domingo, 2 de maio de 2010

1986) O Homem na Lua (21.7.2009)



E assim se passaram quarenta anos. A descida do homem na Lua está sendo comemorada no mundo inteiro pela imprensa – nós jornalistas adoramos um assunto momentoso sobre o qual a documentação é farta. Não sei se os cientistas comemoram. A maioria o faz por nostalgia do tipo “como era bom naquele tempo”, não por entusiasmo pelas conquistas atuais. A NASA fez seis descidas de astronautas na Lua: duas em 1969, duas em 1971 e duas em 1972. De lá para cá, nada. Dá para sentir que o projeto espacial tripulado alcançou um pico nessa época e depois se retraiu. Me lembra a famosa frase de Fellini ao recordar, muitos anos depois, o êxito de bilheteria de A Doce Vida: “Eu pensei que aquilo era o começo do meu sucesso, mas acabou sendo o ponto mais alto dele”. Pois é.

Não que os projetos espaciais tenham soçobrado desde então. EUA e Rússia fizeram alguns projetos conjuntos, acoplagens, voos mistos; tivemos a construção da Estação Espacial com a cooperação de várias nações; as numerosas missões dos ônibus espaciais; o lançamento em órbita do Telescópio Hubble, e várias missões não-tripuladas para Marte e outros destinos. Tudo isto traz informações importantes para a ciência. Mas – e aqui que me perdoem os colegas da ficção científica – o que isso indica é que o sonho de voos tripulados pelo Sistema Solar era somente um sonho mesmo, e que o nosso destino é nunca sairmos do nosso planeta. Não digo que não seja possível, para os EUA, a China ou a União Européia, mandar um ou outro sujeito para Marte e trazê-lo de volta. Não é improvável. O que acho improvável é o sonho dos escritores de FC: frotas permanente de naves indo e voltando, bases e cidades lunares, colonização e terraformação (criação de um ambiente natural favorável à vida humana) de Marte. Isso aí, meu amigo, acho que é uma janela de hipótese que se abriu um dia mas já se fechou.

Quando estou lendo Fundação de Asimov ou Hyperion de Dan Simmons me parece inevitável a perspectiva de uma Via-Láctea fervilhante de civilizações e raças, com intercâmbio comercial, guerras, milhões de naves indo-e-voltando. Isso, no entanto, só ocorre na página. Fora dessa jurisdição retangular, não consigo crer numa civilização terrestre-interplanetária. Para mim é tão complicado quanto acreditar em Deus. Por que? Uma das melhores críticas já feita ao conceito de Deus é que ele não é plausível, mas é extremamente desejável. Seria tão bom se houvesse de fato um Deus onisciente, onipotente, bondoso e justo! Nosso desejo de que isto seja verdade acaba criando uma espécie de certeza de que o é. Do mesmo modo, nosso desejo de uma humanidade esplendorosamente expansionista, civilizando planetas, fincando bandeiras terrestres galáxia afora, é uma hipótese tão bonita, tão desejável... Mas, ai! Não basta isso para ser plausível, e para mim não é. Acho que nossa expansão será qualitativa. Iremos (precisamos) salvar este planeta, e não conquistar os outros.

1985) A desinvenção do cigarro (19.7.2009)



Eu vejo uns 10 ou 15 filmes por mês, a maioria deles no DVD e na TV a cabo. Filmes de todas as épocas, desde o cinema mudo até lançamentos atuais. E, nos filmes mais antigos, uma coisa que sempre me impressiona é a quantidade de cigarros que o pessoal fuma. Toda cena tem alguém fumando. Casais namoram no sofá, trocando juras de amor e beijos, e cada um tem um cigarro fumegante entre os dedos. Sabemos hoje que a indústria do cigarro investiu pesado no cinema como canal de merchandising subliminar, para impor ao público dos anos 1940, 1950, por aí, a noção de que fumar era sofisticado, era chique, era moderno, era para os homens uma demonstração de masculinidade e para as mulheres uma afirmação de independência. O resultado? Comprem um maço de cigarro e olhem no verso.

