domingo, 16 de maio de 2010

2050) “Terra em Transe” (3.10.2009)



Liguei a TV por acaso e vi a imagem em P&B de um mar filmado de cima para baixo, ao som de vozes e atabaques de candomblé. Era a primeira cena de Terra em Transe, de Glauber, filme que eu não revia há uns dez anos. Plantei-me ali em frente e só saí quando acabaram os letreiros finais e voltou o logotipo do Canal Brasil. Tenho o DVD em casa, mas ver na TV é diferente. Não sei por que. A imagem é praticamente a mesma. O DVD tem a vantagem dos “extras”, a vantagem de poder parar, voltar, ver de novo... Mas ver o filme passando na TV a cabo nos dá uma sensação de vida real. Aquilo está acontecendo, independente de nossa vontade. Eis uma boa definição para vida real: algo que não depende de nós para continuar acontecendo. Ver o filme na TV me dá a sensação de estar numa experiência coletiva como a da sala do cinema, de estar vendo aquilo na companhia, mesmo implícita e virtual, de um bocado de gente. O DVD é uma experiência solitária, intransferível, não compartilhável.

Terra em Transe é meu filme preferido de Glauber, acho que por ter sido o primeiro que vi, em 1968 (só assisti Deus e o Diabo algum tempo depois). O impacto que senti foi de um tiro de canhão na caixa-dos-peitos. Glauber foi o rei do filme B, do filme feito com recursos toscos. Ele pegava uma dezena de excelentes atores que eram seus amigos, uma parelha respeitável de fotógrafos (Barretão e Dib Lufti), e saía de rua afora como quem puxa sozinho um bloco de carnaval. Hoje os problemas técnicos aparecem muito mais, principalmente os de sonorização. Glauber dublava as vozes dos atores; praticamente não há som ambiente, são apenas as vozes, e por trás delas uma cacofonia de efeitos que parecem uma “Revolution 9” dos Beatles “avant la lettre”: é jazz, é tiroteio, é rufar de bateria, é vozerio de multidão. A impressão é a menos realista possível.

Na época eu não conhecia as locações do filme, que hoje me são familiares: o Parque Lage (cenas do governador Vieira, José Lewgoy), o Teatro Municipal (cenas com Porfírio Diaz, Paulo Autran). O Eldorado fictício do filme me lembrava um conjunto de arquiteturas barrocas numa paisagem amazônica; aquilo parecia mais Manaus do que o Rio de Janeiro. O teatralismo delirante das falas e das interpretações está aqui no ponto ideal, ponto que infelizmente seria ultrapassado nos filmes que Glauber fez nos anos 1970. As críticas políticas são surpreendentemente atuais. E o fascista Diaz está a cara do atualmente grisalho Fernando Collor, inclusive “o olho rútilo e o lábio trêmulo”. Só falta alguém pegar os dois e fazer uma montagem-paralela no YouTube.

Continua a ser meu filme preferido de Glauber. É uma explosão de criatividade e erros, de improvisação criativa e precariedade técnica, de melodrama político e semi-documentarismo sem roteiro. Como obra de arte cinematográfica, tem virtudes e defeitos. Como retrato de sua época e do seu autor, não tem igual.

2049) A afinidade criativa (2.10.2009)





É bem conhecido o reparo feito por Julio Cortázar a uma das mais célebres afirmativas estéticas de Edgar Allan Poe, em sua “Filosofia da Composição”. Ao explicar como concebeu seu poema “O Corvo”, Poe explica a escolha do tema central, a morte de uma bela mulher, por ser este “o mais poético dos temas”. 

Cortázar observa que “nada de livre há nessa imposição profunda da sua natureza”. O tema é poético para Poe, por corresponder a uma obsessão pessoal sua, mas mil outros poetas se sentirão autorizados a escolher mil outros temas como “o mais poético”, de acordo com suas próprias idiossincrasias.

