sábado, 2 de janeiro de 2010

1467) Conjunto de iê-iê-iê (25.11.2007)




Dias atrás um entrevistador me perguntou se eu já tinha tocado numa banda de rock. Expliquei que sim (“Os Sebomatos”, 1968-69) mas que na época não era “banda de rock” que se dizia, e sim “conjunto de iê-iê-iê”. A troca de um rótulo por outro reflete uma enorme mudança no mercado de música popular.

Por que dizíamos “conjunto”? Esta palavra não vem do inglês, não vem do mundo roqueiro. Vem da música erudita e popular tradicional onde o termo internacional é “ensemble”, palavra de origem francesa (oriunda do latim “insimul”, “ao mesmo tempo”) mas que se internacionalizou para designar grupos de músicos e de atores teatrais. (Neste último caso, o primeiro exemplo que me ocorre é o grupo de Bertolt Brecht, o “Berliner Ensemble”). 

Os “ensembles” musicais podem ser eruditos, como os quartetos de cordas, etc., e podem ser populares. É qualquer arregimentação de músicos instrumentistas que ensaiam e tocam juntos.

Dizíamos “de iê-iê-iê” (ou "ié-ié-ié") porque era assim que o rock passou alguns anos sendo chamado. Na época não tínhamos idéia de que o termo “rock” viria para ficar, porque surgiu o “rock”, depois surgiu o “twist” (lembram-se de Chubby Checker?), e surgiu o “iê-iê-iê” que era associado à imagem dos Beatles e ao irresistível refrão de “She Loves You”, tanto que o filme A Hard Day’s Night recebeu o título local de Os Reis do Ié-Ié-Ié

Era algo tão diferente do rock de Elvis Presley e Bill Halley que para mim, pelo menos, um novo nome se fazia necessário. “Conjuntos de iê-iê-iê” passaram a ser todos os grupos do gênero, dos Beatles aos Brazilian Bitles, dos Hollies aos Peraltas, dos Herman’s Hermits aos Falcões, dos Tremeloes aos The Millus.

Seria interessante pesquisar quando a palavra “band” se consagrou (nos países de língua inglesa) para designar os grupos de rock e se superpôs ao próprio termo “group”. Porque “banda” designa originalmente aquele grupos de instrumentistas, formado em sua maioria por metais, que andam pela rua executando dobrados e marchinhas militares. São as nossas populares “bandas de música”, como a inigualável “Sá Zefinha”. 

Foi em busca dessa referência nostálgica, ligada a nossa infância, que Chico Buarque compôs “A Banda”, e que os Beatles arquitetaram seu álbum conceitual Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, onde estavam vestidos a caráter e empunhando clarinetes, bombardinos, sei lá o quê. “Banda”, naquele tempo, era isso.

Antes do Sgt. Pepper’s o termo já era usado, claro, e havia pelo menos a Incredible String Band dos escoceses Heron & Williamson (quando alguém vai redescobrir estes gênios do folk psicodélico?) até surgir The Band, que acompanhou a fase elétrica de Bob Dylan e tornou-se, até por este nome (“modesto e orgulhosíssimo”) a Banda arquetípica. 

O uso do termo “banda” no português atual reflete hoje o fato de que todo mundo sabe o que é uma banda de rock, e só os coroas como eu, Chico Buarque e mais meia-dúzia, ainda lembram o que é uma banda de música.






1466) “A Montanha Sagrada” (24.11.2007)


Está em exibição no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio (vai depois para São Paulo e Brasília) o “Festival Alejandro Jodorowski”, em homenagem ao escritor e cineasta chileno, radicado na França. Jodorowski já foi chamado de “a Contracultura de um homem só”, pela sua atividade múltipla. O pessoal que me chama de “multimídia” devia prestar atenção nesse rapaz, que dirige filmes, escreve livros e roteiros de quadrinhos, bota cartas de Tarô, faz sessões de Psico-Magia, dirige e atua no teatro, compõe as próprias trilhas sonoras, e ainda encontra um jeito de ser especialista em misticismo oriental, ocultismo, sexo tântrico, etc. Foi parceiro de Fernando Arrabal, Jean Cocteau, Moebius e muitos outros, e amigo de roqueiros como John Lennon e Marilyn Manson.

