sábado, 8 de maio de 2010

2020) O concurso Bulwer-Lytton (29.8.2009)




(Bulwer Lytton)

No Concurso de Frases Bulwer-Lytton, realizado todos os anos, são premiadas as piores frases de abertura para um romance. As frases são inventadas pelos concorrentes, como frases de abertura de romances que não existem. 

O concurso homenageia Bulwer-Lytton, romancista britânico, autor de Os Últimos Dias de Pompéia e Zanoni, que iniciou seu romance Paul Clifford assim: 

“Era uma noite escura e tempestuosa; a chuva caía em torrentes, exceto em intervalos ocasionais, quando era interrompida por uma violenta rajada de vento que varria as ruas (pois é em Londres que nossa cena transcorre), fazendo estremecer os telhados, e agitando ferozmente a miúda chama dos lampiões que lutavam contra a escuridão”. 

Francamente, não acho que a frase seja tão ruim a ponto de entrar para a História, mas talvez eu a esteja comparando com alguns dos exemplos – estes sim, teratológicos – que o pessoal inventa e envia.

Uma frase vencedora enviada por um tal Garrison Spik: 

“O amor entre eles era um amor de Nova York, um táxi xadrezado cantando pneus nos asfalto, e, assim como a cidade, sua paixão estava em funcionamento 24 horas por dia, 7 dias por semana, o vapor se elevando dos seus corpos como as ruas luzidias exalando seu bafo quente, úmido e branco através de tampas de esgoto onde se lia “Fabricado por DeLaney Bros., Piscataway, New Jersey”. 

Esta é uma daquelas frases em que uma metáfora se recusa a abandonar o texto e vai progredindo em escala ascendente rumo ao absurdo. É quase uma “patáfora” (ver “A Patáfora”, 12.2.2006). O sujeito começa a fazer uma comparação e a imagem usada para comparação apossa-se do texto e acaba por criar uma realidade própria.

Jim Gleeson produz um efeito equivalente com outros recursos: 

“George começou – mas foi interrompido por um apito penetrante que prejudicou dez por cento de sua audição pelo resto da vida, assim como a todas as pessoas num raio de dez milhas em volta da erupção, não que isso tivesse muita importância, porque ‘o resto da vida’ significou apenas os próximos dez minutos, mais ou menos, antes que fossem todos sepultados pela lava fervente ou sufocados pelas cinzas asfixiantes – a urinar”. 

Escritores adoram interpolar essas cláusulas longuíssimas no meio de um período, achando que isto os assemelha a Marcel Proust. Não é bem o caso, e nada como uma caricatura mordaz para acender nosso desconfiômetro.

O estudo da má literatura pode ser tão útil quanto o estudo da boa literatura. É mais ou menos como num curso de Medicina os alunos precisam estudar tanto o funcionamento correto de um órgão quanto as suas doenças e suas deformações. 

Frases como as do concurso Bulwer-Lytton são exemplos concebidos por pessoas que talvez nem sejam grandes escritores, mas conhecem técnica literária bastante para reproduzir, de maneira caricatural e grotesca, certos tipos de erros em que qualquer escritor, mesmo entre os melhores, incorre cedo ou tarde.





2019) A Razão e a Fé (28.8.2009)



O problema com a Razão é que ela é incapaz de sustentar-se sozinha: precisa sempre se apoiar em algum tipo de Fé. 

Para meus amigos cartesianos, a Razão é uma espécie de solvente universal, que tudo liquefaz. Mas o cientista que vive da Razão não pode abrir mão da Fé. Não a fé no sobrenatural, mas, justamente, a fé no natural. A crença de que o mundo da matéria se baseia em constantes, em continuidades. A fé na coerência dos fenômenos físicos. 

É esse tipo de fé que garante (a mim pelo menos) que amanhã o sol vai nascer aproximadamente no mesmo ponto do horizonte em que nasceu hoje, e não 20 graus à direita ou à esquerda. Que a água vai ferver a 100 graus, e não a 120 ou a 67. Que as constelações de ontem irão se repetir no céu de hoje. Que (enfim) o Universo não muda as regras do jogo do dia para a noite. 

