domingo, 27 de junho de 2010

2203) O destino indireto (31.3.2010)



O escritor Alberto Mussa conta que quando fazia um curso universitário de Matemática usou, ao pagar as cadeiras de Cálculo, um livro-texto diferente do que seus colegas usavam. O autor do livro era um russo, um tal de Piskounov ou coisa parecida, diz ele. Espalhou-se na faculdade a notícia de que ele estudava no livro de um autor russo (era a época da ditadura) e isso imediatamente lhe conquistou um enorme prestígio entre seus colegas comunistas. Um deles deu-lhe de presente um livro de poemas de Agostinho Neto, o presidente comunista de Angola – e a vida de Mussa mudou para sempre. Não que ele tivesse virado comunista, mas foi através do poeta angolano que ele descobriu a cultura e a literatura da África, sobre as quais viria a escrever numerosas obras.

Vilma Guimarães Rosa conta no livro Relembramentos que sua tia Maria Luiza, quando jovem, precisava dar mamadeira a um sobrinho, mas não tinha relógio e estava sozinha com o bebê em casa. Para perguntar as horas a alguém confiável, ligou para um número que viu na lista, e que imaginou pertencer a uma entidade religiosa. Não era: era uma pensão de estudantes. Um rapaz atendeu, os dois começaram uma conversa, depois um namoro, e acabaram casados pelo resto da vida.

São mil histórias; cada um de nós sabe várias. É a moça que acompanha a amiga a um estúdio, onde a amiga vai gravar alguma coisa, e alguém lhe pede que faça um teste ao microfone, ela canta e vira mais cantora que a amiga. É o rapaz que vai se matricular na Faculdade, vê uma moça bonita se matriculando noutro curso e, num impulso, matricula-se ali sem outro interesse, e vira um luminar daquela ciência.

Luís Buñuel nunca tinha pisado no México. Estava meio exilado e desempregado em Hollywood quando em 1946 recebeu um recado de uma amiga, no México, chamando-o para produzirem juntos uma peça. Don Luís foi para lá. No hotel, ficou sabendo que a peça que tinham em mente fora liberada para outro produtor. Buñuel ficou no México até morrer, e realizou ali 20 filmes.

É o que eu sempre digo: "Sorte não é sonhar avestruz, jogar avestruz, e dar avestruz. Sorte é sonhar avestruz, jogar camelo por engano, e dar camelo". Em tudo que tem interferências do Acaso a gente percebe o lado aleatório da coisa, mas percebe também (ou está ansioso para perceber) a presença de um enorme Dedo empurrando os personagenzinhos nesta direção, depois naquela... Luís Buñuel tem uma afirmativa terrível: “O Acaso não pode ser uma criação de Deus, já que ele é a negação de Deus. Estes dois termos são antinômicos, excluem-se um ao outro”. Escutaram, amigos, mil catedrais desabando? O contrário de Deus não é o Diabo, que é feito da mesma essência dele e no máximo encarna o seu pólo oposto. Deus é criação, controle, onisciência, determinismo, ordem; é isto, e tudo que combinar com isto. O contrário de Deus é o Acaso. Se pudermos um dia provar a existência do Acaso provaremos a inexistência de Deus.



2202) Messi (30.3.2010)



A Copa do Mundo já está em contagem regressiva no “Globo Esporte” e eu me preparando. O Brasil inteiro se prepara para torcer por mais um título da Seleção. Eu, não. Já sei que o título é praticamente impossível. A Fifa e os poderosos chefões do futebol não nos permitirão ganhar dois títulos consecutivos em 2010 e 2014; e se é pra ganhar somente um, prefiro (e acho que Ricardo Teixeira também) ganhar a Copa que vai ser disputada aqui, na nossa casa. Fica mais redondo, não é mesmo? Esqueçam o título.

Torcer pelo Brasil é minha segunda prioridade. A primeira é ver grandes jogos, grandes craques, grandes gols. A Copa é o Woodstock do futebol. Eu pertenço a essa espécie pouco ortodoxa que gosta mais de futebol do que de um time, ainda que seja o do Brasil. A maioria dos torcedores tem com o futebol uma relação composta em partes iguais de política, militarismo e religião; meu relacionamento com ele é de ordem estética. Se numa final de Copa, jogo empatado, Brasil x Argentina, um argentino fizer um gol de placa tirando o título do Brasil, acho que vou aplaudir tanto quanto se fosse um gol brasileiro.

