quarta-feira, 5 de maio de 2010

2000) Contracapa de Facebook (6.8.2009)



(Algorithmic Art)

& mais alto do que essas torres? a fumaça dos seus incêndios, a poeira das suas quedas & dinossauros de vinil pastando jornais impressos & na TV apagada o reflexo de uma luminária acesa e de um homem olhando para a tela & Deus católico esculpido em madeira africana e pendurado na sala de um executivo ateu & toda vez que eu vejo um frigobar de hotel penso que tem um anão escondido lá dentro & daqui a cem anos as únicas coisas verdes na paisagem serão as garrafas pet & as pessoas são os olhos com que as casas observam as outras casas & assoletrando a cabala dos talibãs da Catalunha & quando a infância triunfar sobre os adultos... miserere nobis! & seres algorítmicos fatiados em ressonância magnética e ficcionados em GPS & cada bolero que eu canto reforça tudo que eu sinto e entorta tudo que eu sou & a premissa dela era um carnaval com hierarquia e depois tchau & por mais que Freud se barbeasse, a barba no espelho voltava a crescer & canário cantando num fio desencapado & vale a pena me arrastar pelo cimento para recolher cada ponta de cigarro, cada borracha de chiclete, cada papel amassado, e erguer meu castelo indestrutível, baseado no lixo do que eu sei & apertar no lugar certo, ferir na medida certa, lições de tocar violão & um albatroz tentando voar mas com um poeta pendurado ao seu pescoço & no fundo, para Neil Armstrong voltar foi mais importante do que ter ido & é o tipo do compositor que ao morrer vai deixar umas dez sinfonias inacabadas & um prisioneiro olhando as grades da cela e todo dia compondo mentalmente um problema de palavras-cruzadas & um Mito é um fato verbal reiterativo e auto-referente que finge reportar-se a uma instância factual externa a si mesmo & foi-se aquele tempo em que bastava a um príncipe conduzir um falcão no punho semi-erguido e de repente gritar-lhe: “Vai!...” & às vezes uma mulher precisa mais de um bom xale do que de um marido & “isto aqui não faz mal à saúde”, dizia ele, “complementa o metabolismo” & o caba que não tem moral nem o cursor obedece & meu corpo é uma vaca, resignada na fila do abatedouro, minha alma é um passarinho, impaciente para ascender aos portões de ouro & um rosto sem rugas é um livro sem linhas & condenado a prisão perpétua usando um piercing radioativo & o mágico puxa da cartola uma longa chaminé que enche o circo de fumaça negra & um navio que naufraga entre o porto e o horizonte & se Napoleão invadisse a Rússia sozinho talvez eles tivessem incendiado Moscou do mesmo jeito & todo filme preto-e-branco é feito de grãos de café e grãos de açúcar & a água que entrou no Titanic daria para apagar o fogo que envolveu o Hindenburg & o dragão negro bebeu a água do rio e mastigou os barcos como se fossem de chocolate & não me venha com filosofismas senão eu lhe pespego um energumento em pleno córtex epistemológico! & pois é, futebol de hoje: muito carrinho e pouca bicicleta &

1999) O cinema de arte e a FC (5.8.2009)




(Alphaville, de Godard)

Na última cena de 8 ½ de Fellini (1963) os personagens dançam uma ciranda em torno de uma plataforma de lançamento de um foguete espacial. 

Para mim, a plataforma tem um simbolismo: o temor reverencial que os intelectuais (incluídos aqui os diretores de filmes de Arte) têm para com a ficção científica. Olham para ela como Napoleão olhava para os hieróglifos da Pedra de Rosetta: algo que ele sabe que pode conquistar, comprar, vender, destruir, mas não consegue entender.

Enquanto isto, outros diretores europeus flertavam com a FC. 

