domingo, 10 de janeiro de 2010

1502) A certeza dos profetas (5.1.2008)



As narrativas mitológicas nos acostumaram à idéia dos profetas desacreditados, como Tirésias ou Cassandra. Eles enxergaram o futuro e sabem o que vai acontecer, mas ninguém lhes dá crédito. Tirésias é expulso do palácio por Édipo, ao lhe revelar a verdade sobre a morte de seu pai, o rei Laio. Cassandra foi amaldiçoada por Apollo, o qual determinou que ela poderia ler o futuro, só que ninguém acreditaria no que ela revelasse. Mas os profetas continuam insistindo, com uma certeza íntima que acaba carreando para o seu lado um pequeno grupo de crentes, para os quais importa menos a plausibilidade da profecia do que a veemência com que é bradada.

“Virá, que eu vi!” O belo verso de Caetano Veloso em “Um Índio” exprime esse paradoxo temporal que está na raiz de toda profecia. Para nós, que ainda não chegamos àquele ponto na Linha do Tempo em que o tal fato vai acontecer, aquilo é futuro, é incerto, é duvidoso. Para o profeta, que teve o vislumbre, é algo que já aconteceu, algo líquido e certo. Aquela revelação virá, porque eu vi que ela já veio.

Uma vez eu estava numa mesa de bar com uma rapaziada paraibana, e a conversa acabou chegando em Zé Ramalho. Uns elogiaram, outros criticaram, dizendo que não entendiam as letras. E aí um dos que o defendiam falou: “Rapaz, eu também não entendo não, mas o cara canta aquilo com uma convicção tão grande que deve significar alguma coisa!” E de fato, cantores como Zé Ramalho e Bob Dylan são sempre associados a esse complicado adjetivo – “profético” – em parte pelo teor messiânico de algumas de suas canções, mas principalmente pelo tom de voz que empregam. No caso de artistas assim, a questão de “ter uma voz bonita” passou lá na esquina da frente e nem se virou. Não é disso que se trata. Zé Ramalho e Dylan têm vozes que para os puristas são desagradáveis, ásperas, ininteligíveis (no caso de Dylan, pelo menos), nada que se pareça a uma voz de “crooner” de “big band”. Nenhum dos dois seria convidado para fazer um show no Cassino da Urca ou em Las Vegas. Mas essas vozes têm algo da certeza inabalável e alucinatória dos profetas, a certeza de quem viu algo e pouco lhe importa se os outros conseguem ver o mesmo ou não.

Dylan, curiosamente, surgiu no seio da música folk norte-americana (esquerdista, contestadora) na época de sua maior mobilização política. Quando percebeu, depois de três discos, que estava virando profeta da esquerda, ele deu uma guinada rumo ao rock-and-roll com seus discos de 1965-66. As letras passaram a tratar de temas psicodélicos, surrealistas, E ironicamente ele acabou virando profeta de novo – o guru da geração rock. Para livar-se disso foi preciso uma retirada forçada – oito anos sem fazer turnê, e gravando apenas discos de música country. O fato de ter sido profeta de duas gerações simultâneas e antagônicas mostra o poder de convicção íntima com que compunha e cantava entre os 20 e os 25 anos, e neste aspecto ninguém o igualou.

1501) Onde começar a história (4.1.2008)


(Leon Tolstoi)

Um aspirante a escritor perguntou a um autor famoso como deveria escrever um romance, e ouviu como resposta: “Comece pelo princípio, e quando chegar ao fim, pare”. Típica resposta de quem está num coquetel, querendo conversar amenidades, e sem disposição para teorizar questões técnicas. Uma das principais dificuldades em contar histórias (seja na ficção, no jornalismo, onde quer que seja) é o fato de que começo e fim não são pontos claros e indiscutíveis. Qualquer evento pode ser começo de uma história e final de outra. Fazemos uma escolha arbitrária, dependendo de que história queremos contar.

Um texto de James Wood sobre Tolstoi no The New Yorker (em: http://www.newyorker.com/arts/critics/atlarge/2007/11/26/071126crat_atlarge_wood?currentPage=all) revela um detalhe curioso da concepção de Guerra e Paz. Diz ele: “Tolstoi queria, a princípio, escrever sobre 1856, narrando o retorno de um nobre com idéias revolucionárias, após seu exílio na Sibéria. Mas para escrever bem sobre 1856, no entanto, ele achou que precisaria retroceder até 1825, quando os rebeldes aristocratas chamados “dezembristas” foram executados ou exilados. Mas 1825 não poderia ser evocado, conforme Tolstoi explicou numa anotação, sem se falar no ano histórico de 1812, quando Napoleão invadiu a Rússia e ocupou Moscou por quatro semanas. Mas 1812 também precisaria de uma preparação, e é por isso que o romance se inicia em 1805”.

