quarta-feira, 23 de junho de 2010

2180) Desejo de matar (4.3.2010)



Guerra é guerra, diz a voz da tradição. Somente uma tautologia pode explicar o inexplicável, e esta resposta, que pouco diz e tudo encerra, reaparece sempre que nos queixamos dos absurdos cometidos nos campos de batalha. E no entanto toda guerra é também um jogo (que tem regras, inclusive para interromper o jogo durante algum tempo, para que os participantes possam descansar, recolher os mortos, etc). É um ritual em torno de alguns atos e gestos previamente combinados.

Dois grupos de soldados (o meu, e o dos meus inimigos) estão se alvejando, protegidos por rochas e arbustos. Um soldado inimigo sai do seu abrigo e corre, tentando atingir uma melhor posição de tiro. Eu levanto o fuzil e o derrubo à distância. O soldado cai. Mas continua a se mexer; está vivo. Antes que eu termine de abatê-lo, um companheiro seu amarra um pano branco num galho de mato e o ergue. O tiroteio cessa. O do pano branco vem a campo aberto, agarra o ferido, coloca-o apoiado no ombro e o leva para lugar seguro, sem que ninguém os incomode. Penso eu: Ora, guerra não é guerra? Se um minuto atrás eu podia finalizar aquele soldado com um tiro, por que não posso fazê-lo agora? Melhor ainda, por que não mato logo ele e esse outro idiota que vem acenando com um trapo amarrado num galho? A resposta é que não posso, porque a guerra tem leis humanitárias, etc. Bem, a primeira e única lei humanitária concernente à guerra seria acabar com ela. Mas não é o que a História nos ensina. Ela nos ensina uma mescla aleatória de cavalheirismos e brutalidade, de pensamento politicamente correto e racionalização do sadismo.

Minha teoria, repetidamente exposta nesta coluna, é que se um dia o mundo se tornar civilizado a guerra (e a maioria dos atos violentos) se transformará num jogo mesmo, numa encenação, numa performance. O melhor exemplo disso é a capoeira, que era Luta, depois virou Esporte, e depois virou Dança. Claro, pode ser usada para afundar com uma pezada a caixa-dos-peitos de um desafeto, mas, em princípio, quem pratica essas artes marciais não o faz com propósitos guerreiros, e sim com propósitos de aprimoramento físico e mental, para exibições esportivas em torneios, ou para performances ilustrativas diante de uma platéia.

Imagino um serial-killer condenado à prisão perpétua, na melancolia de sua cela, parcialmente arrependido de ter se metido naquela enrascada, pensando: “"Por que esses cientistas não inventam um jeito da gente poder matar, sem que ninguém precise morrer?”. O que move indivíduos assim não é o ódio pelas vítimas (aliás eles têm uma completa indiferença para com elas). É o prazer de matar, um componente brutal dos nossos cromossomos, e que nunca deve ser menosprezado quando falamos em violência diária, em crime, em guerra. Eia! Sus! Cientistas do mundo, inventem logo um Universal Multi-Player Virtual Game que dê ocupação a esses psicopatas, para que possamos trazer nossos soldados de volta pra casa.

2179) Alugue um superstar (3.3.2010)



(desenho de Pojucan)

Uma matéria de Geoff Boucher no Los Angeles Times aborda uma forma curiosa de privatização do show business. Alguém objetará que o show business já é privatizado, mas uso o termo noutro sentido. Em geral, um show é feito para uma platéia, que paga ingressos para assisti-lo. Shows em grande escala ao ar livre, com acesso gratuito, são pagos em geral por uma Prefeitura, que dá o show de graça para a população. Mas o que acontece quando um grupo reduzido de pessoas tem grana suficiente para contratar um show só para si? Empresas fazem isso o tempo todo, e casas como Canecão, Vivo Rio, Claro Hall e congêneres volta e meia estão sendo “fechadas” para a realização de um show só para convidados de uma empresa, que desembolsa uma nota preta por este privilégio.

Conta-se que num reveillon recente o cantor George Michael voou até a Rússia para cantar para os convidados do magnata Vladimir Potanin, recebendo o cachê nada desprezível de três milhões de dólares por hora. Qual é o advogado de Manhattan que ganha isso? Os milionários russos parecem propensos a esse tipo de dispêndio, porque Christina Aguilera recebeu 5 milhões de dólares para cantar no casamento de Andrei Melnichenko. Claro, não são só eles. Em 2002, a festa de aniversário de David Bonderman (co-fundador do Texas Pacific Group), em Las Vegas, teve o acompanhamento musical de Robin Williams, John Mellencamp e os Rolling Stones, a um custo total de dez milhões.

