quarta-feira, 24 de março de 2010

1820) Olavo Bilac e João Cabral (8.1.2009)




À primeira vista, não podem haver dois poetas mais dessemelhantes. Quem lê um e logo em seguida pega um livro do outro precisa passar por alguns minutos de adaptação mental, como aqueles mergulhadores que têm de voltar à tona aos poucos, de tão grande que é a diferença de pressão. 

O mundo de Bilac nos lembra uma imensa galeria do Louvre cheios de quadros históricos e de langorosos nus femininos, pintados por Courbet, Degas, William Bouguereau, Alma-Tadema. São figuras da mitologia, episódios épicos ou bíblicos, virgens diáfanas envoltas em tules e musselinas, bosque sombrios, pássaros canoros, ameias e torreões de castelos, casais pré-rafaelitas enlaçados nos transportes da paixão. 

Já o mundo de Cabral nos arrebata para um deserto árido e cheio de arestas, povoado por cabras e retirantes; mangues pegajosos, cidades rústicas que mal se distinguem das colinas pedregosas que as cercam. Seu mundo lembra, até pelo exame permanente do traço, da forma, da dinâmica abstrata dos processos, a fase de gravuras geometrizantes de Max Ernst, ou as xilogravuras de cortes brutais de Segall, Scliar ou Darel.

E, mesmo assim, poucos poetas defenderam com tanta eloquência, em tribunas opostas e até antagônicas, os mesmos princípios estéticos. 

Tanto Bilac quanto Cabral são os poetas da construção, do perfeccionismo, do intelecto avassalador apropriando-se das mais ínfimas tarefas da criação poética. 

Os dois divergem no temperamento pessoal e nos assuntos que abordaram, mas o modo de empunhar a poesia é o mesmo.

É costume contrapor a obra de Bilac à de Castro Alves, pois os dois foram os mais populares e festejados poetas brasileiros do século 19. 

Castro Alves é inspiração torrencial, transbordante, indisciplinada, produzindo poemas gigantescos e tonitruantes crivados de pequenos defeitos. Diz-se que era um bom improvisador de versos, e de fato tinha as qualidades e os defeitos de qualquer repentista. O surgimento de Bilac enxugou a poesia brasileira desses excessos. Cabral foi ainda mais longe, e reduziu a poesia a osso, viga, concreto, medula.

Em sua famosa “Profissão de Fé”, Bilac invoca como modelos de poeta o Ourives (que ele prefere) e o Escultor. Já Cabral elegeu o Engenheiro e o Arquiteto. 

Por diferentes que sejam, todos trazem em si o traço que une os dois poetas: o propósito de construir, em vez de apenas “parir” o poema. Com a mente lúcida e a mão minuciosa. Reescrevendo dezenas de vezes até achar a palavra certa, a sílaba tônica ou átona na posição exata, a simetria quase imperceptível de consoantes em pontos opostos da linha. Ritmo, sonoridade, evocação sensorial de imagens, tudo isto é pesado e medido, com balança de precisão, lupa e bisturi. 

Que profissões simbólicas serão invocadas como modelo pelos poetas construtivistas do futuro? Engenheiro de software? Webdesigner? DJ? Programador de mosaicos verbais logarítmicos com variáveis randômicas? As possibilidades, como sempre, são infinitas.




1819) Tia Nunum (7.1.2009)



Chamava-se Anunciada, e era a mais jovem e a mais divertida das minhas tias maternas. Mesmo tendo convivido com ela até sua velhice, a imagem que guardo comigo é a de uma moça de vinte e tantos anos com cabelo louro, rosto claro e um permanente sorriso aberto. Consolo-me pensando que está viva e imutável, e que a senhora de 83 anos que faleceu dias atrás era outra pessoa.

