segunda-feira, 5 de abril de 2010

1868) O mundo dos Jetsons (5.3.2009)



Quem não se lembra de Os Jetsons, o desenho animado de Hanna & Barbera sobre uma família futurista, num universo cheio de engenhocas eletrônicas? Os Jetsons representam, num nível infantilóide e simpático, uma tendência secundária na ficção científica: a criatividade aplicada à vida doméstica, em busca de maneiras diferentes, mais rápidas, mais práticas, mais baratas, de realizar as pequenas tarefas do dia-a-dia.

Existem pessoas com talento mecânico: têm conhecimento de máquinas e têm criatividade suficiente para conceber novas combinações de função, design, etc. Esses indivíduos muitas vezes, em suas horas vagas, em casa, põem-se a pensar. Que inovações podem ser introduzidas nisto ou naquilo, para otimizar resultados ou poupar esforços? Acontece com eles o mesmo que acontece com mulheres que desenham, costuram e remodelam suas próprias roupas. Quem faz isto sabe exatamente por que está fazendo, e já tem a intuição do que precisa ser feito.

Em todo lugar há sujeitos que sabem (eu não sei) pegar serrote, martelo e tábuas, e criar um armário com o número, o tamanho e a disposição de escaninhos necessários para o que ele precisa. Meu pai fazia tabuleiros para a gente jogar xadrez e crapô, encadernava os próprios livros. Quando se junta alguém com a habilidade manual e a curiosidade mecânica, surgem as grandes questões. O que se pode melhorar, e de que maneira? Utensílios domésticos podem ser indefinidamente melhorados, e poderiam até ser personalizados para cada casa e cada família. Em geral mexemos na casa, mas aceitamos os utensílios industriais como são, com pudor ou preguiça de interferir neles. Há pessoas que criam suas próprias cortinas, suas próprias luminárias. Daí é apenas um passo para haver quem queira criar seu próprio espremedor de frutas, seu passador de café.

Como melhorar o design de uma caixa de fósforos? (Talvez mantendo os fósforos presos, dentro dela, por uma borrachinha não muito apertada, para que, se caírem no chão, não se espalhem todos.) Como melhorar o design de um par de óculos? (Um detalhe que brilhe no escuro, ajudando os míopes e os insones?) Como melhorar o design de uma faca de cozinha? (Um amolador no cabo, para que duas facas possam se amolar mutuamente?) Como melhorar o design de uma garrafa térmica? (Um medidor digital informando a temperatura, como já temos nas geladeiras de cerveja?) Como melhorar o design de um olho mágico? (Uma proteção pelo lado de dentro, para a pessoa que está tocando a campainha não poder perceber se há alguém olhando por ele ou não?)

Os Jetsons são a apoteose dessa mentalidade, em função de duas asas vitais para a criatividade: a ficção científica, onde tudo se pode imaginar, e o desenho animado, onde tudo se pode reproduzir. Seria interessante ver quantas coisas imaginadas pelos Jetsons, há mais de 40 anos, podem ser encontradas hoje em quaisquer Casas Bahia ou Casa & Vídeo.

1867) Updike e a arte da resenha (4.3.2009)



Nunca li nenhum livro de John Updike, recentemente falecido, e um dos jesus-pequeninos da crítica literária dos EUA. O New York Times publicou há poucos dias um texto em que Updike, que por muito tempo escreveu resenhas e críticas literárias na imprensa, resume seus mandamentos como resenhador.

O primeiro deles diz: “Procure entender o que o autor quis fazer, e não o culpe por não conseguir algo que ele não estava tentando”. Há críticos que desembarcam num livro armados até os dentes, como Rambos, com o arsenal teórico de um Ismo qualquer. Quando constatam que o arsenal teórico não se aplica ao livro, condenam o livro. Segunda regra de Updike: “Dê ao autor a chance de ser citado diretamente, em pelo menos um trecho longo, para que o leitor possa ter uma noção da prosa do livro”. Muito importante, mas difícil de obedecer sempre numa coluna como esta, em que a gente mal tem espaço para dizer o que achou. O estilo de alguns autores é visível em pequenos trechos (Guimarães Rosa, p. ex.) mas para dar uma idéia da prosa de Thomas Pynchon ou de Marcel Proust, escritores de fôlego largo e períodos quilométricos, seria preciso uma lauda inteira. Terceira: “Comprove sua descrição do livro com excertos do próprio livro, em vez de resumos pouco objetivos”. Aqui também entra a questão do espaço.

Quarta regra de Updike: “Não faça resumo muito minucioso do enredo; e não revele o final”. É impressionante como certos críticos não hesitam em revelar as surpresas de um livro, imaginando, talvez, que todos os leitores do jornal leram o livro ao mesmo tempo que ele. E nem me refiro a livros policiais e de mistério, cuja crítica minuciosa sempre envolve uma certa ginástica para não revelar o essencial. A cultura internética criou o conceito de “spoilers”, revelações que podem estragar o prazer da leitura. Quando encontramos essa advertência no comentário de um livro ou filme, temos a opção de pular aqueles parágrafos e continuar a leitura mais adiante. Poucos críticos de livro usam esse recurso tão honesto e amigável.

Ele diz também: “Se o livro é um fracasso, procure indicar um livro na mesma linha que foi bem sucedido, seja na obra do mesmo autor ou de autor. Procure entender o fracasso. Tem certeza que é do livro, e não seu?” Updike conclui seu cardápio com uma recomendação que não vale a pena somente para críticos e resenhadores, mas é uma espécie de Oração do Leitor. Transcrevo:

“Não aceite resenhar um livro que você está predisposto a não achar bom, ou que se sente na obrigação de gostar, por amizade. Não se considere um defensor de tradição alguma, nem o vigia de normas partidárias, um soldado numa guerra de ideologias, ou um guardião de qualquer tipo de moral. Resenhe o livro, não a reputação do autor. E deixe-se levar por qualquer tipo de encantamento, fraco ou forte, que o livro produza. Melhor compartilhar desse encantamento e louvá-lo, do que condená-lo e recusar-se a ele”.