O sujeito capaz dessa façanha é o baixinho Lionel Messi, que anda comendo a bola há tempos, e que nesta Copa, aos 22 de idade, vai ter a chance de mostrar a razão de sua presença neste planeta. Messi é uma figura. Aliás, o que nos atrai nos grandes jogadores (como nos grandes artistas) é a sua individualidade. Não há dois craques iguais. Mesmo craque de estilos semelhantes (digamos – Beckenbauer e Ademir da Guia) podem ser distinguidos de olhos fechados. Cada craque é um cara que se especializou ao máximo em explorar criativamente uma combinação improvável, rara, de qualidades físicas, técnicas e psicológicas.

Messi é baixinho, maciço, veloz, canhoto, excelente driblador, ótimo finalizador, um pulmão incansável, uma capacidade rara não somente de iniciar como de definir as jogadas de gol. Não apenas goleia com abundância, mas é expert em atrair sobre si três defensores e tocar a bola de biquinho para um companheiro desmarcado mandar para as redes. Dias atrás, em uma semana fez oito gols: 3 no Valência, 2 no Stuttgart e 3 no Saragoza. E faz dando a impressão ilusória de simplicidade, de que o gol já estava pronto e ele se limitou a executá-lo.

Messi revelou-se no Barcelona na época em que Ronaldinho Gaúcho fazia lá o que ele faz hoje. Há um lance dos dois que define, para mim, o que é ser craque. Num jogo difícil, o Barcelona cercava o adversário procurando uma brecha. Ronaldinho viu Messi livre na ponta esquerda, lançou, e Messi entrou na área e fez o gol. O juiz anulou. Dois minutos depois, o Gaúcho recebeu a bola na mesma posição anterior, repetiu o passe e Messi repetiu o gol. Parecia um replay. Depois, o garoto (devia ter uns 18 ou 19 naquele tempo) pulou nas costas do Gaúcho, que o carregou em triunfo pelo campo, com a torcida toda de pé. Seria tão bom ver os dois frente a frente nesta Copa.

2201) Um quadro para os meus olhos (28.3.2010)



Eu estava viajando sozinho, de ônibus, do Rio para São Paulo, e seriam umas dez da manhã. O ônibus ficou preso num engarrafamento na Dutra, ainda nos subúrbios do Rio. 

Eu estava sentado junto a uma janela do lado esquerdo. Olhei para fora. Do lado oposto da rodovia erguiam-se aquelas casa de tijolos sem reboco, aquela proliferação de paredes escuras e irregulares, cortadas por ruas de terra, com poças de lama, porcos, cachorros. As casas quase todas com antenas de TV em cima, e unidas pelo traçado dos varais de roupas. 

Foi então que apareceram duas coisas ao mesmo tempo. Numa casa de dois andares, virada para a rodovia, surgiu na varanda do andar de cima, onde havia uma rede armada e uns vasos de flores, uma moça de blusa amarela e bermudas. A varanda tinha uma grade metálica fina que ia até a cintura dela. Ela andava, limpava poeira com um pano, ajeitava os vasos, passava por baixo da rede quando ia de um lado para o outro e deixava a rede balançando vazia. 

No mesmo instante em que ela apareceu nessa varanda eu vi surgir na rua ao lado (porque essa casa ficava de esquina) um rapazinho com uma camisa vermelha, montado numa bicicleta. Ele deu uma volta na rua, parou a bicicleta em frente a algo que parecia uma birosca, desceu dela e começou a bater bola com outros rapazes diante da calçada (era uma daquelas ruas de terra que têm pequenos trechos calçados de cimento em frente a esta ou aquela casa). 

Começou então um pequeno “pas de deux” cromático entre aquela mancha de amarelo brilhante e aquela outra mancha de vermelho sanguíneo. A mocinha ia para um lado em seu terraço, o garoto ia para outro do lado oposto. Um não enxergava o outro, porque a casa ficava de frente para a estrada e o lugar onde o rapaz estacionara a bicicleta ficava na rua ao lado, uns dez metros mais para dentro. 