Não se escandalize vendo os míticos Stones envolvidos nisso. Muito mais mítico do que eles é Bob Dylan, e há cerca de dez anos ele fez um show (juntamente com o Wallflowers, a banda de seu filho Jakob) para a Applied Materials, uma companhia que produz semicondutores no Vale de Silício. Para muita gente, a concessão feita por Dylan foi uma espécie de sinal verde, pois “se o Bardo não se envergonha de faturar nestes termos, quem sou eu para ficar de fora?” Há pouco, a Genentech, uma empresa de biotecnologia, comemorou seu 30o. aniversário com um mega-show incluindo Dylan, The Eagles, os Foo Fighters e os Black Eyed Peas. A revista Rolling Stone ironizou os artistas dizendo que eles agora cantavam “no piquenique de uma empresa”.

Contratos assim seriam impensáveis anos atrás, mas estão se tornando cada vez mais numerosos. Em geral têm cláusulas estabelecendo que o show não pode ser divulgado, fotografado nem gravado. O produtor Robert Norman afirma que é cada vez maior o número de multimilionários capazes de trazer para sua festinha pessoal seu artista preferido, não importa o quanto custe. Que magnata resistiria a um pedido da noivinha para que seu casamento fosse musicado ao vivo por, sei lá, Celine Dion, ou Norah Jones, ou Diana Krall? Há artistas (diz Norman) que até agora não se dobraram a este mercado, e ele cita como exemplos Bruce Springsteen ou o U-2. Mas sempre existirão bilionários capazes de dizer: “Basta me dar o sim. O preço, diga à minha secretária”.

2178) Decisão do Júri (2.3.2010)



“Na cidade de Campina Grande, aos vinte e sete dias do mês de novembro de dois mil e nove, a partir das onze horas, reuniram-se os membros do júri do Prêmio Literário Estadual “Serra da Borborema”, os senhores Amadeu Garcia Trancoso, Luiz Antonio Salamanca, José Roberto Carvalho da Silva, e as senhoras Heloísa Furtado e Maria das Graças Cantanhede Rocha, que, tendo examinado as vinte e oito obras concorrentes, decidem por unanimidade: 1) Conceder o Prêmio à obra intitulada Microinfinitos, conjunto de poemas inscrito pelo autor de pseudônimo “Montag”; 2) destacar os seguintes aspectos da obra vencedora.

Em primeiro lugar, a proposta inovadora de interatividade, em que o leitor é convidado a tornar-se co-autor da obra. Destacamos o recurso principal empregado para este fim, ou seja, o uso de códigos numéricos (p. ex.: 3-8-120-5) para a escolha aleatória de palavras por parte do leitor, obedecendo à disposição dos livros em sua biblioteca, onde 3 refere-se à prateleira, 8 ao livro, 120 à página e 5 à palavra. O autor sugere também um engenhoso sistema de substituição de números, em que, por exemplo, 123 pode ser decomposto em 1-2-3, em 12-3 e em 1-23, caso não haja prateleiras, páginas, etc. correspondendo ao primeiro número sugerido.

Poemas são montados através desse processo, que fornece ao leitor a matéria-bruta (termos isolados) que caberá a ele relacionar sintaticamente, organizando-o em verso de acordo com sua própria sensibilidade literária. Cada página de códigos numéricos pode resultar num poema de extensão equivalente a um soneto.

Em segundo lugar, ressaltamos o fato de que, não satisfeito com isto, o autor propõe na segunda parte um conjunto de códigos que terão, para cada leitor, valor diferente. Números personalizados, por assim dizer, o que coloca a escolha vocabular num duplo nível de aleatoriedade. O autor sugere algumas dezenas de módulos intercambiáveis indicando números que são peculiares a cada leitor, desde os mais óbvios (identidade, CPF, data de nascimento, data de nascimento do cônjuge e filhos, telefone residencial ou comercial, celular, número do Pis-Pasep, número do prédio ou apartamento onde mora, CEP, placa do carro, etc.) até números referidos de forma mais indireta: número total de letras do nome (do próprio leitor, do cônjuge, dos pais, dos filhos, etc.), soma do dia, mês e hora em que a leitura está sendo feita, e assim por diante.

Assim procedendo, o leitor terá diante de si em cada sessão de leitura uma cadeia de algarismos (por exemplo: 758432637499557338505058...) que poderá ser dividida de incontáveis maneiras: prateleira 7, livro 5, página 8, palavra 4. Ou então prateleira 7, livro 58, página 4, palavra 7. Ou prateleira 7, livro 5, página 84, palavra 3... As possibilidades, como sempre, são infinitas. Com o que se deu por encerrada a reunião, redigindo-se a presente ata, que vai assinada e rubricada por todos os membros do júri.”