Por mais que ocorram fenômenos inexplicáveis, o que foi explicado se repete, se repetidas as condições iniciais. Eu tenho fé nisso, como tenho na minha própria existência.

Por isso, não devemos ficar irritados quando pessoas diferentes têm fé em outras coisas. A Fé é um sentimento essencial na vida, e vai muito além do mero misticismo ou da mera religião. Não uso o termo “mero” para desvalorizar essas coisas, mas para lembrar que são facetas de nossa vida mental. 

A Fé também é algo que vai além da mera ciência, da mera arte, da mera filosofia. Quando educamos uma criança, é essa Fé que estamos lhe transmitindo. Quando lhe ensinamos que este objeto se chama por esta ou aquela palavra, estamos lhe transmitindo uma das bases dessa continuidade. 

(Falo isto porque já li experiências sobre crianças de 1 ou 2 anos a quem todo dia se ensinavam nomes diferentes, e inventados, para os objetos, para ver como elas reagiam. Reagiam, penso eu, com confusão mental e desinteresse pelas coisas.)

Um dos contos de ficção científica mais atemorizantes e mais comoventes que já li foi “The safe-deposit box” de Greg Egan. Por um fenômeno cuja razão não vem ao caso (mas é explicada no final da história, mesmo que de forma fantástica) o protagonista é uma mente, um “Eu”, que todos os dias de sua vida desperta num corpo diferente, de alguém com aproximadamente sua idade cronológica, em uma cidade de tamanho médio. Sempre foi assim. Num dia ele acorda na casa de José, no corpo de José; na manhã seguinte, na casa de Antonio e corpo de Antonio; no outro, na casa de Manuel e corpo de Manuel... 

Quando o conto começa, ele tem cerca de 30 anos de idade e conseguiu, ao longo desses milhares de saltos inexplicáveis, criar uma história pessoal para si, uma biografia que guarda num cofre de segurança num banco da cidade.

Esse sentido de continuidade, mesmo nas condições mais adversas, é o que mais precisamos conservar. Precisamos de um senso de continuidade do Eu e de um senso de continuidade do Mundo. Nada nos prova de que essa continuidade existe, mas sem essa Fé não há religião, não há filosofia, não há ciência e não há vida.






2018) A “Montanha” de Jodorowsky (27.8.2009)



A Montanha Sagrada é o último filme na Mostra de Alejandro Jodorowsky que está em exibição no Cine SESC, no centro de João Pessoa (Rua Desembargador Souto Maior, 281). As sessões são gratuitas, e acontecem ao meio-dia e às 18 horas. O telefone do Setor de Cultura do SESC é 3208-3158.

Jodorowsky, chileno de origem russa que se tornou famoso fazendo teatro na França e depois cinema nos EUA e México, é um dos expoentes menos conhecidos, aqui no Brasil, da Contracultura dos anos 1960-70, da qual fez parte com uma intensa atuação, que continue até hoje, na literatura, cinema, histórias em quadrinhos, teatro, o escambau. Ele é um desses criadores infatigáveis que mal acordam já estão escrevendo, desenhando, interpretando, combinando formas, associando idéias... Tudo que faz é genial? Nem de longe. Faz um monte de coisas que (pra mim pelo menos) não fazem muito sentido. Mas com 80 anos recém-completados é uma usina de criatividade, energia e bom-humor. Dois anos atrás, assisti um debate com ele aqui no Rio, e pensei que era da minha idade.

A Montanha Sagrada é uma alegoria que lembra certas obras de Glauber Rocha como Cabeças Cortadas. (Eita, com essa referência já fiz 100 mil leitores desistirem de ver o filme!) Mas vai muito mais longe e mais fundo que o filme de Glauber, e tem uma narrativa onde o alegórico, o absurdo, o fantástico e o humorístico se alternam. É a trajetória de um indivíduo chamado O Ladrão através de estágios sucessivos de iluminação e de estudo, conduzido por uma espécie de Alquimista, sobre a verdadeira natureza da sociedade político-militar-industrial em que vivemos.

