sexta-feira, 23 de abril de 2010

1947) Uma lenda antiga (5.6.2009)




(ilustração de Alexeieff)

Dizem que havia um homem que buscava a Sabedoria Imortal, e para isto pôs-se a caminho pelas estradas do Oriente. 

Tinha certeza de que em algum lugar do mundo haveria um conjunto de crenças e saberes capaz de responder a todas as perguntas passadas e futuras da humanidade. 

Um dia chegou ao pé de uma montanha altíssima, tão alta que mal se avistava o seu pico, por entre as nuvens. Era uma montanha escarpada, áspera, íngreme, batida por vendavais. No sopé, uma estrada subia por entre as pedras, e, bloqueando a passagem, um portão de ferro cheio de grades e correntes. Ao lado do portão havia um guarda armado.

“O que há lá no alto, que foi necessário colocar este portão aqui?” perguntou o viajante. 

“Não há nada”, retrucou o guarda. 

“Claro que há alguma coisa”, insistiu ele, “senão, para que o portão? E para que tu mesmo, aqui, de sentinela?” 

“Me pagam para isto, e tenho família para sustentar”, tornou o guarda, e prosseguiu. “É um trabalho sem sentido, como aliás qualquer outro. Mas lá em cima não há nada. Dizem, aliás, que uma vez, antes que eu viesse ocupar este posto, um homem aproveitou uma distração do guarda e, pegando um pedaço de pau, derrubou-o no chão, desacordado. Pulou sobre o portão e subiu a montanha. A subida foi muito mais trabalhosa do que ele tinha imaginado; foi vítima do ataque de aves de rapina, enfrentou vendavais e nevascas, quase morreu de fome, depois quase morreu de frio, depois quase morreu de cansaço. Um dia chegou ao alto da montanha. E não havia nada lá.

“Assim são todos os homens (continuou o guarda). São ávidos de segredos, de sabedoria transcendental. Ao se deparar com uma Sociedade Secreta, pressentem a possibilidade de que exista ali essa Sabedoria Oculta, mas ao mesmo tempo sabem que talvez tudo não passe de um engodo. A única maneira de saber é dedicar uma vida inteira a isso; mas ai, quando se está no fim da vida percebe-se que não havia segredo nenhum, e que mais valia ter dedicado a vida a outra coisa."

O viajante ficou pensativo durante alguns minutos, sentou-se sobre uma pedra, descansou. A certa altura, aproveitou uma distração do guarda e, pegando um pedaço de pau, derrubou-o no chão, desacordado. Pulou sobre o portão e subiu a montanha. 

A subida foi muito mais trabalhosa do que ele tinha imaginado; foi vítima do ataque de aves de rapina, enfrentou vendavais e nevascas, quase morreu de fome, depois quase morreu de frio, depois quase morreu de cansaço.

Um dia chegou ao alto da montanha. E não havia nada lá. 

Assim são todos os homens. São ávidos de segredos, de sabedoria transcendental. Ao se deparar com uma Sociedade Secreta, pressentem a possibilidade de que exista ali essa Sabedoria Oculta, mas ao mesmo tempo sabem que talvez tudo não passe de um engodo. A única maneira de saber é dedicar uma vida inteira a isso; mas ai, quando se está no fim da vida percebe-se que não havia segredo nenhum, e que mais valia ter dedicado a vida a outra coisa.





1946) O livro de Obama (4.6.2009)



Li com atenção e proveito o livro de Barack Obama Dreams from my Father, já traduzido aqui como A Origem dos meus Sonhos. Em geral não ligo para livros escritos por políticos. Acho que quem os escreveu foi um ghost-writer qualquer, contratado a peso de ouro. Duvido que Bill e Hillary Clinton tenham sentado ao teclado para escrever suas autobiografias recentemente editadas. Não os estou chamando de burros. É porque é uma gente muito ocupada. Se tivessem tempo e sossego talvez produzissem livros razoáveis. Mas não têm.

Quem os tinha era Obama na época em que produziu seu volumezinho de memórias. Acredito que ele próprio o tenha escrito, porque o livro saiu em 1993, quando ele tinha 33 anos, era advogado, e trabalhava com comunidades carentes na área de Chicago. A oportunidade do livro surgiu quando foi eleito presidente da Harvard Law Review, uma publicação universitária tradicional, que jamais tivera um presidente negro. Barack nem sonhava em entrar para a política partidária, quanto mais tornar-se senador e presidente.

