quarta-feira, 9 de junho de 2010

2131) Verdades e mentiras (6.1.2010)





A mente humana tem uma relação engraçada com os conceitos de verdade e mentira. Muitas vezes somos incapazes de enxergar uma coisa verdadeira diante dos nossos olhos, só porque ela não se apresenta da maneira que esperamos. Temos idéias preconcebidas sobre o que parece verdadeiro e o que parece mentira, e essas idéias determinam nossos erros de julgamento.

Richard Feynman, Prêmio Nobel de Física, conta (no livro O Sr. Está Brincando, Sr. Feynman?) que quando jovem fazia parte de uma Fraternidade universitária, aqueles grupos de estudantes que dividem o aluguel de uma casa (o que no Brasil chamamos de “república de estudantes”). 

Um dia, alguém desaparafusou e roubou a porta do quarto de alguns estudantes, para pregar-lhes uma peça. Todos puseram-se a investigar, e Feynman teve a idéia de incrementar a brincadeira. Durante a noite seguinte, ele fez o mesmo com a outra porta do quarto dos colegas, e a escondeu no porão. 

Ao amanhecer, novo reboliço. Os estudantes estavam irritados, e quando ele desceu para o café da manhã perguntaram: “Feynman! Foi você quem tirou a outra porta?!” E ele disse: “Oh, mas é claro que fui eu! Olha aqui esses arranhões na minha mão: foi quando eu carreguei a porta para escondê-la”. Os outros exclamaram; “Ora, vá se danar. Quem terá sido?...”

Feynman tinha dito a verdade, mas como seu tom de voz era sarcástico ninguém acreditou. Depois, a primeira porta foi encontrada, e os “ladrões” juraram de pés juntos que só tinham roubado uma. A Fraternidade convocou uma reunião para resolver o problema. 

Várias sugestões foram feitas, e então Feynman pediu a palavra. 

“Não precisamos saber quem roubou a porta”, disse ele; “é óbvio que é alguém metido a esperto. Muito bem, sr. Esperto, damos a mão à palmatória, reconhecemos que você é mais esperto do que nós todos. Não precisa se acusar. Basta deixar em algum lugar um bilhete dizendo onde está a porta, e nós reconheceremos que você é um Super-Gênio”.

Outro estudante sugeriu, então, que cada um deles jurasse, pela sua palavra de honra, que era inocente. E o presidente começou a interrogar: 

“Muito bem, vocês todos vão responder pela sua palavra de honra. Jack, você tirou a porta?” 

“Não, pela minha palavra de honra”. 

“Tim, você tirou a porta?” 

“Não, pela minha palavra de honra”. 

“Maurice, você tirou a porta?” 

“Não, pela minha palavra de honra”. 

“Feynman, você tirou a porta?” 

“Oh, sim, claro que fui eu que tirei a porta!...” 

“Que diabos, Feynman, estamos falando sério aqui, será possível? Sam, você tirou a porta?...”

E o interrogatório prosseguiu. Quando Feynman finalmente os convenceu de que tinha roubado a porta (e mostrou onde a escondera), todos o acusaram de ter mentido durante o interrogatório e faltado à sua palavra de honra. Ninguém lembrava textualmente do que ele dissera. 

Ele tinha dito a verdade, mas o tom de voz empregado, e a sua fama de gozador, tornaram invisível a verdade que ele dizia.





2130) Os negros somos nós (5.1.2010)




O Coração das Trevas de Joseph Conrad provoca num leitor civilizado de hoje (mais de um século depois da publicação original do livro) impressões contraditórias. Temos a sensação de que é a história do nosso povo que está sendo contada; em outros momentos, temos uma sensação parecida mas distinta. Tentarei esclarecer essa ambiguidade.

Heart of Darkness é a história de Kurtz, um europeu que se embrenha no Congo para administrar um entreposto comercial e, como tarefa colateral, civilizar os nativos. Não é bem isso o que ocorre, como Marlow (o narrador da história, que viaja de barco rio acima para trazer Kurtz de volta) vai percebendo aos poucos. 

 Kurtz é saudado por todos os europeus que o conheceram como um homem excepcional, um intelectual, artista, humanista, orador de enorme carisma. É o que o colonialismo europeu tem de melhor para enviar para essas colônias remotas, um “emissário da piedade, da ciência, do progresso”. 

Mas Marlow ouve rumores de que Kurtz coordena um enorme esquema de tráfico de marfim, feito à base de muita violência e desonestidade; e que estaria se entregando, nas profundezas da mata, a “certas danças, à meia-noite, que se encerravam com rituais indescritíveis, dedicados a ele, a Mr. Kurtz em pessoa”.

Em sua análise do livro de Conrad, Luiz Costa Lima (O Redemunho do Horror, Planeta, 2003) indica a falência do projeto colonial europeu afirmando que “em nenhum instante o desvio afirma a norma”. 