Pela pouca diferença de idade, ela era para mim e para minha irmã Clotilde uma espécie de prima mais velha, com autoridade para nos dar ordens e disposição para ser uma infatigável companheira de brinquedos. Jogávamos ludo, damas, relancim. Tide, num artigo recente, lembra episódios da nossa infância, inclusive o que deu origem ao termo “O Raio da Silibrina”, que eu inadvertidamente tornei famoso. Já falei sobre isto aqui – procurem “Silibrina” no meu blog (http://mundofantasmo.blogspot.com). Na minha lembrança, certa noite meus pais foram jantar fora, e Tia Nunum resolveu pregar-lhes uma peça. Chamou nós dois; reunimos umas roupas velhas, sapatos, um chapéu. Recheamos aquilo com jornais amassados para fazer volume. A cabeça era um travesseirinho com uma máscara de carnaval presa com elástico, e o chapéu em cima, firmando. Um par de luvas formava as mãos, que seguravam um copo e um cigarro. O “judas” foi sentado no sofá da sala, e ela pregou no peito dele um pedaço de cartolina onde escreveu: “O Raio da Silibrina”. Escondemo-nos atrás da poltrona. Quando meus pais chegaram e acenderam a luz, houve o previsível espanto, e as nossas gargalhadas.

Nossa memória é infiel, elusiva, escorregadia, mutante, parece-se mais com o delírio verbal de James Joyce no fim da carreira do que com as filigranas apolíneas de Marcel Proust, o homem que nada esquecia. Lembro Tia Nunum desenhando num caderno rostos femininos de longas pestanas, copiando letras de músicas, inclusive uma (que ainda creio ter em alguma pasta) de uma música que ela cantava muito, e que enumerava e comentava todos os bichos do Jogo do Bicho, de 1 a 25. Foi também ela que nos ensinou a jogar “Disparate”, em que pessoas fazem listas aleatórias de nomes, ações e lugares, e depois vão encadeando essas listas, formando frases absurdas como “Napoleão Bonaparte – e Tia Neuza – pescando caranguejo – no planeta Júpiter”.

Era a mais bonita de todas as irmãs, e nunca se casou, talvez pelo excesso de responsabilidade. Um namorado que teve a achava parecida com Lauren Bacall, e eu, que era apenas um garoto, me senti orgulhoso porque também já tinha pensado a mesma coisa. Já mais idosa, com quarenta, cinquenta anos, ainda passava temporadas inteiras na casa dos meus pais. Jogávamos crapô, víamos filmes na TV, e no auge da minha fase john-lennon cabia a ela aparar de vez em quando minha cabeleira hirsuta, que eu jamais confiaria aos barbeiros do Calçadão. Tia Nunum foi alegre, triste, jovem e velha, bela e contida, mas sempre cheia de amor para distribuir. Morreu no Natal, como Carlitos.

1818) Diálogos filosóficos (6.1.2009)



(Platão e Aristóteles, detalhe de A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio)

Era uma tarde amena e primaveril na planície do Peloponeso, e dois filósofos pré-socráticos caminhavam pela estrada, esgrimindo suas dialéticas. Disse Empedóclito:“O conceito de ser, meu caro Herístocles, tem que necessariamente passar pelos sentidos. Posso te garantir, por exemplo, que aquela nuvem de poeira que se aproxima ao longe está sendo causada pelo rinoceronte que galopa no meio dela. Como poderia eu perceber as duas coisas, nuvem e rinoceronte, se não fosse dotado de visão?” Herístocles deu uma risada e contrapôs: “Eu poderia te desmentir de dez maneiras diferentes, caro amigo. Mas teus argumentos são tão fracos que me é muito mais divertido corroborá-los, mesmo sabendo que estão na pista errada. Porque ainda que fosse eu um cego, poderia perfeitamente perceber a aproximação do teu rinoceronte imaginário, devido ao rumor do seu tropel, e ao impacto do seu peso sobre o chão, que percebo através das minhas sandálias”.

“Concordas então,” disse Empedóclito, “que as mensagens dos sentidos são suficientes para atestar a realidade de um ser?” Ao que Herístocles retorquiu: “Nem de longe, caro amigo. Nossos sentidos nos enganam o tempo inteiro. No deserto, fazem-nos imaginar a proximidade de um oásis; e quantas vezes julgamos ouvir vozes humanas no grito de um pássaro ou ladrar de um cão!” Empedóclito insistiu: “Não podes negar, contudo, que este rinoceronte é real, e que se aproxima de nós!” “Como sabes que se aproximas?” “Ora, porque sua imagem aumenta a olhos vistos, bem como fica mais forte o ruído do seu galope”. “De fato, concordo, mas seria igualmente lícito imaginar que ele não galopa, apenas sapateia imóvel lá onde está, e que é seu corpo que cresce, torna-se mais volumoso e pesado, hipótese que responderá também pelo ruído mais forte de suas patas sobre a terra”.

