quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

1703) Machado: “Conto Alexandrino” (27.8.2008)



(Machado, por Fraga)

A crítica vê no conto “A Causa Secreta” o melhor exemplo da crueldade literária de Machado de Assis, com seu personagem Fortunato, o sádico torturador de ratos. Penso eu que Fortunato se ombreia com São Francisco de Assis, se comparado a Pítias e Stroibus, os protagonistas do “Conto Alexandrino” (Histórias sem Data, 1884). Se o leitor duvida, siga-me e verá. Os dois são filósofos cipriotas que se destinam a Alexandria para usufruir da generosidade do rei Ptolomeu para com as ciências. Na viagem, Stroibus explica ao amigo que os sentimentos humanos têm sua contrapartida nos animais, e que experimentar-lhes o sangue pode mudar o caráter de alguém.

Diz Stroibus: “Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do paciente no boi, os do arrojado na águia... (...) O princípio da fidelidade conjugal está no sangue da rola, o da enfatuação nos pavões...” Pítias duvida. Em Alexandria, os dois dissecam ratos, cujo sangue bebem, para descobrir se alguma mudança se processa neles próprios. Sacrificam dezenas de animais na mesa de operação, discutindo pormenores ínfimos: “Pítias observara que a retina do rato agonizante mudava de cor até chegar ao azul claro, ao passo que a observação de Stroibus dava a cor de canela como o tom final da morte. O vigésimo rato esteve a ponto de pô-los de acordo, mas Stroibus advertiu, com muita sagacidade, que a sua posição era agora diferente, retificou-a e escalpelaram mais vinte e cinco”.

Ao beber o sangue dos ratos, tornam-se, eles próprios, ratoneiros de primeira marca, roubando de tudo: “iam aos mantos, aos bronzes, às ânforas de vinho, às mercadorias do porto, às boas dracmas”. A Biblioteca de Alexandria não fica imune aos dois larápios, que furtam “um exemplar de Homero, três rolos de manuscritos persas, dois de samaritanos, uma soberba coleção de cartas originais de Alexandre, cópias de leis atenienses, o 2o. e o 3o. livro da República de Platão, etc.” O conto se encerra com os dois filósofos sendo apanhados, e por sua vez postos à mesa de dissecação, onde novos cientistas os descosem à lâmina crua, para investigar-lhes o caráter: “os infelizes berravam, choravam, suplicavam, mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra, durante oito dias.”

É um “conto cruel” comparável aos de Villiers de l’Isle Adam, e uma fábula conceitual semelhante às “Ciberíadas” de Stanislaw Lem. Machado também retoma, de passagem, outro tema recorrente em seus contos, o do indivíduo que copia ou furta idéias aos amigos (v. “Os memes de Machado de Assis”, 27.10.2005). Seus filósofos são auto-suficientes e narcisistas, e só quando sofrem o castigo final percebemos que esses defeitos não estão no seu sangue, mas no sangue da Ciência mesma.

1702) Em busca do choro olímpico (26.8.2008)



(César Cielo)

Passei estes dias tomado pelo espírito olímpico. Ia dormir às 3 da manhã, depois de acompanhar esportes que não compreendo, como o handebol ou a natação (até hoje não sei quantos metros tem aquela piscina, nem quantas vezes o nadador tem que percorrê-la). E acordando às 7 para ver o futebol. Só me arrependi no dia de Argentina 3x0 Brasil, mas também, por essa eu já esperava. Já não boto fé na Seleção titular de Dunga, quanto mais nos vestibulandos!...

Quando juntamos todos os esportes do mundo, e toda a imprensa que os cobre, numa mesma Vila Olímpica, isso produz uma gigantesca massa crítica de frases feitas, que de 4 em 4 anos se repete. Nada é tão parecido com uma Olimpíada quanto a Olimpíada anterior. Entre os clichês mais repetidos, pelo menos pelos locutores brasileiros, está a frase lapidar que eles bradam, sempre que alguém ganha uma semi-final: “Agora vamos para a decisão, e a prata já está garantida!” Se eu fosse um atleta diria: “Toc-toc-toc! Isola! Meu amigo, vá agourar outro!” Porque a última coisa que o sujeito tem que pensar nessa hora é que vai ganhar a prata, não é mesmo? Se perder o jogo, a prata é de bom tamanho. Mas dizer que ela “está garantida” é o mesmo que dizer que a derrota está garantida.