Ou seja: as coisas indizíveis praticadas no coração da selva pelos europeus não são uma traição à norma do colonialismo, não afirmam (por contraste, por serem irregularidades) a justeza do projeto colonial. Pelo contrário: são consequência inevitável dele. O desvio, diz ele, “é a prova de que o móvel primeiro da civilização branca é tão criminoso quanto as condutas que a moral vitoriana condenava”.

É a História do Brasil, não é mesmo? Nossa sociedade escravista baseada no sequestro e na tortura de milhões de negros; no extermínio e na degradação de milhões de índios. Mas existe uma frase-chave no livro, quando Kurtz afirma: 

“Nós, brancos, no estágio de desenvolvimento a que chegamos, devemos necessariamente parecer aos selvagens seres sobrenaturais – nós os abordamos com o poder de verdadeiras divindades, e pela simples manifestação da nossa vontade podemos exercer uma influência praticamente ilimitada para o Bem”.

Nesse momento das grandes crises econômicas, na década da Enron, de Dubai, do estouro da bolha capitalista, constatamos que é nossa história, sim – mas agora os selvagens somos nós, os pseudo-civilizados. 

O novo colonialismo é exercido por super-homens cuja existência, com cacifes de bilhões de dólares, ocorre numa estratosfera inacessível ao nosso pensamento. São seres sobrenaturais, sim, esses bilionários com seus jatos de luxo, banheiras de ouro, hotéis faraônicos. São os novos Kurtz com poder ilimitado para fazer o Bem – e o Mal. Os novos negros somos nós.






2129) Notas de um romancista burguês (3.1.2010)




(The Librarian, por Arcimboldo)

“Não queremos uma literatura que inclua galáxias, planetas, raças alienígenas e outros elementos fora de nossa jurisdição. Nosso mundo é centrípeto, uma espiral que converge para seu centro. 

"Passamos três séculos erigindo um sistema que tem na sua periferia atarefada a Ciência, a Tecnologia, a Economia, a Política, ou seja, as atividades transformadoras da matéria e das relações humanas. 

"O centro desse sistema é o objetivo final de sua criação: nossa vida cotidiana, nossa existência como pessoas, nossas casas, posses, famílias, relações interpessoais, triunfos e tragédias no âmbito doméstico e nos círculos de amizade e parentesco. É esta a matéria da nossa literatura.

“Queremos uma vida compreendida, codificada, na qual as únicas variáveis sejam os sentimentos humanos, esses deuses caprichosos que nos deleitam e governam. 

"Queremos uma literatura de arcabouço social fixo, com regras de mecânica newtoniana, para que em sua medula brotem o elemento lírico, as flutuações sentimentais, tudo que nos convence de que somos únicos, preciosos e insubstituíveis. O Universo como moldura para a História dos Nossos Sentimentos, a Saga das Nossas Famílias, a Crônica de Nossas Ascensões Sociais.

“Precisamos de um Universo meramente passivo, receptivo, que se mova e nos encante, pois que é espetáculo, mas com a previsibilidade de um protetor-de-tela. 

"Não queremos um Universo que venha a nos invadir e nos incomodar; nem um Universo que solicite nossa intervenção, incite a nossa cupidez ou nos acene com a possibilidade de aventuras. Domar a terra já nos deu aventuras de sobra durante três séculos, e nada nos impede de passar mais três a recontá-las.

“Livros existem para dar perpetuidade aos anos que passamos sobre a Terra; existem para preservar em belas frases o mesmo que os gregos preservaram no mármore e os florentinos na pintura a óleo. 

"A literatura deve ser a eternização do indivíduo, num mundo com três círculos concêntricos: por fora de tudo, um Universo num balé pré-coreografado pela Ciência; dentro dele, um entrechoque de forças históricas e sociais igualmente dinâmicas e mensuráveis; e no centro de tudo o Olimpo do Indivíduo, dos seus sentimentos e emoções, objetivo final de toda literatura que se preza.

“Chamamos a isto de Realismo porque este é o objetivo final de nossa luta pelo domínio da realidade: a fruição de nossas vidas individuais, de nossas relações domésticas, de nosso trabalho e nosso lazer. 

"Recusamos o heliocentrismo literário, a tese herética de que o Universo está no centro e o Homem na periferia. 

"Recusamos literaturas onde apareçam elementos que não façam parte do nosso mundo reconhecível. Como leitores, queremos espelhos onde nos possamos admirar e corrigir. Não queremos um espelho onde apareçam do lado de lá coisas que não estamos a ver do lado que nos pertence. Não foi para isto que passamos três séculos construindo um mundo à imagem e semelhança do nosso Umbigo.”