Moebius, o parceiro de Jodorowsky em HQ, dizia que a cabeça dele funcionava “como 3 mil computadores enlouquecidos”, e conta um episódio de quando estavam tentando adaptar o romance de FC Duna (que acabou sendo filmado por David Lynch). Discutiam como deveriam se vestir os nobres da Casa de Harkonnen. Jodorowsky tapou os olhos com a mão, andou até as estantes, tateou ao acaso, pegou um livro qualquer, abriu ao acaso, e encontrou uma reprodução de um quadro de Ticiano. “Vão se vestir assim!”, bradou ele, para horror e escândalo de Moebius, o qual, por mais maluco que seja (e não é pouco) teve uma formação francesa e cartesiana. “Percebi depois,” confessa o desenhista, “que esse método maluco de Alejandro nos mostra que o ponto de partida criativo pode ser qualquer um, e quanto mais inesperado melhor, porque abre caminho para a contribuição do nosso inconsciente, que sabe tudo”.

Em seu clássico estudo Midnight Movies, J. Hoberman e Jonathan Rosenbaum comentam que “Jodorowsky pode ser visto como um oportunista em estética, numa tradição compartilhada por camelôs de símbolos, de talentos variados, como Shuji Terayama, Fernando Arrabal, Jean Cocteau e Ken Russell”. A Montanha Sagrada, co-produzido por John Lennon, é a produção mais ambiciosa de Jodorowsky e, para alguns, seu melhor filme.

2017) “El Topo” (26.8.2009)



“El Topo” significa “a toupeira”, um animal subterrâneo que vive cavando na escuridão e um belo dia, por acidente, vem dar à superfície da terra, em pleno sol do meio-dia. É uma metáfora para a iluminação (no sentido místico, esotérico) que às vezes acomete um indivíduo sem que ele a procure. O raio divino que cai sobre Saulo na estrada de Damasco, o “estalo” do Padre Vieira, a epifania de Nietzsche na montanha tendo o vislumbre instantâneo do Eterno Retorno.

El Topo está sendo exibido apenas hoje na Mostra Jodorowsky do Cine SESC, no centro de João Pessoa (Rua Desembargador Souto Maior, 281). As sessões são gratuitas, e acontecem ao meio-dia e às 18 horas. O telefone do Setor de Cultura do SESC é 3208-3158.

Alejandro Jodorowsky fez este faroeste metafísico em 1970, misturando influências de Sérgio Leone (que na época não era considerado mestre coisa nenhuma, era um mero diretor de bang-bangs italianos), Luís Buñuel, Glauber Rocha (isto quem diz sou eu), o Teatro do Absurdo, Samuel Beckett, e inúmeros elementos da Contracultura hippie dos anos 1960 (visões lisérgicas, misticismo oriental, xamanismo, etc.). O resultado é um filme tecnicamente precário mas surpreendente e fascinante. Hoje, um filme mais difícil de aceitar do que na época em que saiu, porque é fruto daquele período em que havia uma propensão muito maior para o que eu chamo de “filme B para intelectuais”. Hoje em dia, o cinema se dedica a produzir filmes A para analfabetos.

“A Toupeira” é um cowboy vestido de preto, que cavalga pelo deserto levando um menino nu (seu filho) na garupa e um enorme guarda-chuva que o protege do sol. O ator é o próprio Jodorowsky, e o pistoleiro irá enfrentar ao longo do filme uma série de aventuras surrealistas. Depois de exterminar um coronel e seu grupo de bandidos, ele é forçado a enfrentar quatro mestres pistoleiros que lhe darão lições de sabedoria antes de serem mortos. Depois passa por um processo de morte e ressurreição (o filme já foi descrito como “um western-spaghetti budista”) e transforma-se num monge mendicante, antes de ajudar na libertação de um povo que vive numa caverna, no interior de uma montanha.