Antonioni chegou a propor a John Kennedy a realização de um filme sobre o treinamento dos astronautas que se preparavam para ir à Lua, e Kennedy o convidou para ir à Casa Branca para conversar. O projeto não evoluiu, mas anos depois o livro de Tom Wolfe Os eleitos (“The Right Stuff”, 1979) deu origem ao filme homônimo de Philip Kaufman (1983).

Elio Petri, que viria a ficar famoso com Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, dirigiu em 1965 A décima vítima, adaptação de um conto futurista de Robert Sheckley em que indivíduos ricos e entediados se inscrevem num Clube onde podem matar vítimas sorteadas, e depois tornam-se vítimas eles próprios. 

Também de 1965 é Alphaville, um dos filmes mais inquietantes de Godard, em que ele pasticha a FC e o thriller policial ao descrever uma cidade futurista controlada por um super-computador.

Em 1966, foi a vez de François Truffaut embarcar na FC, adaptando Fahrenheit 451, o clássico de Ray Bradbury sobre uma distopia futura em que a leitura é proibida, as pessoas passam o dia vendo TV interativa, e cabe aos bombeiros queimar os livros que são lidos clandestinamente por dissidentes. 

Em 1968, Roger Vadim chamou sua então esposa Jane Fonda para estrelar Barbarella, adaptação dos quadrinhos de Jean-Claude Forest sobre uma astronauta sensual em aventuras eróticas pela Galáxia, num clássico do cinema “kitsch”. 

E no mesmo ano Alain Resnais, o “cineasta da memória”, dirigiu Eu te amo, eu te amo, onde uma experiência mal sucedida com uma máquina do tempo leva o viajante a ficar ricocheteando entre passado e presente, e revivendo uma história de amor mal sucedida que o levou a tentar o suicídio.

Há mais exemplos, mas estes bastam. Na década de 1960, estes jovens diretores do melhor Cinema de Arte europeu (todos então entre 30 e 40 anos) fizeram uma experiência com o cinema de ficção científica, experiência que não repetiram, mas que em todos os casos resultou em filmes dignos de atenção. 

Nessa década a FC começava a ser estudada nas universidades, e iniciava um diálogo com a vanguarda que esses diretores representavam. 

O rótulo de “New Wave”, dado à FC americana dessa época, foi uma adaptação explícita do nome de Nouvelle Vague usado pelos diretores franceses. FC e vanguarda tiveram ali um namoro breve, resultando em filmes cujo estudo conjunto ainda precisa ser feito.






1998) “Solaris” (4.8.2009)



Participei, no cineclube da Casa da Ciência da URRJ, de um debate sobre o filme Solaris de Andrei Tarkovsky. A obra de Tarkovsky foi relançado numa coleção de DVDs em que os filmes são complementados por discos com entrevistas, documentários e o “making of” de algumas obras. O diretor russo, falecido há alguns anos, é autor de um livro de ensaios sobre cinema, já traduzido no Brasil, intitulado Esculpir o Tempo. É uma boa definição para seu cinema, que valoriza o tempo dos personagens, das paisagens e das ações. Seus filmes têm um ritmo longo e largo, que provoca impaciência nos espectadores acostumados ao cinema em que uma nova cena surge na tela de 15 em 15 segundos. Tarkovsky gosta de planos complexos, com lentos movimentos de câmara, organizados em função dos deslocamentos sutis de seus personagens por um cenário que traz revelações à medida que nosso ponto de vista se desloca.

Solaris é um dos meus filmes de FC favoritos, assim como o romance de Stanislaw Lem, que lhe deu origem, é um dos meus livros favoritos. Solaris é um planeta que, depois de descoberto, torna-se o alvo principal das investigações da Humanidade, pois é coberto por um oceano de plasma que dá todos os indícios de ser uma criatura pensante. Entre outras coisas, o Oceano é capaz de corrigir a órbita do planeta, que gira em torno dos dois sóis. Violando as leis da física, o planeta otimiza sua órbita em torno dos sóis como se fosse manobrado por alguém. Durante um século, milhares de cientistas viajam para Solaris, fazem pesquisas intermináveis, mas não conseguem se aproximar de algo que possa ser classificado como um contato com essa inteligência colossal.

