quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

1610) Dylan e João Gilberto (10.5.2008)




No recente show de Bob Dylan no Rio (v. “Dylan, o Espírito sobre as Águas”, 11 de março) voltei a experimentar o estranhamento que Dylan produz nas próprias canções, ao cantá-las de forma ininteligível (pela dicção) e imprevisível (do ponto de vista melódico).

É sempre assim. Ele as canta como se dissesse: “Amigo, o que importa aqui é a letra, a melodia pode ser qualquer uma que me der na telha”.

É pena que essa opção (e o fato de que a voz dele, ao vivo, aos 66 anos, está meio nelson-cavaquinho) escondem o fato de que Dylan é um rei do fraseado, o rei da divisão. Como João Gilberto. Com o qual, afora isto, em nada se parece.

Não há muita gente que cante parecido com Dylan no Brasil. Há cantores que, à força de ouvir Dylan, sintonizaram um diapasão específico com certas qualidades suas como cantor. Vejam Zé Ramalho. A voz de Zé é grave, soturna, cavernosa, messiânica. Não parece a de Dylan em nenhuma das fases deste.

 O que Zé Ramalho tem de Dylan é o canto-falado ou a fala-cantada, que minimiza a melodia para absorver entonações da fala. Fala de arauto, de pregador no púlpito, de orador na praça, entonações que têm sua musicalidade própria (como Luiz Tatit seria capaz de provar cientificamente – eu não sou).

E, além disso, a elocução implacável dos versos, cada um deles se encerrando com um ponto final, definitivo como a martelada de um leiloeiro, um ponto final tipo “é isso e acabou-se”, um ponto que é um Juízo Final.

Dylan e João Gilberto são mestres na arte de deixar a cadência adiantar-se à sua frente para logo alcançá-la, ultrapassá-la, esperar por ela. Como um cara que se diverte em pular para fora de um trem em movimento, depois para dentro de novo, divertindo-se sem esforço. Mais característico de Dylan que de João é ter versos com mais sílabas poéticas do que notas musicais, mas isso não é problema, porque ele as comprime se necessário e sempre chega na hora.

Caetano Veloso faz um link entre Dylan e João, embora ao modo indireto e alusivo típico do baiano. Ele conclui a canção “O Estrangeiro”, do disco do mesmo nome, citando (e parafraseando), em inglês, um trecho do texto de encarte de Bringin’ it all back home: “Some may like a soft Brazilian singer, but I've given up all attempts at perfection" (“Alguns podem gostar de um suave cantor brasileiro, mas eu desisti de tentar a perfeição”).

O álbum de Dylan é de 1965, quando a bossa-nova começava a pipocar pelos EUA, após o concerto no Carnegie Hall em 1962. Se Dylan ouvia João Gilberto a ponto de sofrer influências é irrelevante, pois seu senso único de divisão vem mesmo é dos “talking blues” e dos blues em si.

Além do mais, sua atitude irreverente e “metamorfose ambulante” em relação às próprias canções difere muito do perfeccionismo neurótico de João. Mas um dos prazeres de ouvir Dylan hoje é vê-lo dividir aquelas letras (que sabemos de cor) numa melodia e num andamento que parecem estar sendo inventados na hora.






1609) As lições de Syd Field (9.5.2008)



(ilustração: Angel Boligan)

Já falei aqui sobre a fórmula descoberta pelo roteirista Syd Field para um filme de ficção de longa-metragem: três atos, dois pontos de viradas, duas “pinças” no meio do segundo ato, e assim por diante. 

Field virou um deus-pequenino no universo dos roteiristas, professores e produtores de cinema. Seus livros têm o tom messiânico, jovial e otimista que encontramos nos livros de auto-ajuda. Ele repete e repisa as coisas que acha importantes – e está muito certo. Professor que diz uma coisa importante apenas uma vez não irá longe na profissão.

O problema com Field é o dos que descobrem uma fórmula para fazer uma coisa: começam a achar que a fórmula deles é a única. Foi assim com o Surrealismo, com a Poesia Concreta, com o Rock Progressivo, com o Punk. O sujeito se deslumbra com o universo que acabou de criar, abraça-se a ele, e esquece do Universo maior que está em volta dos dois. 

