorrentes. Dividi-los por igual não adiantaria a nenhum dos dois, porque ambos continuariam fracos e sub-alimentados. 

Um provérbio meio equivalente à frase de Quincas Borba seria “farinha pouca, meu pirão primeiro”. É necessário, para ter acesso ao futuro (ou seja, a uma situação possível de batatas-em-abundância) exterminar o concorrente para que ele não roa metade dos nosso víveres, matando-nos a ambos de fome.

Há momentos em que a História parece justificar esse raciocínio. Vejam a espantosa evolução técnico-científico-industrial dos EUA durante os meros quatro anos que durou sua participação na II Guerra Mundial. O esforço de guerra produziu uma gigantesca mobilização de trabalho, capital e energia criativa, e inúmeras conquistas científicas (desde o radar à energia atômica) só foram alcançadas assim. 

Quincas Borba veria nisto uma prova de sua argumentação. Se EUA e Alemanha tivessem ficado sentados no batente de casa, comendo sem pressa as batatinhas fritas da paz, talvez tivessem morrido de inanição mental nessa “vidinha besta” que exige pouco dos homens e dos países. Mas bastou uma guerra para que um dos dois fosse destruído e o outro desse um salto de Poder sem precedentes.

A teoria de Quincas Borba é menos uma alegoria da Humanidade em geral do que uma prefiguração do que viria a ser o Capitalismo no século em que Machado fechou os olhos. 

O que há de bom no Capitalismo é essa energia criativa, essa pulsão de viver, de crescer e de criar, essa disputa de espaço, essa busca de ver quem é o melhor, quem faz mais, quem vai mais longe. 

O que há de mau é que todo este conjunto de qualidades acaba sendo o seu único repertório moral.