Mas aos meus olhos, aqueles dois retalhos de cor se destacavam no meio daquele pano de fundo cor de tijolo sujo. Havia os tijolos de barro vermelho-escuro, unidos pela grade cinzenta da argamassa, e havia em outras casas os tijolos cinza que se usam em outras construções. Quase nenhuma placa de propaganda. As roupas dos varais quase todas brancas ou de tons desbotados. 

E aos meus olhos entrecerrados aqueles dois fragmentos de cores vívidas que se agitavam, como dois passarinhos na mesma gaiola, indo às vezes ambos para a direita e depois retornando para a esquerda. 

Criou-se naquela instante uma harmonia de movimentos aleatórios entre duas pessoas que provavelmente ignoravam não só a presença mas a própria existência uma da outra; um balé browniano em que cada um se movia à revelia do outro, mas cabia aos meus olhos, que captavam tudo, projetar nesses movimentos um senso qualquer de harmonia, uma vontade de ordem, uma decisão de considerar que aquela micro-coincidência vista apenas por mim resultava em algo que valia a pena ver, e que um dia (hoje, depois de tanto tempo) valeria a pena lembrar.








2200) A literatura enumerativa (27.3.2010)




O blog “The Reading Experience” publicou uma crítica de Adam Kirsch ao recém-falecido J. D. Salinger. Kirsch visava certos trechos existentes nos livros de Salinger (nos dele e nos da torcida do Flamengo, se a gente observar bem), trechos meramente enumerativos, listas e listas de coisas. Diz ele: 

“O inventário obsessivo do apartamento da família em Franny e Zooey – há listas com uma página de extensão, uma das quais inclui ‘três rádios (um Freshman de 1927, um Stromberg-Carlson de 1933 e um RCA de 1941)’ – não é o tipo de detalhe que romancistas usam para capturar uma verdade psicológica ou social. Parece mais com os detalhes gratuitos e auto-gratificantes que as crianças usam na construção de seus mundos de fantasia”. 

Kirsch prossegue dizendo que em suas obras mais tardias Salinger já não usava a ficção como um meio de explorar a realidade, mas como um substituto para ela. 

Talvez essa visão crítica esteja sendo contaminada por tudo que sabemos de Salinger, sua fuga à publicidade, seu rompimento de relações com leitores, editores e críticos, sua transformação num eremita agressivo e mal-humorado. 

Kirsch compara essa ficção catalográfica de Salinger com as histórias de fantasia que as três irmãs Brontë escreviam juntas na infância (historinhas cheias de listas), e diz que elas evoluíram dessas fantasias infantis para escrever O Morro dos Ventos Uivantes ou Jane Eyre, ao passo que Salinger pareceu ter cumprido o percurso inverso. 

Ficção catalográfica é um mal ou um bem do século. Aí estão James Joyce, Georges Perec, Guimarães Rosa, J. R. R. Tolkien, Jorge Luís Borges e tantos outros que, quando a ocasião se apresentava, não hesitavam em encher suas páginas com copiosas listas. 

A questão é que para esses escritores (e para Salinger também, acho) essas listas tinham efeito estético e afetivo. O exemplo escolhido por Kirsch é até meio infeliz para ilustrar sua tese, porque, mesmo não fazendo idéia do que são os rádios citados, não duvido que esses nomes tenham uma profunda repercussão na memória afetiva de milhares de leitores dos EUA. Eu mesmo, que não sou apegado a essas coisas, posso imaginar uma lista de marcas de rádios antigos que me deixaria com um nó na garganta. 

Quando a lembrança é forte e emocionalmente carregada, basta o nome para, proustianamente, arrastar consigo mil e uma histórias. Para os que sabem praticá-la, a ficção catalográfica não é um índice insensível e monótono de meros nomes. Cada item daquelas listas é uma ponta de iceberg. 

O autor insinua (e o leitor aceita) que poderia escrever páginas a respeito de cada um. O catalografismo nasce de um conhecimento paradoxalmente amplo e minucioso (os dois conceitos puxam em direções diferentes) da realidade. Envolve uma noção de hipertexto “avant la lettre”, onde cada frase daquelas, cada nome, é na verdade um link. Um link para algo que o autor deixa subentendido e que cabe à fé do leitor aceitar ou não.