Field repete até a exaustão clichês do cinema americano, como o de que “cinema é conflito” (do qual discordo radicalmente). É um conceito de cinema que pretende agarrar a atenção do espectador, seqüestrar sua mente sem largá-la por um segundo sequer. 

Um conceito de espetáculo mais próximo da TV (onde há mil distrações, e a possibilidade de mudar de canal) do que do cinema. Cinema não é para agarrar o espectador, é para chamá-lo, ir na frente, esperando que o espectador o siga, sem se distanciar. No máximo levando-o amigavelmente pela mão.

Ainda assim, Field diz coisas essenciais. “A essência da tragédia”, reconhece ele, “não deriva de um personagem estar certo e o outro errado, mas de ambos estarem certos, só que em direções opostas”. O cinema maniqueísta de hoje bem que podia dar atenção a este detalhe. 

Outro conselho essencial repisado por Field é “entrar na cena tarde, e sair cedo”. Grande parte dos filmes se tornam chatos porque a cena surge na tela muito antes do necessário. (Não me refiro aqui ao cinema que explora os silêncios e as demoras, como os filmes de Jim Jarmusch ou Bergman) Se o que queremos é ação narrativa, o melhor é entrar na cena com a ação já acontecendo, e sair antes que ela termine de todo.

Outro mandamento importante: “O espectador deve descobrir o que está acontecendo ao mesmo tempo que o personagem” Isto leva o espectador para o centro da ação e das surpresas. Claro que o contrário disso também funciona: quando sabemos o que vai acontecer, o personagem não sabe, e ficamos nos desesperando em nome dele. Mas o que Field quer dizer é que o cinema pode nos transmitir, como nenhum outro meio, a sensação do imprevisível e do inesperado que há na vida. 

O que bate certinho com outro conselho dele: “Evitar que os incidentes e os acontecimentos sejam muito planejados e muito previsíveis”. A vida não é assim, e num filme de intenções realistas tudo não pode dar muito certinho. Fica parecendo uma pessoa que telefona para a gente e está lendo num papel – a gente percebe na hora.






1608) A perfeição é a morte (8.5.2008)




Já comentei aqui (“O mundo em progresso”, 2 de março) o conto de Arthur C. Clarke “Os Nove Bilhões de Nomes de Deus”, em que o Universo deixa de existir quando um super-computador calcula todos esses nomes. Com isto, a Humanidade cumpre sua função e deixa de ser necessária. Clarke nos induz a pensar que o Universo é um processo que busca a completude, e que, uma vez completado, não terá mais razão de ser. Por outro lado, essa lista dos nomes de Deus talvez não tenha que ser um recenseamento de nomes próprios (Allah, Iavé, Adonai, etc.) mas uma reconstituição verbal de todos os elementos que são o reflexo do Divino no mundo material, seus átomos, por assim dizer. Como um nome contém (de acordo com certas doutrinas) a totalidade da coisa que nomeia, no momento em que conseguíssemos relacionar tudo que existe no Universo material teríamos criado um reflexo total desse Universo no mundo da palavra. O Universo se veria duplicado. Estaria, impossivelmente, transformado em dois Universos idênticos, e assim um deles teria que deixar de existir.

O leitor há de recordar um dos contos mais curtos e mais conhecidos de Edgar Allan Poe, “O Retrato Oval” (1842), onde se conta a história de um artista que está pintando o retrato a óleo de sua mulher. À medida que ele se dedica ao trabalho, ao longo de meses, a mulher enfraquece, fica anêmica. No instante em que ele dá a última pincelada, exclama: “Isto aqui é a vida, a vida propriamente dita!” E quando olha para a esposa percebe que ela acabou de morrer. O retrato era tão perfeito que equivalia a uma duplicação da mulher; e não podem existir no Universo dois seres idênticos. No momento em que uma duplicação assim ocorra, um dos dois tem que deixar de existir.