2128) Como ser um guerreiro medieval (2.1.2010)






A popularidade recente de livros e filmes como O Senhor dos Anéis faz parte de um renascimento da literatura de fantasia heróica no mundo inteiro, a partir dos países de língua inglesa. Aqui mesmo no Brasil pipocam a todo instante romances de autores jovens querendo reconstituir aqueles tempos épicos de grandes guerreiros e grandes batalhas. 

Um crítico referiu certa vez que ao contar as aventuras dos seus hobbitts Tolkien nos transmite de modo impressionante a sensação do que significa viajar a pé. A cada capítulo seus heróis se aproximam somente um pouco mais do lugar para onde vão. 

Tolkien era um escritor meticuloso, que calculava exatamente quantos quilômetros um caminhante poderia percorrer por dia, naquele terreno e naquelas condições. É muito diferente desses escritores que escrevem: “Tomada a resolução, o grupo de guerreiros pôs-se em marcha e alguns dias depois detinha-se diante do Castelo de Tremolidor. – Alto! Quem vem lá?! – bradou o sentinela”. 

Dribles retóricos desse tipo dão aos livros de fantasia um quê de ficção científica e do seu uso liberal da teleportagem.

Foi talvez pensando nisto que o escritor australiano Sean McMullen, ao iniciar a pesquisa para um desses romances de fantasia heróica (ele tem um Ph.D. em literatura medieval) decidiu fazer a experiência de caminhar como um cavaleiro medieval, experiência que ele descreve em detalhe na revista inglesa Foundation (n. 96, Spring 2006). 

McMullen vestiu uma roupa equivalente à de um guerreiro do século 12: botas, calças, provisões, etc. E pôs-se a caminho, com uma mochila de 30 kg às costas. 

Conseguiu cobrir 30 milhas em nove horas, o que dá cerca de 48km, ou pouco mais de 5km por hora – carregando um escudo, um machado e um elmo de 8kg na cabeça. Ao fim da caminhada, ele teria que simular uma batalha, e resolveu este detalhe programando uma competição de karatê na Universidade de Melbourne, seu ponto de chegada. Eis algumas das conclusões a que ele chegou:

“Pessoas que dependem dos pés como meios de transporte são extremamente defensivas e cuidadosas a seu respeito. Caminhando, a gente tende a se concentrar no que está imediatamente à frente, em vez de vigiar possíveis emboscadas, ficando assim vulnerável a elas. 

Paradas para urinar são insignificantes: parei apenas três vezes em nove horas, mesmo tomando três litros de água. 

Fome é algo importante. Sem nada para pensar enquanto se caminha, a gente se lembra o tempo todo da comida que está carregando. 

É possível lutar no dia seguinte após uma marcha forçada, mas não na mesma noite. 

Pilhagem: se se trata de algo mais pesado do que algumas moedas de ouro, melhor esquecer. 

Sexo: se a vítima for capaz de correr, provavelmente escapará. 

Vandalismo: somente para coisas facilmente quebráveis. 

Incêndios: uma perspectiva muito atraente depois de nove horas de marcha. Basta jogar algumas tochas, sentar-se com os pés para cima, e apreciar o espetáculo”.






2127) A sanfona de Sivuca (1.1.2010)




(Sivuca, por Leo Martins)

Vi esta história numa crônica de Itamar Assière no Jornal Musical e passo adiante conforme a li. O saudoso Sivuca, como todo mundo sabe, era gente fina, um sujeito de ótimo coração, cordial com todos, paciente com todos, apesar do seu jeitão meio arredio. 

Conta o cronista que certa vez o telefone de Sivuca começou a tocar, e era uma fã querendo propor um negócio a ele. Sua esposa Glorinha transmitiu-lhe o recado: a fã queria vender a sanfona. 

Ora, Sivuca já tinha sanfona para show, para gravação, para tocar em casa... Músicos gostam de ter vários instrumentos, para necessidades diferentes. Tenho amigos que têm meia dúzia de violões em casa: acústico, elétrico, de nylon, de aço, de 6 cordas, de 12, guitarra... Sivuca agradeceu à fã e disse que não precisava.

Ela deu vários telefonemas, insistindo para que o maestro lhe comprasse a sanfona, até que Sivuca cedeu e disse à esposa: 

“Vamos trazê-la aqui, e encerrar essa história. Se a sanfona for boa e valer a pena comprar, eu lhe peço um copo dágua. Se eu não pedir, é sinal para mandá-la embora com a sanfona”. 

A visitante veio no dia combinado, foi recebida na sala, abriu a caixa que trouxera. Sivuca quase caiu para trás ao ver (segundo o artigo) uma sanfona Scandali IV-4S, de “baixo amarelo”, uma preciosidade antiga – e praticamente intacta, inclusive a caixa. A visitante explicou que o pai lhe dera o instrumento quando ela era pequena, querendo que a filha aprendesse. 