2199) Três histórias de fãs (26.3.2010)



A primeira história diz respeito a Spider Robinson, norte-americano, autor de histórias de ficção científica ambientadas num bar chamado Callahan’s, nome do seu proprietário. É um bar frequentado por alienígenas, viajantes no Tempo, etc., e ali se contam histórias divertidas. Robinson conta que certa vez estava com a esposa numa convenção de FC, e um grupo de fãs os convidou para jantar. Como estavam sem um centavo, aceitaram. Entraram num carro. Rumaram para o subúrbio, pegaram a estrada. O tempo passando, e tome estrada. Robinson e a mulher impacientes; e os fãs piscando uns para os outros e dando risadas. Uma hora e meia depois, pararam num restaurante, chamado, é claro, “Callahan’s”. Diz Robinson que não apenas a comida era horrível, mas descobriram que os fãs também não tinham grana para pagar o jantar.

Um cantor profissional me contou que chegou na cidade onde ia fazer um show à noite, e no aeroporto foi recebido por um sujeito que disse ser da produção local, encarregado de levá-lo para o hotel. Ele guardou a bagagem e o violão no carro do sujeito, e os dois seguiram. No meio do caminho o cara perguntou se o artista se incomodava de passar antes num local onde ele precisava pegar alguma coisa. “Tudo bem”, disse ele. Daí a pouco desceram numa casa onde estava rolando o maior churrasco, e o motorista anunciou: “Aqui está ele!”. O cantor teve que descer, sentar, fingir que bebia, até conseguir ligar para o verdadeiro produtor local ir buscá-lo; mas antes teve que pegar o violão e cantar algum dos seus grandes sucessos.

Affonso Romano de Sant’Anna narra o episódio ocorrido com Michel Foucault, em sua vinda ao Rio de Janeiro em 1973. Foucault veio fazer conferências na PUC-RJ, com cobrança de ingresso. No primeiro dia, ele e Affonso foram abordados por estudantes de filosofia que se queixaram de não poder comprar ingresso. O filósofo se dispôs a falar de graça para eles em outro horário. Depois, contou a Affonso que os estudantes o levaram para uma cobertura em Ipanema, onde ficou bastante claro que eram muito mais bem-de-vida que o próprio filósofo.

Nem todo fã apronta situações desse tipo, é claro. Mas acontece tanto que dá o que pensar nessa relação meio canibalesca que o fã mantém com seu ídolo. Os jovens leitores que levaram Spider Robinson para aquela roubada estavam querendo não só homenageá-lo, mas querendo que ele achasse graça na piadinha deles. O pessoal do churrasco e os ouvintes de Foucault certamente eram admiradores sinceros de suas vítimas (não aprontariam aquilo com qualquer um), mas narcisistas, acima de tudo. Fizeram aquilo para sair dizendo coisas como “Fulano cantou no meu churrasco”, “Foucault esteve lá em casa semana passada...” O fã é capaz de extremos de altruísmo e de extremos de egoísmo, porque existe no seu Ego uma fome voraz que só o ídolo sacia. Quanto mais importante a gente se torna para um fã, mais cuidado precisa ter com ele.

2198) “O que fazer em caso de incêndio” (25.3.2010)



Este filme alemão dirigido por Gregor Schnitzler em 2001 (Was tun, wenn’s brennt?) conta a história de um grupo de anarquistas berlinenses que, depois da queda do Muro de Berlim, se deixa absorver e cooptar (este era o verbo usado pela esquerda aqui no Brasil, no tempo da ditadura) pelo Capitalismo triunfante. Um deles vira publicitário, outro advogado, uma vira socialite, a outra mãe de família... Somente dois deles continuam vestindo casacos de couro, hirsutos, radicais, vociferantes, morando em invasões urbanas (um deles anda em cadeira de rodas, o amigo lhe serve de anjo-da-guarda).