Empedóclito enxugou a testa numa dobra da túnica, e sugeriu: “Vês aquele garoto que se banha no rio, ao longe? Será que um terceiro testemunho não poderia dirimir nossas dúvidas?” Herístocles deu de ombros: “Não creio. Em primeiro lugar, ele talvez registrasse apenas a existência de um rinoceronte cuja imagem diminuía, e cujos passos se tornavam menos audíveis. Algo que de modo algum coincide com nossa experiência, sendo mesmo o inverso dela.” “Mas claro,” disse Empedóclito, “se ele está do lado oposto, é natural que...”

Não pôde concluir sua frase, porque nesse instante o rinoceronte rompeu através dos dois com suas cinco toneladas de peso, mais que suficientes para esmagar qualquer dupla de filósofos, caso filósofos ali houvesse. Empedóclito e Herístocles constataram assim sua própria não-existência (pois de fato nunca existiram), ao passo que o rinoceronte, não-personalizado, não-específico, se impôs com seu peso arquetípico de conceito universal, e prosseguiu galopando. Platão, então um mero garoto a banhar-se no rio, viu tudo e nunca mais esqueceu.

1817) O Bálsamo da Amnésia (4.1.2009)



(Salvador Dali, Sonho Causado pelo Voo de um Inseto em Volta de uma Romã um Segundo Antes do Despertar)

Antonio desceu do ônibus perto do Colégio das Damas e atravessou a Praça da Bandeira, rumo ao Calçadão, para tomar um cafezinho antes de subir para o escritório. Uns motoboys discutiam aos berros. Ele parou (gostava de olhar briga à distância) e nesse instante o espaçotempo se fendeu e ele foi arrebatado por uma criatura lagartiforme, que prendeu entre os dentes a gola de seu casaco e começou a subir correndo uma escadaria de degraus larguíssimos, toda feita de mármore com incrustações de frutas cristalizadas. Enquanto o fazia, a criatura lhe explicava, com a outra boca, o princípio básico do Existencialismo sartreano: “A existência precede a essência,” dizia ela, “ninguém é nada a-priori, as pessoas e coisas surgem fisicamente, primeiro, e só depois tornam-se o que são”. Depositou-o aos pés de uma estátua em forma de adjetivo, fez com que beijasse seus doze pés, e disse: “Esquecerás tudo”.

Antonio atravessou a rua, entrou no Café São Braz e pediu um cafezinho. Enquanto mexia o açúcar deu de cara com Zé Alberto, que o convidou para participar de um bolão da Mega-Sena. “Já joguei muito dinheiro fora,” disse Antonio. “Se eu pudesse recuperar todo o dinheiro que já investi nessa besteira eu fazia minha independência econômica”. Conversaram futebol e estavam se despedindo à porta quando sob os pés de Zé Alberto surgiu uma abertura hexagonal e ele deslizou por um canal escorregadio, a uma velocidade espantosa, até ser despejado num enorme caldeirão onde dezenas de animais se debatiam aos gritos. O líquido do caldeirão começava a borbulhar. Zé Alberto brigou, nadou, esmurrou, conseguiu aproximar-se da borda e saltar, mas passava por ali um gancho de guindaste que o elevou até o Posto de Controle. O Controlador era um buldogue com três metros de altura que grampeava documentos com a boca. Olhou para Zé Alberto e diagnosticou: “Estás com uma válvula cardíaca defeituosa mas nunca o saberás porque não vais ao médico. Morrerás num dia 28 de julho, daqui a seis anos. Agora cai fora e me deixa trabalhar. Esquecerás tudo”.