El Topo se beneficiou de ter participado em 1970 de um festival de cinema de vanguarda no cinema Elgin, em Nova York, em que também foram exibidos filmes de John Lennon e Yoko Ono. Visto e elogiado pelo casal, o filme ficou em cartaz em sessões à meia-noite (por ser considerado “forte” para o público normal), sete noites por semana, de dezembro de 1970 até junho de 1971, sem nenhuma publicidade além do boca-a-boca, rendendo ao exibidor cerca de 4 mil dólares por semana. Deve-se em grande parte a ele o conceito de “midnight movie”: filmes que contém sexo e violência, linguagem anti-convencional, produção barata, idéias pouco ortodoxas, com forte apelo para públicos específicos, e capazes de desencadear um culto que os mantém em evidência décadas depois de sua realização.

2016) Mostra Jodorowsky em JP (25.8.2009)



O Cine SESC, no centro de João Pessoa (Rua Desembargador Souto Maior, 281) está exibindo esta semana uma mostra do cinema de Alejandro Jodorowsky, sobre quem já escrevi nesta coluna. A Mostra exibiu ontem, segunda-feira, La Cravate, curta-metragem de 1957. Hoje, passa Fando e Lys (1968), uma parceria do diretor com o espanhol Fernando Arrabal (o autor de Piquenique no Front e outros clássicos do teatro do Absurdo). Amanhã será exibido o faroeste metafísico El Topo (1970), que tornou Jodorowsky um sucesso “cult” em Nova York e criou, de certo modo, o gênero chamado de “midnight movies”. E na quinta-feira passa A Montanha Sagrada (1973), que em termos das produções precárias e inventivas do diretor pode ser chamado de super-espetáculo. As sessões são gratuitas, e acontecem ao meio-dia e às 18 horas. O telefone do Setor de Cultura do SESC é 3208-3158.

Jodorowsky é uma figura fascinante, e em 2007 foi exibida aqui no Rio de Janeiro uma mostra bem mais extensa de sua obra, inclusive o longa Santa Sangre e vários curtas. Um dos aspectos mais interessantes do diretor salta aos olhos quando a gente folheia um catálogo ou um apanhado qualquer de críticas a seu respeito: é a enorme variedade de nomes com os quais ele é comparado. Uns citam Sérgio Leone, outros Rocky Horror Show. Alguns o comparam aos quadrinhos de FC de Moebius e outros aos filmes de Buñuel . Seu estilo fragmentado e surpreendente lembra o de Glauber Rocha e também o de David Lynch. Sua predileção foi criaturas grotescas evoca Fellini e ao mesmo tempo evoca o Expressionismo alemão.

Jodorowsky é um desses criadores inquietos que estão se lixando para coerência estética ou para a criação de um “estilo pessoal”. Uma das características mais interessantes do seu cinema é uma sensação permanente de que tudo pode acontecer, de que não existe nenhuma regra, nenhum limite, nenhuma barreira. Em vez de ser um cineasta até a medula, ele é um criador híbrido, que escreve romances e poemas, investiga o Tarô e a magia, escreve histórias em quadrinhos e peças de teatro, recorre ao romance policial, à ficção científica e ao surrealismo. Ou seja, todos esses gêneros ou linguagens são meros instrumentos dos quais ele lança mão quando lhe convém, criando uma “salada” expressiva que poderia resultar em mero papel-carbono, se não fosse justamente essa permanente imprevisibilidade que ele impõe a suas narrativas.

Os filmes de Jodorowsky não são para qualquer público, e eu pagaria o preço de dez ingressos pelo prazer de ver um “público de cinema de shopping” entrando, inadvertidamente, numa sessão de El Topo pensando que se trata de um filme de cowboy, ou de A Montanha Sagrada pensando que se trata de um filme místico. Cada um deles é exatamente isso, mas de uma maneira tão inesperada e heterogênea que um espectador casual correria o risco de fritura irremediável dos neurônios.