Acontece que eles tinham colocado uma bomba num prédio, e por defeito técnico a bomba não explodiu. Doze anos depois, explode por acaso. A polícia dá uma batida no apartamento dos dois malucos e confisca latas e mais latas de cinema underground feito por eles. E no meio das latas, existe uma mostrando o preparo e a instalação da bomba. O resto do filme mostra os dois recorrendo aos amigos aburguesados para tentar reaver (ou destruir) o filme que incrimina a todos – e de maneira especial aos que agora “se passaram para o lado do inimigo”.

Desde sua sequência inicial o filme se assemelha ao Watchmen recentemente dirigido (2009) por Zack Snyder. Em ambos, o mesmo tema da “volta dos que não foram”, ou seja, o retorno de um grupo de ativistas que na verdade nunca foi realmente extinto. Em ambos, a sequência inicial de apresentação dos créditos resumindo a situação para que o filme propriamente dito comece em seguida (em Incêndio, a preparação da bomba; em Watchmen, o triunfo dos governos de extrema direita nos EUA). Em ambos, os conflitos internos de ativistas políticos e sua dificuldade de sobreviver num país em que o Capitalismo ganhou a guerra política.

Mais curiosas do que as semelhanças, no entanto, são as diferenças entre os dois filmes. Watchmen, apesar de escrito por Alan Moore, um autor de ácidas HQs, não deixa de ser um super-espetáculo comercial. Entra no mercado como um “filme de super-heróis” destinado a grandes bilheterias e com foco nos adolescentes de todas as idades. O filme alemão parecia ser (pelo menos para mim) uma produção mais modesta porém mais independente, uma avaliação política de uma situação política.

Na prática é o contrário, e curiosamente Watchmen é o mais político dos dois. O filme de Schnitzler, apesar de simpático e bem realizado, parece um filme norte-americano pelos clichês que emprega, como a tipificação dos ex-revolucionários, e pela altíssima improbabilidade dos atentados, fugas, arrombamentos, infiltrações e escapadas do grupo. Tudo acontece com uma facilidade digna de seriados da Sessão da Tarde. A guerra da esquerda alemã já está servindo para gerar histórias de entretenimento sem compromisso. Se os revolucionários se dão bem no final do filme, é porque o filme é uma vitória do cinema capitalista de entretenimento.

2197) A história de César (24.3.2010)



César (usarei este nome, que não é o dele) estudou comigo no Ginásio, numa turma em que vim parar por esses remanejamentos escolares que nos jogavam, às vezes, no meio de um grupo de outros quarenta adolescentes que nunca víramos mais gordos. Fazer amizades era um processo relativamente rápido, pois nos primeiros dias de aula já se desenhavam os grupos que as marés das afinidades amontoavam em torno de um centro gravitacional comum: aqui os Comportados, ali os Palhaços, lá adiante os Brigões, e os Estudiosos, os Riquinhos, os Proletas, os De Família, os Amulherados, os Líderes, os Babões...

Vi logo que César pertencia aos Palhaços (era sempre o primeiro a desferir uma graça-sem-graça lá do fundo da sala, durante as explicações das professoras tímidas), aos Brigões (brandia o dedo no nariz de quem se opusesse a ele e chamava pra brigar na saída), aos Proletas (falava errado, a farda era toda cerzida, às vezes tentava tomar o lanche de alguém porque não podia pagar). Fazia de tudo para aparecer; sua vida era um chega-pra-lá permanente para afirmar seu próprio espaço. Era magro, rosto cheio de espinhas, branquelo igual a mim. Tinha uma voz estridente, forçada, e costumava entrar na sala gritando: “Eita calor fela da p... que faz nessa p... desse colégio!” – e dava um chute na primeira carteira que estivesse à sua frente, surdo às reclamações do “inquilino”.

De vez em quando ia às tapas com um ou outro. Por mais de uma vez me ameaçou por uma bobagem qualquer. Como eu falava pouco (viera de outra turma, não tinha nenhum amigo antigo ali), me chamava “o Recalcado”. Quando comecei a tirar notas boas em algumas matérias, parou de me insultar, não por respeito, mas para nos dias de prova sentar perto de mim e ficar pedindo cola – que eu fornecia, quando não corria risco de ser pêgo. Vi-o brigar algumas vezes no recreio. Era cruel mas desorganizado; brigava mal, mas fazia um tal alarido que suas brigas eram logo encerradas pela intervenção de alguém. Voltava das suspensões como se nada tivesse acontecido, gritando impropérios e chutando as carteiras.