2177) Vislumbres do Arcano Superior (28.2.2010)



“Vai por mim, tem muita coisa da História do Brasil que não está muito bem explicada. Não está muito bem explicada minto: está muito bem escondida. Quando você quer esconder uma coisa, o que é que você faz? Bota num lugar que ninguém vê, certo? Isso é o raciocínio simplex. Existem três tipos de raciocínios, o simplex, o duplex, e o multiplex. O raciocínio desses caras, meu amigo, vai muito além do raciocínio da gente, não porque eles sejam necessariamente melhores do que nós, embora eles tenham toda essa coisa de sangue europeu, árvore genealógica (que na verdade não se trata de árvore, é DNA, é ciência mesmo, mas isso é outro papo), enfim, o caso é que eles têm os seus interesses e estão nos manipulando há 500 anos. Ou mais! Ou mais. Porque ninguém me garante que eles não chegaram ao Brasil – você sabe, o Estreito de Behring, toda aquela teoria da Ponte de Gelo – muito antes disso, e os próprios índios que estão aqui são meros sobreviventes de uma civilização antiga, superior aos incas e aos astecas, e que eles extinguiram para poder se apossar do continente inteiro, e nós simplesmente não sabemos disso porque eles tomaram a providência de deixar a floresta amazônica cobrir as ruínas? Hem? Hem? Que é que você me diz? Não diz nada. Eu não posso provar que é verdade, mas você não prova que é mentira.

“Elite é elite. Elite sabe defender os seus interesses, foi por isso que todos os filósofos gregos tinham escravos. Democracia boa, hem? A gente usa essas palavras estrangeiras sem atentar para a origem delas. Democracia só é possível num lugar em que a gente possa votar e os escravos não. Por isso eu sou contra o voto obrigatório. Não que eu pertença à elite, claro – basta você olhar a mobília da minha sala. Mas eu me considero membro de uma espécie de elite espiritual, elite esclarecida. Pegue por exemplo José Bonifácio. Tudo que Pedro II fazia perguntava primeiro a ele, e ele traçava as coordenadas. Foi o único cientista que já teve poder no Brasil. Entendia de tudo. Olha, eu vi uma exposição uma vez no BNDES, o homem entendia de mineralogia, física, botânica, química, balística.. Ficam falando de Segundo Império, mas eu asseguro a você: o Segundo Império foi José Bonifácio e mais ninguém, Pedro II era um diletante que só queria ler poesia em francês e tirar retratos, porque a fotografia era uma novidade, era a Internet daquele tempo.

“A Guerra do Paraguai foi a Guerra do Iraque daquela época, inclusive. O Iraque foi pelo petróleo, o Paraguai foi por causas que a História não pode revelar. Mesma coisa com Canudos. Não era ameaça nenhuma. Por que ir lá e matar todo mundo? E por que voltar lá cem anos depois, e construir uma barragem para inundar tudo? O que estão querendo esconder, meu amigo? Onde está a imprensa, que não vê uma coisa dessas? Vou te dizer, o Brasil precisa acordar. A ciência já provou que é possível toda a população de um país ficar louca e ninguém perceber.”

2176) O super-capitalismo (27.2.2010)



As redes de relacionamento via Internet (Orkut, Twitter, Facebook, MySpace, etc.) são como as praças de antigamente: um lugar onde vamos passear, na esperança de reencontrar amigos e de fazer novas amizades. Digo as praças de antigamente, não porque elas não existam mais, mas porque estão virando um Zoológico humano onde os pobres, do lado de fora, espremem o rosto entre as grades para ver a classe média passeando lá dentro, protegida, dando banho de sol nos seus bebês, jogando dominó, lendo o jornal de manhã cedo. Se tirarem as grades a mendicância invade aquilo com gosto de gás, como o fez com a casa de Viridiana, a personificação buñuelesca da classe média bem intencionada.

Redes de relacionamento substituem esses espaços problemáticos, mas não são um logradouro virtual onde a gente passeia sem compromisso. Parecem mais com um Clube, onde você precisa se cadastrar para ter acesso; e onde cada passo seu, cada atitude, cada escolha, cada clique, fica gravado na memória do sistema de modo mais indelével do que nas Tábuas de Moisés. Não se engane, amigo. Cada link que você percute com o dedinho do cursor fica registrado numa gigantesca biografia cibernética que o sistema está criando sobre você. Porque saber quem é você é o objetivo desse sistema. A criação das redes de convivência é o pretexto mais simples para fazer com que você se cadastre para entrar, e a cada dia vá refinando seu cadastro, o que você faz clicando em músicas e filmes, dando nota ou palpite sobre os palpites e as notas dos outros usuários, jogando joguinhos inúteis (porque interessa ao sistema saber que você dispõe de, digamos, três horas e 42 minutos diários para jogar, digamos, FarmVille).