Suponhamos então que o livro foi mesmo escrito por ele; não é improvável. (Já não digo o mesmo de A Audácia da Esperança, publicado depois de sua entrada na política). É um livro cheio de observações detalhistas que denotam um olho agudo, uma percepção intuitiva e atenta das emoções, uma disponibilidade em examinar com critério de adulto acontecimentos da infância e da adolescência, sem soterrá-los com explicações ou justificativas. Obama narra sua infância, retrocede para narrar o encontro de seus pais, um estudante negro do Quênia e uma estudante branca do Kansas, que se casaram no Havaí. Descreve o desconforto gradual de um negro numa sociedade branca, num jogo onde, diz-lhe um negro mais idoso, “eles fazem as regras, e, quando você aprende a jogar pelas regras deles, eles mudam as regras”.

O livro de Obama, se não fosse escrito pelo atual Presidente dos EA e sim por um escritor negro obscuro, já seria um documento revelador sobre a situação racial nos EUA – e também no Quênia, país onde, no terço final do livro, ele vai em busca de suas origens e de sua família paterna. Seu livro é (como o Chronicles, de Bob Dylan) uma memória romanceada. O autor lembra uma manhã de 20 anos atrás e descreve as nuvens do céu e o pássaro que estava cantando, registra a cor das roupas de uma pessoa vista num café, descreve os cheiros que sentiu.

Livros assim, mistura de lembrança e reinvenção, revelam nossos processos mentais de evocar memórias. Metade do que lembramos está sendo improvisado no momento da lembrança; e da próxima vez que lembrarmos aquilo, já lembraremos o fato misturado ao que estamos improvisando agora. Quanto mais lembramos uma coisa, mais o presente modifica o passado. Ironicamente, quanto mais recordamos um fato mais nítido ele fica, e mais distante do fato que ocorreu. Quando nossa memória fotografa algo, deleta o objeto, e guarda apenas a foto.

1945) O terceiro braço (3.6.2009)



Chama-se “membro fantasma” quando um indivíduo perde, por exemplo, uma perna, mas continua com a sensação física de que ela está ali. Acredita que pode movê-la. Sente frio, calor; sente que o pé está coçando e sabe que não há como coçá-lo. Parece que os nervos se acostumam a interpretar certos estímulos exteriores como vindos daquele membro, e insistem em fazê-lo mesmo quando os estão confundindo com estímulos que vêm de outra parte. Pessoas místicas tendem a interpretar isto como prova da existência de um “corpo astral”, um campo energético com o formato aproximado do nosso corpo físico, o qual subsiste mesmo depois que partes substanciais do corpo físico são destruídas.

Um caso próximo disso, mas estranhamente diverso, é o que aconteceu com uma mulher de 64 anos internada num hospital de Genebra após sofrer um derrame. Ela sente a presença de um terceiro braço e afirma ser capaz de vê-lo e de movê-lo. O braço (segundo ela) é translúcido, pálido, de aparência leitosa, e é utilizado pela mulher para coçar-se, por exemplo (ele não pode penetrar objetos sólidos). Os médicos submeteram a paciente a um teste de “ressonância magnética funcional”, comparando o comportamento de seu cérebro quando ela movia ou imaginava mover seus braços verdadeiros e depois o “braço fantasma”. Os testes indicaram que o cérebro dela acusava de fato a presença do terceiro braço, e o seu córtex visual era ativado como se de fato ela o estivesse enxergando.

Cientistas acham que um caso raro como este pode representar uma ponte entre dois fenômenos: o tradicional “membro fantasma” e as experiência “out of body”, em que uma pessoa imagina estar se desligando do próprio corpo e flutuando no ar, vendo a si própria à distância.