Um dia estávamos no pátio conversando com uns caras de outras turmas. César estava com a corda toda, sarcástico, incômodo. Um dos sujeitos cruzou os braços e desferiu esta: “Engraçado, César agora é todo metido a homem, no ano passado era todo mariquinha: quando apanhava choraaaava...” Durou só um segundo; mas vi que ele vacilou, bambeou, meio que acusando o golpe; por alguns segundos seus olhos de cascavel transpareceram um medo sem nome, um susto sem fim. Vi ali o pavor de quem era fraco no bom sentido, de quem era medroso no bom sentido, de quem na verdade gostaria de ser algo diferente do que foi no ano passado e do que está sendo agora, mas nunca achou o caminho. Logo logo César bradou um palavrão e armou uma escaramuça. Continuou o mesmo, mas naquele instante eu aprendi alguma coisa que não sei bem o que foi, estou dizendo aqui para ver se alguém sabe.

2196) “We can build you” (23.3.2010)



É um romance menor na obra de Philip K. Dick, mas, como tudo que Dick escreveu, é uma obra em que estão visíveis todas as qualidades do autor. Dick se colocava por inteiro em tudo que escrevia, e cada obra sua é um registro de suas obsessões, suas inquietações éticas e filosóficas, seu humor torto e surpreendente. Este livro foi escrito (de acordo com Lawrence Sutin em sua biografia Divine Invasions) entre 1961 e 1962, embora tenha sido publicado aos pedaços em revistas e a primeira edição em livro seja de 1972. É a história de uma fábrica de órgãos musicais eletrônicos que consegue produzir os primeiros andróides capazes de ser confundidos com seres humanos. Os andróides são feitos à imagem de Abraham Lincoln e de seu secretário de governo Edwin Stanton. (Dick havia visto e ficado fascinado com um “Lincoln” mecânico na Disneylândia, e 1961 marcou o centenário da Guerra da Secessão, um subtema do livro.) Os primeiros dois terços do livro mostram a criação dos andróides, o modo como eles se relacionam com os humanos, e a disputa entre duas empresas que querem usá-los para diferentes fins.

No terço final do livro, a história dá uma curiosa guinada. O narrador, Louis Rosen, um dos sócios da fábrica de andróides, se apaixona por Pris, a filha do seu sócio Maury Rock. Pris é esquizofrênica, e tendo recebido alta de uma clínica psiquiátrica dedica-se ao trabalho artístico da criação dos andróides. Louis a vê alternadamente como uma mulher fascinante e como uma destruidora. Nesta parte final, os andróides recuam para segundo plano, e acompanhamos apenas a descida aos infernos de Louis Rosen, que, apaixonado por uma mulher esquizóide, torna-se esquizóide ele próprio.

Dick foi o escritor de FC que melhor soube criar personagens comuns, geralmente pequenos industriais ou comerciantes, vendedores, sujeitos de bom caráter mas consumidos por dúvidas existenciais e problemas filosóficos. Indivíduos que se deparam com situações fantásticas em que precisam redefinir seus conceitos sobre o que é real, o que é um ser humano, o que é a vida, a morte, o Universo. We Can Build You ressuscita um Abraham Lincoln compassivo, ético, depressivo (o livro comenta as crises esquizóides que Lincoln teve na juventude) como contraponto a Louis Rosen.

Brian Stableford observa que muitos livros de Dick não se encerram, se esvaem, terminando de forma abrupta ou vaga, sem resolver as situações dramáticas que propõem. E sugere que isso se deve ao modo de produção do autor, que consistia em acessos de hiperatividade criativa em que escrevia dias e noites sem parar. Quando esses acessos eram curtos, o livro adquiria essa estrutura desconjuntada, inconclusa. O que não tem muita importância, pois a obra de Dick é uma espécie de ficcionalização permanente de seu próprio cotidiano, de suas fantasias e alucinações. Mesmo um livro menor, como este, é capaz de inquietar um novo leitor, fasciná-lo, conquistá-lo para sempre.