Quando a ciência solarística já está decadente, no entanto, os poucos remanescentes na estação planetária descobrem que o Oceano é capaz de ler suas mentes e projetar, em forma de seres materiais, imagens colhidas em sua memória. E o protagonista, Kris Kelvin, reencontra em Solaris a imagem – em carne e osso – de sua falecida esposa, Harey, que se suicidara por sua causa, num ataque de depressão.

Solaris é um dos grandes símbolos do Desconhecido, do Misterioso e do Desmedido na ficção científica. Como possível repositório de um saber inconcebível, assemelha-se à Biblioteca de Babel, de Jorge Luís Borges. Como local gigantesco e inacessível, lembra o Castelo, de Kafka. O planeta de Lem/Tarkovsky é um dos “Grandes Objetos Mudos” que os personagens da ficção científica encontram em suas viagens pelo Cosmos – enormes espaçonaves à deriva, ruínas ciclópicas de civilizações desaparecidas, máquinas subterrâneas ocupando todo o subsolo de um planeta, estações espaciais onde caberiam milhões de pessoas... Tudo vazio, tudo indecifrável. Espaçonaves ou portais de teleporte que somente depois de décadas de estudo são compreendidos pelos humanos, e quando postos em funcionamento abrem para eles caminhos inimagináveis pelo Universo, como na série Gateway de Frederik Pohl.

1997) Dante no Inferno (2.8.2009)



Falam que os jovens só querem saber de videogames, de banalidades, que abominam os livros e a cultura clássica. Quero ver a cara desse pessoal nas próximas linhas, quando ficarem sabendo por meu intermédio que no ano que vem será lançado o jogo Dante’s Inferno, para a plataforma Xbox 360, no qual (estou citando Tim Martin, num artigo em The Telegraph) Dante aparece como um anti-herói musculoso, abrindo caminho através dos Nove Círculos do Inferno com uma foice e uma cruz, para resgatar sua amada que foi aprisionada por Lúcifer.

Capturei na Internet uma prévia do que deve ser o jogo (em: http://tinyurl.com/cf9aug), que assim é descrito: “Os produtores do jogo revelaram que a história já havia sido adaptada para um game há um bom tempo. Afinal, converter uma trama de um ambiente como o Inferno de Dante para os games não é algo muito difícil, pois isso se resume a uma fórmula muito comum no entretenimento eletrônico: um herói vagando por locais perigosos e derrotando criaturas mitológicas (alguém se lembra de “God of War”?)”.

Ouvi agora um grunhido de dor, vindo da direção da Suíça. Acho que foi Jorge Luís Borges se revirando na tumba. Problema de Borges, que era refratário às coisas modernas, e criticava o livro de H. G. Wells A máquina do tempo por recorrer a uma máquina, e não a um tapete mágico. Mas o articulista explica mais: “Você deve estar imaginando: como Dante, que não é nada intimidador de acordo com a obra original, enfrentou a própria Morte e ainda roubou sua arma? Bem, a equipe adaptou Dante de acordo com os videogames, e o resultado é uma figura muito mais musculosa e poderosa do que a original, e com diversas habilidades. O personagem será capaz de executar diversas combinações de golpes através de um sistema de combo complexo que permite mesclar ataques fortes, fracos e aéreos.”

”A lâmina de Dante não será sua única opção para finalizar seus oponentes. O protagonista também poderá usufruir dos poderes de uma misteriosa cruz mágica, capaz de eliminar inimigos de maneira devastadora. Além disso, o herói é capaz de domar e pilotar feras gigantes. Para isso, é necessário, antes de qualquer coisa, eliminar o piloto original, algo que pode ser realizado através de minigames de contexto. Depois disso, basta subir nas costas de um dos monstrengos e aproveitar a viagem cuspindo fogo, pisando em seus inimigos e muito mais.”