Este processo lembra o paradoxo de Zenão de Eléia, que diverte muito os estudiosos de filosofia. Diz ele que para ir do ponto A ao ponto B precisamos passar primeiro por um ponto C, que fica na metade da distância entre os dois. Muito bem. Mas para passar pelo ponto C é preciso passar pelo ponto D, que fica no meio do caminho entre A e C. Só que para chegar nesse ponto D precisamos passar primeiro pelo ponto E, que fica a meio caminho entre A e D. E assim por diante. Nunca podemos chegar no ponto que desejamos, porque antes dele temos que atingir outro, e outro, e outro.

Do ponto de vista filosófico, é uma falácia. Para atingir infinitos ponto, não precisamos de infinitos movimentos, mas de um movimento contínuo que cubra esses pontos num mesmo impulso. Qualquer pessoa que já foi até a geladeira pegar uma cerveja corta esse nó górdio. No caso da literatura, contudo, entram outros fatores. Imagino que Tolstoi queria criar um romance histórico gigantesco (como de fato criou) contando a história da Rússia, assim como Érico Veríssimo quis contar a história do Rio Grande do Sul em O Tempo e o Vento e Ariano Suassuna a da Paraíba no Romance da Pedra do Reino. O problema com o romance histórico é que a História não tem começo nem fim. Antes de cada fato histórico ocorreu outro que o influenciou. Definir onde se começa a narrativa é uma decisão literária que mais cedo ou mais tarde o autor tem que tomar, se pretende começar o livro pra valer.

1500) O bem sucedido (3.1.2008)


Era um ator maduro, bem-sucedido, cheio de prêmios e de admiradores. Dando entrevista num programa de TV, começou a rememorar seu início de carreira. “Nunca pensei que entraria para o teatro”, disse ele. “Mas quando eu tinha uns dezoito anos namorei com uma garota que era atriz de um grupo estudantil. Por causa dela, passei a frequentar os ensaios, e depois que a peça estreou eu ia todas as noites. Daí a pouco já era amigo de todo o grupo, inclusive o diretor. Um dia adoeceu um ator que fazia um papel pequeno, com duas ou três falas, e como eu tinha um tipo físico parecido, me pediram para substituí-lo por aquela noite. No outro dia o ator, que se chamava Oséas Martins, também não veio, e eu voltei a substituí-lo. E acabei fazendo o papel até o fim da temporada”.

Daí em diante ele foi pegando gosto pelo trabalho, e participou de outras peças. Entrou para um grupo profissional. Fez cursos, oficinas. Estudou teatro por conta própria, comprando livros e mais livros. Ganhou prêmios, Viajou pelo país. Participou de filmes, que o levaram, em imagem e em carne e osso, para outros continentes. Ficou famoso, rico, comprou uma mansão, casou e descasou várias vezes, teve meia-dúzia de filhos.

E ele encerrou o depoimento dizendo: “Mas olhe, ainda hoje, aos setenta anos de idade, eu tenho um receio. Sabe qual é? É que uma noite eu esteja na minha mansão no Morumbi, descansando, ou estudando o meu próximo papel, e a campainha toque. Um dos criados virá até meu escritório trazendo um rapazinho de dezoito anos, muito parecido comigo quando eu tinha essa idade. E esse rapaz me dirá: Eu sou Oséas Martins, e vim buscar tudo que é meu”.

Sartre, em As Palavras, tem um trecho muito divertido em que ele diz sentir-se, no Mundo, como um passageiro que está viajando de trem sem ter comprado bilhete, e temendo que a qualquer instante o condutor apareça para cobrá-lo. Todos nós temos, principalmente quando somos bem-sucedidos, essa sensação mista de culpa e de não-merecimento. No caso do ator, ele reconhece que todas as chances que teve e que aproveitou com mérito próprio resultaram de uma casualidade, do fato de um ator obscuro ter adoecido e abandonado uma peça. Claro que o que ele conseguiu na vida não era exatamente o que Oséas Martins conseguiria se tivesse prosseguido com o grupo. As situações, as opções, seriam todas diferentes. Mas ele reconhece, na sua angústia, que num momento decisivo entrou o fator sorte para colocá-lo no caminho certo, e isso enfraquece suas certezas.

Sartre livrou-se do condutor negando a religião. Afirmou que o trem, ou seja, o universo, não tem maquinista, não tem condutor, nada. O trem surgiu por acaso, não há nenhuma empresa emitindo bilhetes, e quem viaja ali não precisa ter cumprido nenhuma formalidade prévia. A existência precede a essência: a gente surge dentro do trem, e só depois é que as negociações começam, porque não existe estação nem bilheteria.