2015) O soneto de Euclides (23.8.2009)



O caderno “Prosa & Verso” do Globo, dias atrás, publicou um soneto de Euclides da Cunha que eu lembrei de ter lido em algum compêndio escolar, mas tinha esquecido por completo. 

O original está manuscrito por cima de uma foto de Euclides, entre amigos, numa comissão de exploração do Alto Purus, na Amazônia, em 1905. E merece um pequeno exame. Diz o soneto: 

Se acaso uma alma se fotografasse 
de sorte que, nos mesmos negativos, 
a mesma luz pusesse em traços vivos 
o nosso coração e a nossa face; 

e os nossos ideais, e os mais cativos 
de nossos sonhos... Se a emoção que nasce 
em nós, também nas chapas se gravasse 
mesmo em ligeiros traços fugitivos; 

amigo! Tu terias com certeza 
a mais completa e insólita surpresa 
notando – deste grupo bem no meio - 

que o mais belo, o mais forte, o mais ardente 
destes sujeitos é precisamente 
o mais triste, o mais pálido, o mais feio. 

É um clichê, é a fantasia romântica sobre a possibilidade de enxergar a verdadeira alma de alguém; mas a idéia de que a luz gravasse sobre os “negativos” essa alma ressalta a curiosa contemporaneidade entre a fotografia e o espiritismo. 

O primeiro daguerreótipo é de 1839. A primeira manifestação mediúnica das irmãs Fox foi em 1848. Na década de 1890, a Society for Psychical Research produziu na Inglaterra uma imenso arquivo de fotos de materializações de ectoplasma, visualização de espíritos, etc. Sessões de médiuns famosas como Eusapia Palladino (1854-1918) e Eva Carrière (1886-?) foram extensamente fotografadas. 

A idéia de fotografar a alma (do médium, ou alheia) não era um devaneio de Euclides, era uma pesquisa que dezenas de cientistas sérios levavam a cabo nessa época. 

O sentido moral do soneto, o que me parece ser o objetivo do poeta, é a idéia convencional de que essência e aparência são contraditórios, “quem vê cara não vê coração”. O poema parece uma versão menos “dark” de O Retrato de Dorian Gray de Wilde, se tomarmos “retrato” como sinônimo de “foto” e não de “pintura a óleo”. 

A releitura, agora, me trouxe outro ponto de vista. Este soneto sempre me pareceu dizer, em seu desfecho: “Esse indivíduo que você está vendo nesse grupo, esse indivíduo tão belo, tão forte, tão ardente, é na verdade o mais feio de todos, e nós perceberíamos sua feiura, se pudéssemos enxergar sua alma”. 

Mas como o poeta coloca entre esses dois tipos um sinal de igualdade, é possível ler também o inverso: “Sabem quem é o mais belo, forte e ardente desses indivíduos? É precisamente esse que, quando o vemos apenas por fora, é de todos o mais triste, pálido e feio”. 

É o sertanejo. O sertanejo “desgracioso, desengonçado, torto” que de início despertou menosprezo em Euclides, mas aos poucos o conquistou pela sua bravura, estoicismo, grandeza moral. Fotografado de fora, era o “Hércules-Quasímodo”. Quando emergiu de si mesmo, transfigurou-se no “titã acobreado e potente”, graças ao olho-câmara do poeta-jornalista.







2014) Liberdade e permissividade (22.8.2009)



Estávamos, um grupo de amigos, conversando sobre o comportamento dos jovens de hoje. Preciso dizer que todos os amigos tinham entre 50 e 60 anos? É engraçado como os velhos observam tanto a vida dos jovens e os jovens não dão a mínima atenção à vida dos velhos. Acho que intuitivamente todos sabem quem tem algo a ensinar a quem. Enfim: – conversava-se, ria-se, e comparava-se o amanhã de ontem (o mundo onde viemos parar) ao ontem de amanhã (o mundo que nossos filhos recordarão um dia). No meio da conversa, falando de comportamento e de relações pessoais, alguém se saiu com uma frase mais ou menos assim: “Antes havia mais repressão, mas havia mais disposição para enfrentá-la. Hoje existe mais permissividade, mais galinhagem, mas, quando existe uma barreira, as pessoas não tem tanta coragem para enfrentar pressões e conseguir mais liberdade”.