O objetivo final do Super Capitalismo é chegar um dia ao requinte de poder tratar por “você” cada cidadão, sabendo exatamente com quem está falando, porque já mapeou seus dados biográficos, seu perfil biológico, seu histórico escolar, seu curriculum vitae, sua história médica, seus hábitos de consumidor, suas propensões ideológicas, suas fidelidades políticas e religiosas, seu estilo de vida doméstico, suas preferências e especialidades sexuais, suas idiossincrasias como consumidor. O super-capitalismo terá uma super-ficha, nestes termos, sobre cada um entre bilhões de cidadãos. E seu sonho (somente um sonho; isto é irrealizável) é ser capaz de produzir as coisas para agradar a você. Ser capaz de lhe oferecer roupas nas suas medidas, nos seus modelos, cores, texturas e estilos de sua preferência. Ser capaz de mandar fabricar uma pasta de dentes planejada e concebida para você, pesquisada de acordo com suas preferências de cor, de sabor, de cheiro, de espessura, de formato e de design do tubo. Ser capaz de produzir um automóvel feito com tudo que você gosta, otimizando e harmonizando fatores conflitantes como beleza, desempenho, segurança e preço. (Isto se o Super Capitalismo der certo; se não der, o mundo será um Haiti.)

2175) A história de Márcio Volta (26.2.2010)



Conheci o protagonista desta história, Márcio Volta, quando ele trabalhava como tradutor na Editora Record, e eu era colaborador da Isaac Asimov Magazine. Mas nunca conversamos a respeito; tudo que sei (e passo a contar) me foi repassado pelos colegas lá da editora. Márcio era uma cara talentoso, escrevia bem, traduzia ainda melhor, mas tinha uma péssima caligrafia, que ele (filho de jornalista) atribuía ao fato de ter começado a escrever à máquina Olivetti com seis anos de idade. Em princípios dos anos 1990 ele decidiu se inscrever num curso em Botafogo tipo “Melhore a sua Caligrafia”. Fez o curso e dizem todos que ficou com uma letra ótima, diferentíssima – e legível. Foi abandonando a outra aos poucos.

Primeira reviravolta: Márcio ficou com saudade da letra velha e começou a produzir, com ela, um romance manuscrito em forma de diário, contando histórias de sua adolescência, porque (dizia ele) quando usava a letra nova tinha dificuldade em falar de coisas antigas. Fez esse diário apócrifo em nome de um narrador cujo nome não era mencionado, mas era alguém também carioca, mais ou menos de sua idade, que tinha morado nos mesmos bairros, feito as mesmas coisas... Era um diário um tanto picante, porque ele contava histórias cheias de sexo, drogas & rock-and-roll.

Pegou o livro, depois de pronto, e pediu que alguém na Record o digitasse. Imprimiu o resultado e o apresentou ao editor Sérgio Machado, seu patrão. Machado adorou o livro e o publicou alguns meses depois. Márcio Volta deu entrevistas, fez noites de autógrafo, apareceu na TV e em breve estava famoso no Rio. O livro virou o best-seller do verão.

Veio aí a segunda reviravolta. Um morador do Catete entrou com um processo dizendo que Márcio tinha contado episódios de sua vida íntima: tais e tais histórias, alegou ele, tinham se passado com ele. Márcio desmentiu de pés juntos. Mas logo pipocou outro processo movido por outro cara, de Ipanema, com a mesma alegação, só que citando outros capítulos do livro – que teriam se passado com ele (como provou, substanciadamente, com documentos, fotos, recortes de jornal). E não demorou muito até que um terceiro litigante, este da Urca, pulasse para dentro do ringue, também munido de provas irrefutáveis, demonstrando que alguns dos trechos de maior sucesso do livro de Márcio eram plagiados de sua vida.

O manuscrito original havia se perdido numa reforma feita na editora, e nem mesmo essa prova de autoria Márcio conseguiu apresentar. Não lhe adiantou muito reunir testemunhas ou documentos que provassem sua boa fé. Parece que no mundo jurídico prevalece a sensação de que se três pessoas se queixam da mesma coisa deve ser verdade. Advogados e querelantes sugaram de Márcio até o último centavo ganho com o livro. Márcio gozou e sofreu seus 15 minutos de fama. Soube que ele voltou a trabalhar na editora, e agora está envolvido com uma nova tradução brasileira do Alcorão.