Na abertura do Festival foi exibido A Montanha Sagrada, filme produzido por Allen Klein, ex-empresário dos Beatles, com dinheiro fornecido por John Lennon e Yoko Ono. O filme foi filmado em 1973 no México, e é ambientado num desses universos latino-americanos surrealistas que tantas vezes encontramos nos filmes de Glauber Rocha ou nos livros de Garcia Márquez, Lezama Lima ou Carpentier. É uma sucessão de imagens chocantes, absurdas, poéticas, violentas ou grotescas, enquanto a câmara acompanha a peregrinação de um homem nu, que lembra vagamente Jesus Cristo, ao longo de uma metrópole repleta de cadáveres, massacres políticos e turistas endinheirados que filmam a própria esposa sendo currada pelo Exército local. Há uma cena espantosa, o “Grande Teatro de Sapos e Camaleões”, em que estes animais encenam (vestidos a caráter), numa maquete, a destruição do império asteca pelos europeus.

O filme de Jodorowsky lembra muitos as obras do chamado “cinema udigrudi” que se praticava no Brasil naquela mesma época, os filmes anárquicos e desconexos de Rogério Sganzerla, Julio Bressane, Neville d’Almeida e muitos outros, além dos delírios alegóricos com que vários cineastas do Cinema Novo (Glauber, Nelson Pereira, Jabor, Cacá Diegues, etc.) procuravam desconcertar os censores, notoriamente incultos e pouco inteligentes. Há constantes referências ao LSD, ao misticismo oriental, ao rock, o que leva Jodorowsky mais para o lado udigrudi; mas seu filme é caro inclusive para os padrões do Cinema Novo da época. Dizem ter custado 750 mil dólares, o que era bastante dinheiro na época. O pessoal que fazia “udigrudi” no Brasil trabalhava com um décimo disto, ou um centésimo (como no recentemente comentado Hitler 3o. Mundo, 29 de setembro).

Não é de admirar, pela incessante inventividade visual e de roteiro (ainda que numa estética datada) que Jodorowsky tenha conseguido 2 milhões em financiamentos para filmar Duna, o clássico da FC. Também não é de admirar que o projeto tenha sido tirado de suas mãos depois que o dinheiro evaporou. Seu cinema é uma mistura de cinema de arte, cinema “exploitation” e filme B, uma mistura única e que ainda nos ensina muita coisa.

1465) Brasil 2x1 Uruguai (23.11.2007)


Ainda estou com os dedos trêmulos pela adrenalina desse jogo, encerrado há mais de uma hora. Diante do Morumbi lotado, o país inteiro esperava aquilo que os ufanistas tipo Galvão Bueno chamam arrogantemente de “uma exibição de gala” da Seleção. Bastou a bola rolar para percebermos que, mais uma vez, a Seleção também esperava a mesmíssima coisa. Estava pronta para dar uma exibição de gala: fintas elegantes, passes de calcanhar, passes de trivela, lençóis, dribles-da-vaca, confortáveis matadas no peito com os zagueiros respeitosamente à distância... E (mais uma vez) nada disso pôde acontecer, porque o adversário (esse eterno desmancha-prazeres das nossas exibições de gala!) não concordou.

O Brasil tem um grande futebol, mas só terá o Maior Futebol do Mundo no dia em que eliminarem do esporte esta permanente fonte de irritação: o Adversário. O adversário que nem quer saber para que lado Ronaldinho Gaúcho olha: ele fecha em cima, toma a bola, e acelera pro contra-ataque. O adversário que não espera a pedalada de Robinho: dá um bico pra lateral. O adversário que não deixa Kaká dar as suas arrancadas: vai em cima na base do encontrão, manda Kaká pro alto e a bola lá pra frente.

Os uruguaios pareciam estar jogando dopados, tamanho o ímpeto com que disputaram cada palmo de terra durante os 90 minutos. Quem sabe o “doping” deles se chame “estádio repleto de brasileiros gritando”. Rudes, broncos, truculentos como sempre são; mas infatigáveis, velozes, e acima de tudo possuídos por uma enorme vontade de ganhar o jogo, enquanto que o Brasil parecia apenas com vontade de dar uma “exibição de gala”. Encurralaram a Seleção, ganharam todas as divididas, partiram céleres para o ataque a cada roubada de bola, e só não ganharam (o que teria sido um resultado justo) porque perderam gols feitos, Julio César espalmou tudo, Luís Fabiano encaçapou com firmeza duas bolas difíceis – e porque a Seleção Brasileira tem um time muito superior. Mesmo deixando as chuteiras no vestiário e pisando a grama de “escarpins”, mesmo pensando em pedaladas e dribles de letra, nosso time é muito melhor que o do Uruguai, e bem ou mal acabou ganhando.