“Mas eu não tenho jeito pra tocar”, disse ela, “e queria que a sanfona ficasse com alguém que sabe”. 

Sivuca engoliu em seco e gritou lá pra dentro: “Glorinha, traga um balde dágua, geladíssima, porque eu tô aqui me acabando de sede!!!”.

O remate da história é que a tal senhora, que não era do ramo, pediu um preço muito baixo pelo instrumento. Sivuca explicou que ele valia três vezes mais, e pagou-lhe o preço que considerou justo. 

O episódio é curioso porque ele retrata o sonho dourado de todo colecionador: encontrar um tesouro nas mãos de um vendedor inocente que pede por ele um preço de banana. 

No caso de uma negociação personalizada como essa, e diante de uma pessoa que visivelmente está de boa fé, não há como negar que Sivuca procedeu corretamente, e ainda saiu ganhando. Se encontrasse a sanfona nas mãos de uma “raposa” do ramo, talvez tivesse que pagar o dobro do que acabou pagando.

Uma vez parei numa calçada do Catete e fiquei avaliando os livros espalhados na lona. Examinei alguns (os preços estavam marcados a lápis) e perguntei o preço de um volume em capa dura, que não tinha preço anotado e valeria uns 15 reais. O vendedor olhou para minha roupa, meus sapatos, a pasta que eu segurava, e cobrou 50 reais. 

Agradeci, botei o livro lá e acabei levando outro que estava do lado, por um real. Era uma primeira edição de Os Prisioneiros de Rubem Fonseca, pela qual eu pagaria de bom grado até mais do que 50, se o cara não tivesse bancado o esperto.






2126) As catástrofes nos salvarão (31.12.2009)



(H. G. Wells)

O ser humano tem embutidos em si três sistemas. O primeiro é um sistema auto-gratificante, que busca apenas o prazer, o conforto, a comodidade. O segundo é um sistema auto-destrutivo, que nos leva a buscar os limites de algo que está nos atraindo, mesmo que isto nos custe a vida. E o terceiro é um sistema auto-preservador, que nos faz dar um pulo-do-gato quando menos se espera, e reagir diante de uma calamidade com reservas insuspeitadas de seja-lá-qual-for a qualidade de que precisamos para escapar: força, rapidez, inteligência, esperteza, coragem moral, solidariedade coletiva, tudo de que parecíamos ser incapazes. Já aconteceu antes. Acontece o tempo todo. Está acontecendo agora, quando estamos passando do estágio 1 (auto-gratificação) para o 2 (auto-destruição).

Criamos a civilização suicida baseada na Lei do Menor Esforço Físico e Mental. Os automóveis foram inventados para nos dar mais velocidade, para que pudéssemos sair do Sertão de manhãzinha e chegar à praia a tempo para o almoço. Hoje, estamos escravizados a eles a ponto de pegá-los na garagem para ir comprar o pão na padaria da esquina (onde é preciso parar em mão dupla, sair correndo, pegar o pão, apaziguar o guarda). Inventamos um tal de controle remoto para não termos que levantar do sofá. E nos queixamos de varizes, doenças cardiovasculares, obesidade e flatulência.

Fecho com H. G. Wells, quando ele dizia, em A Máquina do Tempo, sobre a indolente e passiva raça dos Elois: “A segurança excessiva em que viviam os habitantes do Mundo Superior os conduzira a um lento processo de degeneração, fazendo com que diminuíssem em tamanho, em força e em inteligência. (...) Pela primeira vez comecei a perceber uma consequência bizarra dos esforços sociais nos quais estamos mergulhados em nossa época. E não obstante é uma consequência bastante lógica. A força é um resultado da necessidade; a segurança conduz ao enfraquecimento. O esforço para melhorar as condições de vida – o verdadeiro processo civilizatório que torna a vida cada vez mais segura – tinha avançado até atingir o clímax. Cada triunfo conjunto da humanidade sobre a Natureza tinha sido logo seguido por outro. Coisas que hoje não passam de sonhos tinham se transformado em projetos que alguém levou a cabo. E o resultado era aquele! (...) Mas com essa mudança de condições vem, inevitavelmente, a necessidade de adaptação às novas condições produzidas pelas mudanças. Qual é, a menos que nossa ciência biológica seja uma montanha de erros, a causa da inteligência e do vigor da raça humana? Uma vida livre enfrentando condições adversas, condições nas quais os indivíduos ativos, fortes e sagazes sobrevivem, e os fracos são condenados; condições que premiam a capacidade dos homens para o esforço conjunto e solidário, além do auto-controle, da paciência, da capacidade de decidir.”

O progresso está nos destruindo, mas as catástrofes nos salvarão.