Foi mais ou menos o que ocorreu com os rapazes do vôlei. Claro que foram “pra cima”, tentando o ouro. Nenhuma prata é mais dolorosa do que a que vem no lugar de um ouro que se sabia possível, como ocorreu no futebol feminino e no vôlei masculino. Neste último caso, de forma menos dolorosa, porque o jogo foi pau-a-pau. Em nenhum momento o time de Bernardinho mandou no adversário, que ganhou porque jogou melhor. Não foi assim no futebol das moças. Aquele jogo final do time da Marta nos deu ambição, nos deu esperanças, nos deu “espaço para a expansão do Desejante”, como diria um psicanalista. O resultado era pra ter sido outro.

Estes Jogos Olímpicos nos deixaram um gosto amargo na boca, apesar das vitórias sensacionais do vôlei feminino, de César Cielo e de Maurren Maggi. Das nossas quatro pratas, a de Scheidt & Bruno foi uma vitória. As dos vôleis de quadra e de praia, e a do futebol feminino, ocorreram em disputas em que éramos favoritos e que deveríamos ter vencido. As medalhas de bronze foram sofridas e suadas; a única que representou uma decepção, desta vez, foi a do futebol.

A imprensa otimista se consola lembrando que fomos o país latino-americano mais bem colocado, e que pela primeira vez ganhamos mais medalhas do que Cuba. Isso é uma cara-de-pau sem tamanho. Cuba é uma ilhota que vem sendo morta à míngua pelos EUA há 50 anos. Não precisa ser comunista para achar que é um despropósito compará-la com este gigantesco continente de corrupção e desperdício que é o Brasil. Pelo que o país afirma gastar com esportes (os jornais falam hoje em 692 milhões de reais gastos em preparação para este Olimpíada) a obrigação era mostrar muito mais. E não me refiro aos atletas.

1701) Machado: “A Chinela Turca” (24.8.2008)


(Machado, por Spacca)


Talvez uma das razões que fizeram de Machado de Assis um escritor de enredos minimalistas, quase inexistentes, seja o fato de que ele viveu numa época parecida com a nossa, quando os enredos veementes, fantasiosos, cheios de peripécias, faziam as obras de sucesso popular. 

O espaço hoje ocupado pelo cinema e pelas telenovelas pertencia, no tempo de Machado, ao romance em folhetins e ao melodrama teatral; e é contra esses dois moinhos de vento que ele investe em “A Chinela Turca” (em Papéis Avulsos, 1882), mais com “a pena da galhofa” do que com “a tinta da melancolia”. Releia o conto, e veja o quanto eram familiares ao nosso escriba os recursos do melodrama.

É noite. O bacharel Duarte está se aprontando para ir fazer cerca-lourenço a uma namorada, quando irrompe-lhe em casa o major Lopo Alves, com a notícia de que acaba de compor um drama. Duarte não tem como negar atenção ao major, e concorda em submeter-se à leitura, que é um suplício: 

Nada havia de novo naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do autor. O mais eram os lances, os caracteres, as ‘ficelles’ e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismo desgrenhado. 

Peripécias absurdas se sucedem. Duarte cochila, e de repente vê que o major guarda os papéis e sai.

Então... surpresa! Entra-lhe de casa adentro um homem que anuncia ser da polícia, acusa-o do roubo de uma chinela turca, e o conduz sob protestos a uma mansão onde Duarte entra de olhos vendados, encontra um padre misterioso, e é levado a um salão, na presença de uma dama belíssima. 

Um homem de arma em punho anuncia-lhe que terá de casar com a dama, fazer um testamento deixando-lhe tudo que possui, e em seguida beber “certa droga do Levante”. Duarte recebe a inesperada ajuda do padre (que lhe sussurra: “Não sou padre, sou tenente do exército”). Pula pela janela, foge pela escuridão da noite, perseguido pelos esbirros da mansão, entra por uma casa, e ali vê o Major Lopo Alves lendo um jornal, “cujas dimensões iam-se tornando extremamente exíguas”... O Major profere a última fala do seu drama, e encerra a leitura.

O jornal que vira folha de manuscrito é o mesmo hipopótamo do delírio de Brás Cubas, que se reduz às dimensões de um gato real. Durante a leitura de uma peça maçante, Duarte viajou mentalmente para uma aventura tão “ultra-romântica” quanto o drama do major, porém mais conforme com seu momento emocional e com a existência de uma namorada inacessível. E ele conclui dizendo: “O melhor drama está no espectador e não no palco”.

Duarte substitui a fantasia melodramática do Major por uma de sua própria lavra; Machado ironiza as duas, mas reconhece a necessidade terapêutica de fantasiar, a vantagem de substituir “o tédio por um pesadelo”. Mas na frase final do conto cifra o que seria sua literatura da madureza: o romance do espaço interior, romance da mente, romance do discurso verbal que a move, o romance de personagem, e não de peripécia.