Ah, amigos, as obras de arte que nossos jogadores criarão um dia, quando o futebol eliminar esse contratempo – o Adversário! Seremos como aquele time do basquete americano, os Harlem Globetrotters, que viajam pelo mundo exibindo um repertório fabuloso de habilidades. O futebol deixará de ser um esporte, uma disputa, e se transformará em pura Arte, pura estética de balé atlético, coreografias, malabarismos. Ninguém para passar o sarrafo, ninguém para meter o cotovelo ou o ombro, ninguém para disputar encarniçadamente uma bola boba da intermediária como se daquela única jogada dependesse o fim do mundo. Nossos jogadores têm genialidade. Vê-los jogando é como ouvir uma Fuga de Bach. Agora, aqui pra nós – pelo menos no jogo de hoje, o Uruguai teve muito mais rock-and-roll.

1464) Impressão por demanda (22.11.2007)



“Impressão por demanda” (“Print on Demand”, ou POD) é o termo técnico para a edição de livros de acordo com a demanda que possa existir por eles. O autor/editor prepara os originais e se achar que dá para vender 150 exemplares ele manda imprimir 150. Se depois disso ele perceber que tem mais 30 pessoas interessadas, manda imprimir mais 30, e assim por diante. Edições tradicionais de livros tinham que se dar de outra forma: mandava-se imprimir uma edição inicial de 2 mil exemplares e ficava-se torcendo para que vendessem logo. Eu tenho livros publicados há mais de dez anos que venderam apenas metade da edição, o que significa que a editora mantém outros mil exemplares empacotadinhos em algum armazém na Baixada Fluminense, esperando que um arqueólogo marciano os descubra um dia.

O problema com esse modelo tradicional de edição é que as máquinas impressoras são tão grandes e de operação tão complicada que não faz sentido ocupá-las para imprimir 100 livros; seria como usar um rifle para matar uma barata. Já que o livro de Fulano tem que ser editado, é melhor fazer logo 2 mil exemplares e torcer para que existam 2 mil pessoas interessadas no livro de Fulano. Como na maioria dos casos isso não ocorre, as editoras imprimem mais do que podem vender, passam alguns anos pagando aluguel de depósito para guardar esses livros encalhados, e depois vendem o livro “no peso”. Aí, na melhor das hipóteses, eles vão para os sebos ou as feiras-do-livro, para as barraquinhas onde a gente compra um livro por 5 reais e três por 10.

O esquema de “impressão por demanda”, elimina o encalhe, o desperdício, as despesas de armazenagem. O crítico John Clute chama a este sistema “livros que existem se alguém procurar por eles, e não existem se ninguém os procura”. Ele não se refere aos textos literários, claro, mas ao livro como objeto físico. A impressão em computador faz com que não seja absurdamente caro fazer uma tiragem de 30 ou 40 livros por vez. Muitos autores imprimem seus livros nessa quantidade às vésperas de uma palestra, um curso, etc., quando sabem que irão reunir um público que tem interesse em seu trabalho mas talvez não se desse o trabalho de sair procurando seus livros de livraria em livraria.

Essa novidade aparentemente inócua é uma das grandes revoluções da literatura de hoje, fazendo com que o livro se afaste das grandes tiragens industriais que o tornam parente próximo do automóvel e do sabão-em-pó, e o aproximem de práticas mais artesanais como a serigrafia ou a gravura. O problema com a indústria dos best-sellers é que ela faz morrer à míngua tudo que não seja um best-seller. Quando um mercado se aparelha para vender tiragens de 50 mil, um livro de mil exemplares é um desperdício, uma sub-utilização. A impressão por demanda, caseira, artesanal, traz o livro de volta a um tempo anterior à Ditadura do Sucesso Quantitativo.