No cinema se explica: os diretores perceberam logo que as volutas de fumaça davam um charme à imagem luminosa, davam um movimento, uma poesia visual. Como dizia John Ford, “nada como uma fogueira acesa para dar vida a um plano”. E os atores gostavam, porque o cigarro lhes dava (como disse certa vez James Bond) “algo que fazer com as mãos”. Mas na vida real o câncer, o enfisema e o enfarte foram comendo o mercado do fumo pelas beiras. Em Nova York, há mais de dez anos, fiquei intrigado ao ver dezenas de executivos de ambos os sexos, no frio, parados no pátio externo dos edifícios de escritórios, em grupos de vinte ou trinta pessoas. Alguns conversavam, mas a maioria estava apenas parada, o olhar perdido, o gesto impaciente... e fumando. Tinham que sair do prédio para fumar. Isto me surpreendeu. Na época, os aviões reservavam os assentos do fundo para os fumantes. Não havia a campanha feroz que existe hoje.

Li um depoimento de um combatente do fumo em que ele afirmava: “No futuro, os cigarros e os cinzeiros serão tão obsoletos e parecerão tão estapafúrdios quanto nos parecem, hoje, os rolos de tabaco levados no bolso e as escarradeiras nos lugares públicos”. E de fato, eu ainda alcancei um tempo em que as pessoas, numa bodega, mordiam e mastigavam aquele fumo-de-rolo escuro, e cuspiam o resultado em esguicho, na calçada.

Os EUA inventaram o mito e o comércio do cigarro – e agora o estão desinventando. No filme de Al Gore, Uma Verdade Inconveniente, ele conta que a fortuna da família veio com plantações de tabaco, e que a irmã, fumante, morreu de câncer no pulmão. Uma pequena metáfora de todo esse processo. Existe hoje uma mobilização geral no país para restringir os espaços dos fumantes. Por outro lado, na Europa, principalmente na França, com seu pendor anti-dominação-americana, existe um apego ao cigarro como “exercício da liberdade”. Os franceses se apegam ao fumo como demonstração de independência cultural. Mas a desinvenção do cigarro é mais um exemplo da “grana que ergue e destrói”. Se os EUA acabarem de fato com o hábito do fumo, pra mim isso é uma prova de que nada no mundo é impossível.

1984) Raul Rock Seixas (18.7.2009)



Há dois discos que nunca ouço sem me comover: Rock and Roll (1975) gravado por John Lennon, e Raul Rock Seixas (1977), que escuto agora enquanto escrevo. São dois exemplos da força crua do rock, de seu amálgama instintivo entre batida forte, som eletrificado e musicalidade de blues negro-rural. E tudo isso na voz de dois estrangeiros que nada tinham a ver com o peixe. Não se enganem quanto a Lennon – apesar de ingleses e americanos falarem línguas parecidas, são tão diferentes um do outro quanto o são de um baiano ousado. Os dois discos têm apenas duas faixas em comum (“Ready Teddy” e “Be-Bop-a-Lula”). Foram gravados em parte por homenagem (os dois artistas celebrando a música que os sequestrou “forever” em plena adolescência) e em parte pelo puro prazer, para um compositor de peso, de botar garganta afora canções não-autorais em que nada tem para provar a ninguém e tudo tem para saborear para si mesmo.

Raul também devia aos Beatles, como todo mundo que empunhou uma guitarra antes ou depois deles. Mas quem o criou como cantor foi Elvis, sua ginga de quadris, casaco negro de couro, trunfa arrogante, óculos escuros, voz querendo se encorpar em barítono. Raul era um branquelo magro mas encarou a si mesmo com heroísmo. Criou uma persona que era homenagem e cartum, era tributo e comentário oblíquo, era vontade infantil de “fazer aquilo também” e cachoeira irreprimível de coisas diferentes para dizer, coisas que o projetaram muito além do “cover” e deram origem a coisas como “Ouro de Tolo”, “Gita”, “Metrô 743”, “Metamorfose Ambulante” e por aí vai. Alturas – de compositor – que Elvis jamais pôde atingir.