Esse impasse está na raiz de todas as histórias de ficção científica que envolvem a desmaterialização e rematerialização de objetos ou de pessoas. O famoso “teletransporte” ou “teleportagem” da FC seria, em tese, um processo em que na cabine A o corpo de um sujeito é desmaterializado, transformado em informação, essa informação é remetida à velocidade da luz para uma cabine B, e ali é usada para materializar um corpo idêntico ao primeiro. Os desenhos do Cartoon Network nos acostumam desde a infância a essa noção básica, que é utilizada apenas para permitir viagens instantâneas de um lugar para outro. Escritores mais espertos, contudo, questionam o processo. Uma das formas de questioná-lo é perguntar: “E se o primeiro corpo não precisasse ser desmaterializado? Se bastasse escaneá-lo, e depois produzir um corpo igual? Teríamos dois gêmeos idênticos? Poderíamos produzir um exército de clones?” Obras de FC como Rogue Moon de Algis Budrys (1960) e The Prestige de Christopher Priest (1995) trataram esse tema indo ao fundo de suas complicações existenciais e filosóficas. Se um sujeito igual a mim pode ser criado artificialmente, qual deles sou eu? Como distinguir entre o original e a cópia?

1607) O filme de Al Gore (7.5.2008)




Vi na TV a cabo o documentário Uma Verdade Inconveniente, sobre as palestras que o ex-vice-presidente dos EUA, Al Gore, faz pelo mundo, alertando as pessoas para os perigos do aquecimento global. Gore tem tido algum sucesso. Recentemente perguntaram ao presidente Bush se ele achava que iria mergulhar na obscuridade ao sair da presidência, e ele disse: “Bem, Al Gore depois que deixou a vice-presidência já ganhou um Oscar e um Prêmio Nobel, de modo que deixar o poder não chega a ser o fim do mundo”.

O fim do mundo é de certa forma o que Gore tenta nos fazer enxergar, numa palestra bem conduzida com imagens e estatísticas mostrando aquilo que eu chamo “o terremoto em câmara lenta” – a destruição vagarosa do nosso planeta pela industrialização desenfreada. Como é em câmara lenta, dá tempo da gente ir se mudando daqui para ali, e achar que adiou o problema. Ou que ele não existe.

Vi algumas críticas ao filme dizendo que é uma “egotrip” de Al Gore, que o filme se concentra o tempo todo na pessoa dele, etc. Essas críticas erram o alvo. O filme é um filme de Al Gore (mesmo dirigido por outras pessoas), para divulgar a palestra sobre aquecimento global que Al Gore tem feito pelo mundo (ele diz já ter feito essa palestra mil vezes). O filme não tem nada a ver como a Arte Cinematográfica nem com a Metalinguagem Documental. É uma peça de agitprop, agitação e propaganda. Equivale a um panfleto que recebemos num comício político. E seu objetivo é atingir um público maior que o das palestras. Eu, por exemplo. Gore fez a tal palestra aqui no Rio, há um ou dois anos, mas era só para convidados ilustres. Se não fosse o filme, eu não ficaria sabendo.

Não repisarei aqui as estatísticas citadas por Gore. O filme está nas locadoras, e aconselho a todos que o vejam. Como nenhum de nós tem condições de votar em Gore (ou em Hillary, em Obama, em McCain), acho que somos um tanto neutros ao que o filme contiver de propaganda política dos democratas. Eu vejo Gore, neste caso, como um porta-voz de escritores de ficção científica que há 50 anos nos alertam para os problemas que estamos causando ao meio ambiente. A mensagem apocalíptica de Gore se encaixa como uma luva (ou melhor: se encaixa como a costa leste do Brasil à costa oeste da África) à mensagem de outro filme, The Corporation, já comentado aqui (em 1.7.2005). É tudo o mesmo fenômeno. A atividade predatória e desenfreada das corporações, em busca de cada vez mais lucro, nos leva a um uso irracional da energia, um consumo excessivo, e uma exploração acelerada de recursos naturais não-renováveis. O aquecimento global é apenas uma das conseqüências disto, mas é uma das mais fatais.

Vai ver que não dão muita atenção a Gore por causa da boa aparência dele. Parece um executivo de megacorporação. Se ele usasse um camisão branco, um bastão nodoso, e deixasse a barba crescer, talvez evocasse um arquétipo mais poderoso e conseguisse salvar as vidas dos nossos netos.