Grandes artistas são, em geral, grandes intuitivos que se deixam arrebatar por obsessões que compreendem mal-e-mal. Passado esse arrebatamento inicial, eles constroem todo um edifício de estruturas cuidadosamente pensadas em cima desse alicerce de fantasias inconscientes. Tais fantasias, muitas vezes, são uma tubulação inesgotável de combustível que lhes sustenta o trabalho intelectual. Sem essa fixação quase monomaníaca no que lhe parece belo, ou importante, ou profundo, ou inquietante, ou vital, nenhum trabalho intelectual se sustenta, ou produz algo que preste.

Alguns artistas sentem isto com temas, situações humanas. Para outros pode ser uma simples afinidade com certas formas. 

Em The Creative Process (editado por Brewster Ghiselin), Julian Levi explica: 

“O artista se relaciona afetivamente com certas formas e desenhos. Acho que as suas escolhas são canalizadas pela compulsão de encontrar um veículo objetivo para imagens plásticas que ele tem no seu interior. Com certeza não sei por que, mas eu sou particularmente atraído por certas relações geométricas, certas formas retangulares e arabescos das quais nascem harmonias e ritmos peculiares. Ao decidir os temas sobre os quais vou pintar, sou irresistivelmente atraído para objetos que contenham o esqueleto desse tipo de estrutura visual.”

Isso tanto se dá com imagens quanto com estruturas narrativas. 

Por que John Dickson Carr escreveu dezenas de histórias sobre crimes impossíveis em quartos fechados por dentro? 

Por que Salvador Dali pintou chifres de rinocerontes a vida inteira? 

Por que Maurice Leblanc escreveu dezenas de histórias sobre crimes insolúveis do passado sendo decifrados no presente? 

Por que Machado de Assis dedicou-se a explorar a arte combinatória do adultério conjugal? 

Por que Francis Bacon pintava papas visualmente deformados? 

Por que Luís Buñuel passou a vida filmando um homem idoso tentando possuir uma mulher loura? 

Por que Borges escreveu repetidamente sobre labirintos?

Naquele mesmo livro, diz o artista Henry Moore: “Existem formas universais às quais cada indivíduo está condicionado inconscientemente, e às quais ele pode responder, desde que seu controle consciente não o bloqueie”. Quanto mais mergulhamos na obra de um artista mais percebemos as formas e temas que o impulsionam e o obrigam a criar.








2048) Micronações (1.10.2009)



Uma micronação é um pequeno território que se auto-proclama independente, elege um presidente (ou coroa um rei), manda compor um hino e desenhar uma bandeira, e daí em diante passa a se comportar como se fosse um país igual a qualquer outro, mesmo que tenha apenas meia dúzia de quilômetros quadrados e três dúzias de habitantes. Não preciso ir muito longe para me fazer entender: a “República de Princesa”, proclamada em 1930 pelo Coronel José Pereira, é um exemplo bem nosso de um processo que sempre ocorreu mundo afora, embora não conheçamos esses casos (como aliás pouca gente, fora da Paraíba, sabe da história de Princesa).

Talvez a mais famosa micronação do mundo seja Mônaco, que todo mundo conhece por causa do Grande Prêmio de Fórmula 1, do fato de que teve como princesa uma atriz de Hollywood (Grace Kelly), e dos cassinos de Montecarlo. Na verdade Mônaco é uma cidade-estado: os limites da nação coincidem com os limites da própria cidade, encurralada entre a França e o Mar Mediterrâneo. Sua área é de 2 km quadrados; sua população de 33 mil pessoas. Tenho pra mim que se Campina Grande cismasse dos pés e decidisse ficar independente, teria um cacife geopolítico muito maior.

Minto. A micronação mais famosa é a Cidade do Vaticano, uma ilha cercada de Roma por todos os lados. Dizem as más línguas, em todos os idiomas, que foi uma concessão territorial feita por Mussolini à Igreja Católica, o que teve como contrapartida uma prudente omissão papal diante das truculências subsequentes do fascismo. O Vaticano tem 0,44 km quadrados e uma população avaliada (em junho de 2009) em 826 habitantes.