Me pareceu uma boa tentativa de focalizar esse enorme paradoxo que a gente observa entre a adolescência dos nossos filhos e a nossa. Como sei que nenhum adolescente lê esta coluna, fico à vontade para comentar com os leitores que o mundo em que fomos jovens pareceria um pesadelo surrealista aos garotos e garotas de hoje. Eles não entenderiam, por exemplo, a nobre instituição do “namoro no terraço”, em que o rapaz e a moça, à noite, ficavam sentados lado a lado, de mãos dadas. No mesmo aposento (que não tinha de ser o terraço – podia ser a sala de visitas, etc.) era obrigatória a presença de uma terceira pessoa, fosse a mãe da moça, uma tia sonolenta, uma avó caduca, um irmão menor... Não fazia diferença quem fosse, o importante era que nem por um segundo aquele rapaz e aquela moça fossem deixados a sós, se não o defloramento da garota seria inevitável. (Não riam, meus jovens. Toda vez que um dos vigias saía da sala, acontecia algo inesquecível.)

Um casal de namorados (mesmo que tivessem 20, 25 anos) só ia ao cinema se fosse acompanhado por uma terceira pessoa, geralmente um irmão mais novo ou uma amiga da futura vítima. (Ainda por cima, o pretendente tinha que bancar três ingressos!) Um amigo já me confessou: “Na primeira vez em que fiquei a sós com Fulana, com quem namorava há mais de um ano, ficamos nos achando estranhos. Não sabíamos como éramos sem uma pessoa olhando”.

Sou um cara otimista, e acho que a cada geração que se sucede a Humanidade vai aposentando formas desnecessárias de sofrimento. Hoje, tudo que falei acima é muito engraçado; na época, daríamos o olho direito e o braço esquerdo pela chance de passar uma noite a sós. Hoje, um rapaz de 18 anos vai (consentidamente) para o apartamento da namorada, cujos pais estão viajando, e provavelmente os dois passam a noite assistindo DVDs e comendo pizza com coca-cola. (Na verdade não é nada disso – aposto que fazem as maiores loucuras, e é a minha mente grisalha que procura se consolar, vendo uvas verdes na parreira de Baco que eles desfrutam.)

2013) O teto do sofrimento (21.8.2009)



(Paulo Francis)

Num artigo no Pasquim em que falava sobre alguma catástrofe humanitária tipo Bangladesh ou Namíbia, o cético Paulo Francis disse certa vez (cito de memória): “Cem mil pessoas com fome não experimentam uma fome mais intensa do que a de cada uma delas. Cada pessoa que sofre, sofre o máximo que é possível sofrer. A dor física individual não é agregável; só as suas consequências o são”. Se um homem é o único faminto no recinto, isto talvez o poupe de ter de lutar por comida com outros famintos, mas não diminui nem aumenta sua fome propriamente dita.

Claro que há condições psicológicas e emocionais que são incrementadas quando partilhadas em grupo. Se você assiste a um show de rock sozinho vai se divertir menos do que se estiver com uma turma de amigos. O simples fato de estar compartilhando o momento com alguém aumenta o seu envolvimento, mas esse envolvimento não é proporcional à multidão. Se você sozinho se diverte, cercado por uma multidão de 10 mil pessoas você se diverte mais, mas não 10 mil vezes mais. É como um copo colocado embaixo de uma torneira – depois que enche, pode-se derramar ali um Amazonas de água, mas o copo não ficará mais cheio do que já está.