1700) Comida comunitária (23.8.2008)



Numa ida rápida ao Banco encontro com meu vizinho Egeu Laus, que de uma esquina a outra me apresenta o conceito de Slow Food, proposto por grupos que querem se contrapor não apenas ao sanduíche-iche-iche multinacional, mas à despersonalização dos hábitos que a cultura de lanchonete acarreta. Egeu lembra o conceito clássico do “ágape”, que significa entre os gregos amor ou afeição, e foi transplantado para os tempos cristãos como sinônimo de banquete, ou de comida comunitária, congraçamento, convivência e outras prefixações que sugerem o entrelaçamento harmonioso das vontades e dos prazeres.

Não me constrange admitir que como “fast food”. Detesto os hamburgers do MacDonald’s; prefiro os nuggets de frango. No Bob’s vou de salada de atum. No KFC gosto dos frangos empanados (apesar do colesterol recorde), e tem uma Salada Crocante que me quebra um galho. Como se vê, não sou um fundamentalista, um radical hardcore, e acho que isto dá equilíbrio e credibilidade às minhas escolhas. E podendo escolher prefiro a comida vagarosa, regada a cerveja, música e papo.

A Comida Comunitária nos lembra um aspecto que vai mais além do alimentício. Ela é uma reunião de pessoas que, sob o pretexto de comerem juntas, vivem juntas durante algumas horas, relacionando-se, trocando informações, aparando arestas, reafirmando laços. Ou até mesmo tolerando-se mutuamente, porque a tolerância é a quarta virtude teologal. Comida comunitária quer dizer fundo de quintal, terraço no sábado à tarde, restaurante com mesas longas e bancos de madeira onde cabem quinze pessoas de cada lado. É a mesa na casa grande da fazenda, com o patriarca à cabeceira, a família e os hóspedes próximos a ele, e o resto da mesa ocupado pelos serviçais, até o mais humilde peão, todos almoçando juntos.

Comida Comunitária é a buchada nordestina, a feijoada carioca e o caruru baiano. “Amanhã tem um caruru na casa de Fulano!” Não é uma dica gastronômica, é uma convocação social. Que eu saiba, nenhuma dona de casa baiana prepara um caruru para comê-lo a sós com seu respectivo. Caruru só presta no panelão, com a casa cheia de gente. Feijoada e buchada são pretexto para violão, tumbadora e cavaquinho.

O fast-food não é invenção dos americanos, também é coisa nossa. É a comida às pressas, sozinho, em silêncio, no intervalo entre dois turnos do escritório. Era a refeição escravocrata dos botequins de Copacabana que conheci há quase 40 anos, em que um sujeito comia um prato-feito sentado ao balcão enquanto atrás dele uma fila indiana e silenciosa esperava, até ele dar a vez ao próximo. Naquele recinto apinhado de gente, cada um comia a sós, sem cruzar um olho, sem trocar uma palavra, sem perder um minuto. A comida tinha que ser rápida, porque o taxímetro do patrão estava tiquetaqueando no local de trabalho. “Quem come depressa morre ligeiro”, rezava a sabedoria das tias de antanho, cuja longevidade atesta o quanto sabiam viver.

1699) O futebol olímpico (22.8.2008)



(Marta)

Eu trocaria de bom grado a conquista de uma Copa do Mundo pela Seleção principal (essa de 2010 na África do Sul, por exemplo) pela medalha de ouro olímpica para a Seleção feminina, que merece muito mais uma consagração. Nenhuma derrota nestes jogos me abateu tanto quanto a das “meninas do Brasil”, como são chamadas pela imprensa. A Seleção masculina de Dunga perdeu para a Argentina sem jogar dois-tões de bola. Irritou; mas não entristeceu. Já a Seleção das meninas entristeceu – mas não irritou. Jogou bem, buscou o gol, lutou o jogo inteiro, e no segundo tempo da prorrogação, já perdendo, já exausta, ainda corria, chutava, batalhava pela bola como se fosse um prato de comida. Perdeu injustamente, mais uma vez. Eu preferiria perder uma Copa do Mundo inteira do que ter perdido esse jogo.

Falei que o time jogou bem, mas como perdeu está na cara que esse “bem” é relativo. O time tem defeitos. Talvez o defeito decisivo tenha sido o lado emocional, porque era visível o desgaste na paciência delas à medida que o jogo ia correndo. A sucessão de tentativas e erros cria um círculo vicioso em que os erros acabavam se tornando mais prováveis.