Zé Alberto deu uma tapinha no ombro de Antonio e voltou devagar para a Lotérica; faltavam duas pessoas para completar o bolão. Nisso ele avistou Suely, tentou se esconder mas não pôde. “Bonito pra sua cara,” disse ela, cruzando os braços. “Fiquei plantada a noite toda, tomando chope sozinha”. Zé Alberto improvisou uma desculpa mas ela já sabia que ele tinha ido para o aniversário de Fátima. “Não me ligue mais, e vê se me esquece,” concluiu ela. Saiu andando, pisando com força, e desceu a Venâncio Neiva, sem rumo certo, só para dobrar uma esquina e sumir da vista dele. Estava furiosa. Em momentos assim, imagens monstruosas e delirantes passavam pela sua mente, sem que ela soubesse de onde vinham. Teve a sensação de que algo espantoso acabara de lhe acontecer e que esquecera quase tudo. Invejou a placidez desmemoriada dos rostos que passavam por ela e sumiam para sempre.

1816) Encontrado dentro de um livro (3.1.2009)



(marcador de livros da Idade Média)

Existe um curioso fetichismo em quem ama os livros, porque não só os livros, mas tudo quanto os cerca, parece capaz de despertar uma paixão reverente que tanto beira o êxtase religioso quanto roça o erotismo. Folheei certa vez numa biblioteca um tratado que estudava os farrapos de pergaminho usados pelos copistas medievais para marcar as páginas dos livros que estavam lendo. Eram meras tiras de “papel” com alguns centímetros de largura, mas quando tinham uma certa extensão era possível decifrar o que havia escrito nelas, e até mesmo deduzir de que tipo de texto haviam sido rasgadas. Cochilando durante séculos entre as páginas dos velhos alfarrábios, em mosteiros tipo “O Nome da Rosa”, esse modestos farrapos eram pacientemente descobertos, catalogados, examinados e descritos por um PhD qualquer, que apesar de seus muitos títulos acadêmicos certamente não achava estar se rebaixando ao estudá-los.

Agora vi no caderno de literatura do “New York Times” um curioso artigo de Henry Alford na mesma linha, “A Gente Nunca Sabe o Que Vai Encontrar num Livro” (http://www.nytimes.com/2008/12/21/books/review/Alford-t.html?_r=1&8bu&emc=bub1). Alford baseou-se nas suas próprias experiências e consultou outras pessoas, perguntando-lhes: “Qual foi a coisa mais esquisita que você já encontrou num livro?” As respostas variam, e diz ele que incluem desde uma fatia de bacon frito (encontrada pelo romancista Reynolds Price) até um bilhete, achado pelo dramaturgo Mark O’Donnell, com a intrigante advertência: “Não me escreva sob o nome de Gail Edwards, aqui eu sou conhecida como Andrea Smith”. Outros achados incluem uma bala de arma de fogo, o dente de um bebê, drogas, fotos pornográficas, e as inacreditáveis 40 notas de mil dólares achadas pelos funcionários de um sebo.

O músico Dan Zanes possuía uma foto raríssima do escritor J. D. Salinger, que nunca se deixa fotografar. A foto lhe fora dada por sua mãe, e ele a guardou num livro, tão bem guardada que há décadas não sabe mais onde está: “Com certeza não está em nenhum dos livros atualmente em minha casa”. Caso parecido é o de Sherman Alexie, que em sua época de universitário fazia farras homéricas, e, com medo de gastar tudo que tinha quando bêbado, adquiriu o hábito de esconder notas de 10 ou 20 dólares dentro dos livros, para achá-las meses depois.

O melhor, contudo, é a peça que Meg Wolitzer e uma amiga, quando estudantes, pregaram a algum rato-de-bibliotecas do futuro. Num pedaço de folha de caderno, imitaram a letra da escritora Sylvia Plath, escreveram uma bobagem sobre “uma redoma de vidro” (título de um livro da poetisa), envelheceram artificialmente o papel e o deixaram entre as páginas de uma obra de referência da biblioteca, para ser descoberto um dia. Certamente por algum pesquisador incauto que não lê nem o New York Times nem o Jornal da Paraíba.