Quando falamos em compaixão, em empatia, em compartilhar o sofrimento alheio, algumas pessoas pensam que se exige delas passar por tormentos indizíveis. Jovens, principalmente, quando tomam conhecimento dessas catástrofes humanitárias, muitas vezes não suportam o peso dessa responsabilidade – de imaginar o que é a fome de um milhão de pessoas, a morte violenta de um milhão de pessoas. Não é preciso. O ser humano não foi feito para isto. Basta imaginar uma pessoa sofrendo, e ser capaz de abstrair esse sofrimento para uma escala maior.

Sentir o que outro corpo sente? Não iremos sentir nunca. Mesmo pessoas que se conhecem profundamente e se amam com intensidade não podem compartilhar o sofrimento físico. A angústia, o desespero emocional de quem sofre pode ser passado adiante, mas a fome, a dor de um ferimento, a dor do parto, não pode. Quem sofre, sofre sozinho a sua cota de sofrimento, e quem se solidariza pode no máximo sofrer a dor psicológica de ver uma pessoa querida sofrendo, imaginar aquele sofrimento e não poder fazer muita coisa.

Se fôssemos telepatas, ou “tele-empatas”, capazes de experimentar empatia física e mental completa, nossa espécie não teria evoluído, por excesso de informação. Mesmo a informação absorvida por uma só pessoa precisa ser comprimida, zipada e escondida no inconsciente. Ninguém acessa tudo de si mesmo. Algumas histórias de ficção científica até sugerem que tínhamos essa habilidade, mas ela foi suprimida na infância, para diminuir a dose e nossa mente poder funcionar. O que criamos para substituir essa “empatia à distância” é justamente a linguagem, a cultura, a vida em sociedade. Comunicamo-nos para podermos entender o que os outros necessitam, sentem ou sofrem – e podermos agir de acordo.

2012) A doce vida eterna (20.8.2009)



Os cinéfilos mais jovens conheceram Federico Fellini através de Amarcord, um dos seus grandes sucessos, que foi seguido por uma série de filmes menores dos quais (para mim) apenas E La Nave Va atinge esse pico de qualidade. (Não que os demais sejam ruins: mas são apenas toque-de-bola-no-meio-campo). Por isso não viveram uma época em que Fellini era um diretor perigoso de se gostar. Nos anos 1960 havia duas correntes poderosas na crítica de cinema: os católicos e os marxistas. Os católicos acusavam Fellini de zombar do Catolicismo; os marxistas o acusavam de ser católico demais. Filmes como A Doce Vida estão por trás desse cabo-de-guerra.

A Doce Vida se abre com uma imagem hoje famosa: uma enorme estátua de Cristo sendo levada pelos céus por um helicóptero, pendurada a um cabo de aço. Uma imagem inocente se vista na rua, mas numa tela, e num filme de Fellini, ganha logo uma conotação ominosa, de zombaria e sacrilégio. Algo de que Luís Buñuel se queixava, quando fazia seus personagens se referirem a “uma Virgem Maria lavável, de plástico” em O anjo exterminador, ou quando mostrava em Viridiana um crucifixo-canivete. Na vida real, nada de mais. Num filme de Buñuel, uma blasfêmia. O Cristo sendo levado pela máquina voadora deu origem a um sem-número de citações. Quem viu Adeus, Lênin há de lembrar a estátua do líder comunista em cena igual.

Uma longa cena do filme mostra a badalação em torno de uma falsa aparição da Virgem Maria para um casal de crianças. Fellini mostra a formação, nesse povoado perto de Roma, de um carnaval de mídia e comércio parecido com o que Billy Wilder descreve em A Montanha dos 7 Abutres. Com diplomacia e esperteza, o diretor mostra um padre negando com veemência que aquilo seja um milagre legítimo, e atribuindo má fé às crianças. De nada adianta: o circo está armado, as rádios, as TVs e os fanáticos invadem o local, a família das crianças recebe propinas para posar para fotos, dezenas de doentes são trazidos em padiolas na esperança de uma cura.