Todo mundo (inclusive eu) tem a mania de dizer que as americanas e européias são frias, são robotizadas, ao passo que nossas meninas são mais instáveis. Não é bem assim. Na semi-final contra a Alemanha, quando o Brasil virou o jogo para 2x1 as alemãs pareciam umas baratas tontas dentro de campo. Elas também acusam um golpe. Elas também se abalam. Aquela frieza só dura enquanto as coisas estão saindo conforme o manual, o planejamento e o cronograma. Se puxar o tapete, elas também caem.

Se tivéssemos feito o primeiro gol, certamente seriam as americanas a bater cabeça, a se afobar. Para mim o lance decisivo do jogo foi no segundo tempo, quando Marta driblou duas, entrou na área, chutou de esquerda e a goleira tirou com um soco da mão direita, às cegas, no susto, na intuição – e não estou dizendo que foi mera sorte, foi talento mesmo. Se essa bola entrasse, nossos nervos se normalizariam. Se íamos ganhar é outra história, mas com 1x0 o jogo estaria nas nossas mãos.

Faz pena um time de moças tão valentes, tão dedicadas (e tão hábeis com a bola nos pés) perder para um time tecnicamente inferior, cujas únicas virtudes são as virtudes de um jogo coletivo bem ensaiado, de muita marcação, muito preparo físico e muito estudo do adversário. No segundo tempo da prorrogação, as brasileiras, já com os nervos em frangalhos e as pernas bambeando, ainda corriam em campo com uma vontade admirável. Fico pensando se a seleção de Dunga estava assistindo esse jogo. Dunga está com os dias contados; e torcida já canta “Eu vou – eu vou – pra casa agora eu vou...” Tomara que vá logo, porque o futebol que ele quer nos impor é o contrário do futebol de Marta, Cristiane, Daniela, Ester, Formiga, Tânia e todas as valentes meninas do Brasil.

1698) “Blackwater” (21.8.2008)



Um programa recente na TV a cabo teve como tema as relações sombrias e escusas entre o governo Bush e a Blackwater, a principal empresa de mercenários (funcionários e soldados de aluguel) envolvida na Guerra do Iraque. O programa entrevistou o jornalista Jeremy Scahill, autor do livro Blackwater: The Rise of the World’s Most Powerful Mercenary Army (2007). Segundo Scahill, a Blackwater, mesmo sendo o exército mercenário mais poderoso do mundo, é apenas o topo de um iceberg de empresas contratadas pelo governo dos EUA para gradualmente ocuparem as tarefas de logística da guerra, desde conduzir comboios de carga até cuidar da burocracia, cozinhar e fazer tarefas de vigilância. Isto iria liberar um número cada vez maior de soldados para o combate propriamente dito.

Haveria outro benefício. Os soldados mercenários dessas empresas, quando mortos, não entram nas estatísticas oficiais de baixas. Mercenário morto é prejuízo apenas para a companhia para quem o governo terceirizou aquelas funções. Os funcionários da Blackwater ficaram famosos depois de um famoso massacre na ponte de Falluja, em março de 2004, quando quatro deles foram arrancados dos carros pelos iraquianos, fuzilados no meio da rua, queimados e pendurados de cabeça para baixo na ponte.
(Ver: http://tinyurl.com/yhzmsvx, e também: http://tinyurl.com/yfcogju).

Estimativas do custo da guerra para os EUA variam de 850 bilhões de dólares a três trilhões, por enquanto. Imagino que terceirizar essa atividade ajudaria a manter no mesmo ritmo de aquecimento a indústria bélica, que continuaria a fabricar e vender tanques, armamentos, munições, etc., mas aliviaria a mão do Estado, pois os custos recairiam em grande parte nas empresas privadas.

Aqui no Rio têm surgido nas favelas as milícias, que são uma terceira força a brotar no vácuo entre a polícia e os traficantes. As milícias armadas se proclamam grupos de defesa dos cidadãos contra o tráfico em áreas onde a polícia não consegue entrar, ou não consegue manter uma presença constante. A questão é que à medida que esses grupos para-militares se tornam mais fortes, mais bem armados e mais articulados com uma certa ala da política, passam a exercer pressão armada sobre a população. As favelas viviam entre dois fogos, agora vivem entre três.

A privatização da violência armada é a conseqüência natural de conflitos cujo objetivo puramente econômico todo mundo percebe. A retórica pró-forma sobre “libertar o povo”, “derrubar a ditadura”, “implantar a democracia” se choca com os fatos. O objetivo da guerra é o lucro, e surgem cada vez mais grupos que não precisam inventar outro argumento, além do lucro, para empunhar as armas. Clausewitz, convidado a falar sobre “a Arte da Guerra”, disse que a guerra não se parece muito com a Arte, e sim com o Comércio, que é também um conflito de interesses humanos.