Heresia, amigos? Sei lá. O Papa daquele tempo deve ter achado o poema de Dante uma heresia do mesmo tamanho. Um videogame baseado em Dante não deve ser heresia maior do que Proust quadrinizado, ou a Bíblia, escrita pelo Espírito Santo em pessoa, filmada por John Huston. Talvez, no futuro, jovens ansiosos por cultura clássica se debrucem sobre o jogo da Electronic Arts com o mesmo fervor com que os cristãos do século 20 assistiam O Rei dos Reis com Jeffrey Hunter no papel de Cristo. Há mensagens que resistem a tudo.

1996) Falsos documentos à venda (1.8.2009)



O “Fantástico” na TV Globo mostrou recentemente uma matéria sobre a venda de documentos estudantis falsos, uma indústria subterrânea florescente no País dos Bacharéis. Pelo que a gente viu, parece a coisa mais simples do mundo conseguir um diploma de Médico ou de Advogado, pagando 3 ou 4 mil reais. Uma pechincha, comparada com as despesas de um curso de verdade. As falsificações são anunciadas livremente nos cadernos de Classificados. O sujeito telefona, faz contato, fornece seus dados, diz o curso que quer, e dias depois recebe diploma, histórico escolar completo, e está apto a exercer a profissão – desde que encontre gente incauta o bastante para não checar a autenticidade dos documentos.

Falsificar documentos é uma arte. Num livro recente de William Gibson, um personagem que precisa de identidade falsa recebe uma carteira de motorista com sua foto e outro nome, e percebe que alguém se deu o trabalho de enfiar e retirar o documento centenas de vezes numa carteira de cédulas, para produzir micro-arranhões e dar verossimilhança à falsificação. Já dizia o Budista Tibetano: “Numa sociedade de aparências como a nossa, mais vale uma coisa falsa que pareça verdadeira do que uma verdadeira que pareça falsa”. Durante muitos anos tive uma Carteira de Identidade totalmente detonada, o plástico parecendo uma bolacha sete-capas, a assinatura desbotada, a foto quase se largando. Quando alguma autoridade (um policial, um funcionário de aeroporto) levantava alguma dúvida, eu dizia: “Se está assim é porque é de verdade, se eu fosse falsificar um documento ia ser uma coisa bem ajeitadinha.” Sempre funcionou.

Um saite intitulado “Corrupted-Files.com” oferece a estudantes norte-americanos arquivos em qualquer formato, mas corrompidos, ou seja, com uma alteração interna que torna impossível abri-los com qualquer programa. O objetivo é fazer com que estudantes preguiçosos ganhem algum tempo extra para enviar seus trabalhos escolares por email (prática comum nas universidades). Se o trabalho é para o dia 10 e não ficou pronto, basta ao estudante baixar um arquivo assim no saite, dar a ele o título do trabalho e enviá-lo para o professor. Este dificilmente vai abrir o arquivo no mesmo dia. Quando o fizer, lá pelo dia 13 ou 14, não vai conseguir, pois o arquivo estará corrompido. Ele entra em contato com o estudante, que reenvia o trabalho – desta vez num arquivo normal, e com o trabalho pronto, porque teve 3 ou 4 dias extras para terminá-lo.

Outro saite, “FalseExpense” oferece falsas notas fiscais de despesas variadas: passagem aérea, hotel, restaurante, etc. O cliente paga uma taxa e preenche um questionário online explicando as despesas que deseja justificar. Por exemplo, passagem de ida e volta entre Detroit e Miami, hotel tal, tantas refeições em hotéis com valor médio “x”... Depois que o pagamento é feito, ele recebe pelo Correio as notas que encomendou. Sem impostos... e sem perguntas.