Todo o filme está permeado de cenas mostrando a comercialização, banalização e falsificação do sentimento religioso. Perto do final, Marcello visita o castelo de uma família nobre, que tem dois Papas em sua árvore genealógica. Sem ter o que fazer, os riquinhos empunham candelabros e vão explorar uma mansão abandonada que há na propriedade. Vão em busca de assombrações; um grupo se reúne em volta de uma mesa e inicia uma sessão espírita, o que leva uma mulher a ter algo como um ataque histérico disfarçado de possessão mediúnica. Um parente, diz, sarcástico: “O marido separou-se dela porque costumava encontrar fantasmas na cama”. Religião “fake”, misticismo “fake”, espiritualidade “fake”... Fellini falava disso tudo. Os católicos se incomodavam porque ele ironizava a religião; os marxistas se irritavam porque lhes parecia que o diretor dava a ela demasiada importância.

2011) Beber faz bem (19.8.2009)



(Henry James)
 

Uma das melhores coisas da vida é beber; uma das piores é ficar bêbado. 

Isto posto, espero que os abstêmios perdoem a singeleza deste título. Culpar somente a bebida pelos despautérios dos bêbados é tão ingênuo quanto atribuir a ela as qualidades dos romances de Hemingway ou de Lima Barreto. 

A bebida não cria nada de bom nem nada de mau em nós; apenas potencializa o que já temos. A bebida, em excesso, apenas atordoa, desorganiza, embrutece. A bebida, na medida certa, apenas inebria, congraça, arrebata e pacifica. Segundo Henry James, “a sobriedade reduz, discrimina e diz não, enquanto que a embriaguez expande, unifica e diz sim”. 

Existe uma equação que os grandes boêmios dominam intuitivamente. É preciso beber até atingir um certo estado de euforia. Uma vez atingido este estado, basta diminuir o ritmo de absorção, mas continuar bebendo de pouquinho, a intervalos, para que o estado se mantenha. 

Esta é a parte mais difícil. A euforia produzida pelo primeiro assomo do álcool é tão agradável que em geral perdemos o ponto e carregamos na mão. O entusiasmo nos faz beber em maior velocidade do que o necessário, e acabamos com a boca torta, o olho torto, a rua torta, e até o táxi parece estar andando em duas rodas como um Simca Tufão. 

Uma sábia invenção dos que bebem vinho foi a idéia de alterná-lo com água. A intenção é hidratar, mas psicologicamente acaba tendo um efeito de retardamento da embriaguez. Quem gosta de beber conversando, como eu, recorre de vez em quando ao copo para molhar a garganta e lubrificar as idéias. Ora – uma coisa é pegar dez vezes a taça de vinho, outra coisa é pegar cinco vezes na de vinho e cinco na de água. Eis o pulo do gato. (Claro que, se o sujeito é pinguço mesmo, ele vai tomar uma garrafa de vinho em uma hora, e não tem água que o recupere, mas aí eu não tenho jeito a dar.) 

Esta medida é tão providencial que resolvi adotá-la também para outras bebidas. Depois do quinto ou sexto chope, começo a alternar os chopes com garrafinhas de mineral com gás. É o quanto basta, em geral, para manter o inebriamento e me permitir, no fim, calcular minha parte na conta. 

Henry James estava certo no que afirmou acima, mas os bebedores profissionais sabem muito bem que a euforia alcoólica é geradora de fantasias panteístas. Quando a farra está boa, viramos amigos de todo mundo, fazemos juras e promessas, assumimos compromissos que no dia seguinte vêm bater à nossa porta ou fazer latejar nossas meninges. 

Dizem que F. Scott Fitzgerald, que davas festas de arromba na sua casa em Great Neck, mantinha na entrada dela um cartaz enorme dizendo: 

“Solicita-se aos visitantes que não arrombem portas de armários em busca de bebida, mesmo quando autorizados a tanto pelos donos da casa. Hóspedes que vieram passar o fim de semana ficam respeitosamente prevenidos de que convites para ficar até segunda-feira, feitos pelos anfitriões na madrugada de domingo, não devem ser levados a sério”.