Um leitor da publicação online em que saiu um artigo sobre este caso (http://tinyurl.com/d8vc9o) sugeriu: “Seria interessante descobrir se o braço fantasma seria capaz de perceber um objeto que fosse desconhecido pela paciente. Talvez se pudesse colocar um objeto numa caixa, fazê-la colocar o ‘braço’ dentro da caixa, apalpar o objeto e dizer o que era. Ou então fazer algum teste para descobrir se o braço é capaz de perceber temperaturas ou de sentir dor”. Parece que os médicos suíços não tiveram essa idéia. Vai ver que são aquele tipo de médico que em vez de imaginar um teste simples pensa apenas em utilizar o equipamento milionário à disposição no hospital, como o de “fMRI” (ressonância magnética funcional). Se a paciente é capaz de sentir e mover o braço, o passo mais lógico a seguir é determinar até que ponto esse braço imaginário reproduz a percepção do tato de um membro normal. É uma anomalia involuntária, claramente um resultado do derrame, mas seria interessante descobrir se alucinações como esta poderiam ser produzidas inconscientemente para compensar a perda de um membro.

1944) Charadas infames (2.6.2009)



Pelo que vejo nas bancas de revistas, a arte das palavras cruzadas continua viva, mas não sei se o mesmo acontece com a arte da charada. Meu pai era charadista, e eu cresci cercado de dicionários especializados, ajudando-o, com minha irmã Clotilde, a procurar sinônimos obscuros ou palavras que correspondessem a definições do tipo “planta da família das Euforbiáceas” ou coisa desse tipo. Existem dezenas de tipos de charadas. A mais comum é a adicionada (outrora chamada de “novíssima”): uma frase tem algumas palavras em destaque. Estas são as “pedras”, pedindo sinônimos que, montados juntos, dão um sinônimo do “conceito”, que é a última palavra. O número de sílabas de cada “pedra” é indicado. Uma bem rudimentar: “EM CIMA do MÓVEL está o DOCE. 2,2” Em cima, com 2 sílabas: sobre. Móvel, com 2 sílabas: mesa. Doce, 4 sílabas: sobremesa.

Os sinônimos não precisam ser exatos. “A MULHER com a LATA na CABEÇA anda DEVAGAR. 2,2,2.” A resposta é: paulatinamente. A charada ideal, no entanto, é uma frase fluente, que faz sentido e não parece forçada, e na qual a substituição das “pedras” pelas respostas, com a necessária adaptação de gêneros, continua produzindo uma frase igualmente fluida. Ocorre no primeiro caso: “Sobre a mesa está a sobremesa”. Não acontece com o segundo exemplo: “Paula com a tina na mente anda paulatinamente”. A frase fica forçada e meio sem sentido.

Alguns charadistas defendem o uso de sinônimos um tanto oblíquos. Lembro que uma vez me propuseram esta charada: “UM OLHAR MORTO. 2,1” Quebrei a cabeça e nada. O cara me explicou: “Um: cada. Olhar: ver. Morto: cadáver”. Gostei tanto que criei algumas variações, como a que proponho ao leitor: “UM ERRÔNEO CASTIGO. 2,2”. Percebi que várias palavras poderiam servir como sinônimo oblíquo para “um”, e produzi outras: “UM GRITO ELEVADO. 1,2”; “UM RÁPIDO SOLILÓQUIO. 2,2”. Outra dessas oblíquas é “FOI PRETO e ACABOU-SE. 1,2” Também não decifrei, e me explicaram: “Foi: ex. Preto: tinto. Acabou-se: extinto”.

Mas o melhor são as charadas infames, em que as palavras são voluntariamente deformadas, de modo que a solução é algo que soa parecido, mas que ninguém seria capaz de adivinhar. Uma das minhas preferidas é: O ANIMAL NA TORRE DA IGREJA ENCONTRA-SE DOENTE. 2,2” Não adianta quebrar a cabeça como o fiz durante dias inteiros, porque quando desisti me disseram que a resposta era: “O animal: tatu. Na torre da igreja: sino. Encontra-se doente: tá tussino”.

Uma pequena obra-prima do nonsense e do trocadilho infame é esta outra, que necessita de uma certa introdução. Em 1922, os aviadores portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral fizeram a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, saindo de Portugal e chegando ao Brasil. Tornaram-se figuras famosas nos dois países. A charada dizia: “SOFRE DE GAGUEIRA o FILHO DO COUTO, mas NÃO É ELE, É O OUTRO. 2,3”. A resposta da charada, evidentemente, é: “Sacadura Cabral”.