Livros-coletânea como O Baú de Raul ou Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor trazem reproduções fac-símile dos cadernos infantis de Raul, e mostram que por trás da metamorfose ambulante havia um garoto inquieto que nunca mudou. O rock lhe serviu para compor uma “persona” satanista, para se fantasiar de James Dean e Marlon Brando, para se entregar por inteiro à promessa sagaz de Modernidade que o capitalismo distribui mundo afora, ofertando pentes e espelhinhos aos indígenas em troca de seu ouro e diamantes. É irônico, mas Raul foi apenas um entre milhões de outros jovens inconformistas que trocaram o ouro-de-tolo do conservadorismo classe-média pelo ouro-de-tolo da rebeldia midiática, onde nove em cada dez milionários morrem entupidos de drogas. Preciso citar nomes?

Quando celebramos aqueles que foram consumidos pelas drogas, pela loucura e pela dissipação não podemos mitificar quem os destruiu. Os monumentos aos mortos na Guerra celebram a vida que se perdeu, não a guerra que os matou. Celebram os mortos, independentemente da justeza ou não da guerra para onde foram enviados. Celebram sua juventude cortada ao meio, seu talento que se consumiu como uma lâmpada super-voltada, que brilhou mais do que podia e pagou o preço.

1983) O jornalista Gay Talese (17.7.2009)



Nunca li Gay Talese, grande jornalista norte-americano que esteve de passagem pelo Brasil para participar da Feira Literária de Paraty. Também não li Tom Wolfe, outro responsável pela mistura de jornalismo investigativo e alta literatura que os americanos inventaram há algumas décadas. Meus exemplos, quando penso nesse gênero, são Truman Capote, Norman Mailer e Hunter Thompson. Mas ao longo dos anos vi muitas entrevistas de Talese, artigos sobre ele, citações e transcrições de textos seus. É um daqueles casos em que a gente nunca leu mas já conhece.

Desta vez, o melhor texto sobre GT que vi na imprensa foi um artigo de Arthur Dapieve no Globo de 12 de julho. Dapieve mediou um debate do norte-americano, e diz: “No palquinho do Instituto Moreira Salles, na noite da última quarta-feira, tive oportunidade de fazer seis ou sete perguntas a Talese. Duas minhas, as outras da platéia. No breve encontro antes do encontro e no jantar a seis que a ele se seguiu, Talese me fez umas 273 perguntas. O que você faz para viver, além de escrever? Você escreve basicamente sobre o que? Você assiste a futebol só pela TV ou também vai aos estádios? De qual cidade da Itália o seu bisavô veio para o Brasil? O que ele fazia? E o seu avô, vivia do quê? Onde trabalhou seu pai? Ele frequentou uma universidade? Você frequentou uma universidade? De quê? Você teve bolsa? Você tem filhos? Quantos anos ela tem? O que quer fazer? (...)”

Um jornalista é um cara que se interessa mais pelos outros do que por si mesmo. Muitos que vemos hoje na TV, entrevistando pessoas, passam a impressão de estar ali impacientes, olhando para o relógio, doidos que a entrevista acabe logo e eles possam ir encontrar a namorada. Não há interesse real pelo entrevistado, nem antes (procurando se informar sobre quem é, o que faz), nem durante (olhando olho no olho, entendendo, aprofundando o perguntório) nem depois (se no ano que vem tiver que entrevistar de novo a pessoa, nem vai lembrar que já a conhece).

Jornalismo é curiosidade pelas pessoas, pelos fatos, pelo mundo. Vontade de ficar sabendo. Vontade de entender direito um assunto obscuro ou complicado. Vontade de desemaranhar histórias mal-contadas por gente que tem algo a perder se a história for contada direito. Talese afirmou (na TV, para Edney Silvestre) que tudo que fez veio de uma simples determinação: a de fazer com pessoas reais o que os grandes escritores faziam com pessoas imaginárias. Se um romance sobre um camponês imaginário ou uma peça teatral sobre um caixeiro-viajante imaginário podem ser grandes obras de arte e revelar verdades humanas universais, por que motivo uma reportagem sobre um camponês de verdade ou um caixeiro-viajante de verdade também não poderiam? Desse propósito surgiram seu artigo famoso sobre Sinatra, seu estudo sobre a vida sexual dos americanos, e dezenas de outros projetos que, sendo grande jornalismo, são também grande literatura.