quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

2437) "Drummond: Sentimental" (26.12.2010)



Um dos traços mais curiosos de Carlos Drummond, que se revela tanto nos seus poemas quanto nos vislumbres de sua vida pessoal (entrevistas, depoimentos de amigos, etc.) é a sua capacidade de oscilar instantaneamente entre o funcionário público sério e o menino travesso, um garoto malicioso com veia sentimental. Só para ficar em dois poetas que lhe foram próximos, não vemos com facilidade essa oscilação em Vinícius de Moraes, que aparentava ser só o menino, nem em João Cabral, que aparentava ser só o funcionário carrancudo. Drummond, não. Num estalar de dedos, o Padre Antonio Vieira se transformava em Carlitos. E vice-versa.

“Sentimental” é um poema de Alguma Poesia (seu livro de estreia, que está completando 80 anos) e revela esse lado menino e romântico que ele se divertia em entremostrar, muitas vezes inserindo um poema nesse tom entre dois outros mais circunspectos. “Ponho-me a escrever o teu nome / com letras de macarrão...” Não sei se os supermercados de hoje ainda vendem o macarrão de letrinhas que me divertiu muito na infância, compondo palavras enfileiradas na toalha da mesa, ou, com maior dificuldade, usando a colher para fazer as letras boiarem em fila, já empapadas e amolecidas, no caldo escuro da sopa de feijão. Descobrir na adolescência que O Maior Poeta Brasileiro também fazia isso me trouxe uma bem-vinda sensação de cumplicidade.

É um poema semiótico sobre as dificuldades do amor transformado em linguagem (“Desgraçadamente falta uma letra / uma letra somente / para acabar teu nome!”, “E há em todas as consciências um cartaz amarelo: / ‘Neste país é proibido sonhar’”) e ele reverbera de maneira curiosa num poema posterior de Drummond, incluído em seu livro seguinte (Brejo das Almas). É o poema “As namoradas mineiras”, que mostra um namorado menos romântico, menos sonhador, mais tecnológico e moderno. Esse namorado profissional não enfrenta mais as limitações das letrinhas de macarrão. Ele tem uma namorada em cada um dos 215 municípios mineiros: “Enquanto na Capital um homem indiferente, / frio, desdobrando mapas sobre a mesa, / põe o amor escrevendo no mimeógrafo / a mesma carta para todas as namoradas”. É o contraste entre o artesanato (as letrinhas de macarrão, encontradas e enfileiradas de uma em uma, como nas tipografias manuais do cordel) e o mimeógrafo serializador, a carta-de-amor na era da reprodutibilidade técnica.

No primeiro poema Drummond registra o sonho adolescente do menino que se distrai, brincando de estar apaixonado, durante a ceia. No segundo, imagina a burocratização do amor na vida adulta, o amor do funcionário público, o amor do casamento careta e profissional. O uso da palavra escrita é a ponte entre essas duas fases da vida e duas faces do amor. As letrinhas de macarrão e o mimeógrafo são a face ingênua e a face implacável do Modernismo, um mundo novo que começa com uma aparente liberdade e acaba com massificação

3 comentários:

Anônimo disse...

Que boa lembrança! Macarrao de letras, biscoito sortido e jujuba, comprados em ocasioes especiais por minha mae no Bombreço da Floriano Peixoto, o unico supermercado da epoca em Campina. Eram mais umas duas horas ateh Cachoeira de Cebolas.

Kadu Mauad disse...

Exite sim, Braulio. O Macarrão de letras, aliás, é uma das muitas ferramentas de alfabetização. Outro dia o comprei para um amiguinho de 2 anos e meio, que na época tinha menos de dois anos.

Abraço! e tenha um 2011 cheio de textos!

Anônimo disse...

Dez, quase onze, anos depois, li isso e suspirei. Obrigada