Como se pode ver, são duas nonadas, duas tutaméias, duas pixilingas de país, e não obstante o mundo inteiro os conhece e respeita. O Vaticano rege a vida espiritual de um bilhão de pessoas. Mônaco é uma espécie de “Ilha de Caras” européia, um lugar que parece ter metade da população de gente rica e famosa, e a outra metade de “paparazzi”. Claro que nenhum dos dois resistiria a uma invasão armada, e até mesmo o Coronel Zé Pereira, se invadisse um dos dois, teria boas probabilidades de um belo triunfo militar.

Esta é uma questão interessante, porque a micronação é um fenômeno que irá se multiplicar no mundo caso venhamos a passar por uma grande catástrofe mundial (por exemplo, quando os Bancos quebrarem de novo e os Governos não tiverem 4 ou 5 trilhões de dólares sobrando; ou quando cair um grande meteoro no planeta). Quando um Estado central não consegue mais administrar a vida do país, a tendência é que ele se estilhace em pequenos feudos, onde caudilhos locais se encarregarão de armar parte da população para auto-defesa, e de coordenar a produção e distribuição de alimentos. Estas últimas décadas têm visto em grande escala a fragmentação de conglomerados em nações menores. Os exemplos mais evidentes são a URSS e a Iugoslávia. Gostaria de saber quantas e quais serão as principais micronações do mundo daqui a 50 anos.

2047) O respeito ou o afeto (30.9.2009)




Eu estava passando um fim-de-semana na casa de praia de uns amigos, anos atrás. Aliás, éramos eu e a torcida do Flamengo, porque tinha gente dormindo até na sala, e o almoço era em duas rodadas, cada qual com a mesa toda ocupada. 

A filha dos donos da casa, que teria uns 15 anos, tinha um jogo de xadrez bem bonitinho e chamava todo mundo para jogar. Joguei uma partida com ela no terraço, meio distraído, enquanto o pessoal tocava violão perto. Eu jogava, cantava um pouco, tomava cerveja... Levei xeque-mate, e a menina ficou super-orgulhosa. 

Cedi meu lugar a outro amigo, digamos que se chama Beto. Ele sentou-se, arrumou as peças, e mal começou a partida partiu pra cima “como a vaca partiu pra mestre Alfredo”. Massacrou o exército adversário e deu xeque-mate em cinco minutos. A menina recolheu as peças e recolheu-se, melancólica, para dentro de casa. 

Falei com Beto: “Devia ter deixado ela ganhar, como eu deixei.” (Mentira: se desse pra ganhar, eu tinha ganho.) Ele perguntou: “Pra quê deixar ganhar?” Eu: “Ela ficaria gostando de você.” Beto: “Eu não quero que ninguém goste de mim. Eu quero é que me respeitem”.

Esse dialogozinho de auto-ajuda ficou durante anos caraminholando no meu juízo, porque parecia uma conta de dividir com números primos, não fechava nunca um resultado definitivo. Tudo nessas frases é altamente questionável. 

Primeiro, a minha mentirazinha inofensiva. 

Segundo: a gente fica gostando de alguém a quem derrota num jogo? 

Terceiro: ser derrotado num jogo é a melhor maneira de ser gostado por alguém? (Se fosse, o Campinense seria o time mais querido do Brasil.) 

Quarto: quando a gente arrasa alguém num jogo, fica sendo respeitado? 

Quinto: o que é melhor, ganhar o afeto dos outros, ou ganhar-lhes o respeito? Sexto: uma coisa exclui a outra?

Desse mini-episódio me ficou a impressão de que eu era um deficiente afetivo. Facilitava a vitória de uma garota, num jogo bobo, apenas para que ela saísse dali pensando que eu era “um cara legal”, não por qualquer virtude visível em minha pessoa, mas porque eu entrara, como-Pilatos-no-Credo, num pequeno episódio de afirmação pessoal lá dela. 

E eu não “era legal”, na verdade; apenas quando alguém falasse um dia em mim ela se lembraria de um episódio “legal” que tinha vivido, derrotar um adulto num jogo. E eu era tão carente de “ser legal para os outros” que uma idiotice desse tipo era contabilizada como lucro em meu livro-caixa.

Por outro lado... E Beto, era carente do quê? Carente de respeito, como ele próprio deixou claro. Preferia ser temido a ser amado. Talvez sua truculência tivesse um aspecto positivo: eu podia ser tomado como hipócrita, ele não. Com ele, era pão-pão, queijo-queijo. Não estava ali a fim de representar, de ser bonzinho com ninguém. 

Queria respeito, exigia respeito, precisava desesperadamente de respeito, como um náufrago à deriva precisa de água potável, de preferência gelada, de preferência água-de-coco.






2046) David Lynch (29.9.2009)



Tempos atrás, juntei-me a uma fila de mais de cem pessoas, numa livraria do Rio de Janeiro, para pegar um autógrafo do cineasta David Lynch, que esteve no Brasil lançando seu livro mais recente. Comprei o livro, e meu filho pegou seu autógrafo no DVD de Eraserhead, o primeiro filme (e certamente o mais bizarro) da obra do diretor de O Homem Elefante, Twin Peaks, Veludo Azul e Cidade dos Sonhos. Lynch veio aqui para lançar um livro de anotações e reflexões sobre meditação transcendental, que ele pratica há décadas. O livro é dedicado ao Maharishi Mayeshi Yogi, acho que o mesmo que passou um tempo levitando com os Beatles no auge do sucesso.

David Lynch é o Luís Buñuel dos EUA. Por mais diferentes que sejam um do outro (e nem sei se o americano gosta dos filmes do espanhol) os dois têm em comum o gosto pelo imprevisível, pelo inexplicável. Não há nem pode haver nenhuma explicação racional que “feche a conta” de um filme de Lynch ou de Don Luís. Eles sempre deixam resto. Sempre deixam uma margem de obscuridade que nenhuma razão ilumina. E nessa margem de obscuridade estão ocultos conceitos centrais sobre a história narrada; o fato de que não podemos explicá-los faz com que qualquer explicação sobre a história esteja eternamente dependendo dessas variáveis que não conseguimos definir.

Os filmes de Lynch são mórbidos e doentios. E no entanto eles me parecem menos mórbidos e doentios do que os filmes estrelados por Chuck Norris e Steven Seagal. Por que? Os filmes destes últimos se baseiam numa equação muito simples: o mundo é um lugar selvagem, violento, cheio de gente má, e a única maneira de sobreviver nele é ser mais selvagem, mais violento e mais mau do que os que nos ameaçam. (Preciso citar Augusto dos Anjos, mais uma vez?) Já os filmes de Lynch nos dizem que o mundo é um lugar estranho, desagradável, inexplicável; e que o ser humano é uma espécie de trapo pensante flutuando na correnteza de um esgoto e fazendo gestos incompreensíveis para os ratos que o observam das margens.

Lynch é uma espécie de Samuel Beckett “pop”. Existe nos dois a mesma repulsa instintiva pelo corpo humano, pelo sexo, pelas funções fisiológicas, pelo mero fato de sermos feitos de carne e termos as necessidades da carne. Beckett explora essa visão-do-mundo num contexto de vanguarda e de máxima rarefação da linguagem, desbastando-a até o minimalismo. Lynch explora esses temas no contexto tecno-barroco do cinema comercial americano; em vez de limar a linguagem até não deixar quase nada, ele a destrói de dentro ao multiplicá-la, porque multiplica os curto-circuitos narrativos, deixando desnorteado o espectador de filmes como “A estrada perdida”. Beckett acha a vida humana absurda e isto o faz sofrer, o reduz ao silêncio. Lynch também acha, mas isto de certa forma o diverte. Em vez de reduzir-se ao silêncio, ele dinamita o discurso pelo lado de dentro, e faz um cinema americano que é a negação do cinema americano.