terça-feira, 2 de novembro de 2010

2390) O Ulisses argentino (2.11.2010)



Na sua enumeração dos equivalentes ao Ulisses de Joyce em diferentes países, Joshua Cohen elegeu como representante argentino Adán Buenosayres de Leopoldo Marechal (1948). Ao que eu saiba, este livro nunca foi traduzido no Brasil. 

Cohen justifica assim sua escolha: 

“O romance de Marechal, cujo título de grafia peculiar só pode ser mesmo traduzido como ‘Adão Buenosaires’, acompanha uma irmandade de aventureiros baseada nos amigos do autor, entre eles Jorge Luís Borges. Em sete seções, focalizadas sobre a formação estética de Adán, um pretendente a poeta, a homenagem cede lugar a uma reescritura de Dante, enquanto o espanhol falado na Argentina serve de brinquedo, é pervertido, é reinventado”. 

Ora, o meio literário argentino é tão cheio de fofocas e de intrigas quanto qualquer outro. No diário que manteve durante décadas de convivência com Borges, Adolfo Bioy Casares conta que ele e o autor do “Aleph” se referem de maneira depreciativa a Marechal, chamado por Bioy, citando uma expressão de Samuel Johnson, de “a barren rascal” (“um canalha estéril”). 

O menosprezo de ambos por Marechal deve-se sem dúvida ao fato de este último ter sido peronista, algo que Borges não perdoava a ninguém. Sobre o livro, Borges lembra: 

“O nome de Adán Buenosayres, quando estava ainda no manuscrito, ou quem sabe quando era apenas o projeto de outro romance, era ‘Fulano (que tem o mesmo número de sílabas que Leopoldo) Varangot’. Ele o abandonou porque todos faziam gozação com ele chamando-o de Leopoldo Varangot”. 

Ninguém comenta os clássicos com mais inteligência do que Borges, mas seu julgamento dos contemporâneos é frequentemente desdenhoso, ranheta. 

Julio Cortázar foi um avaliador mais generoso do livro de Marechal, que comentou em 1949 num longo artigo em que lhe aponta qualidades e defeitos; ainda assim acabou sendo acusado de “aderir ao peronismo”. Assim ele descreve a obra de Marechal: 

“São sete livros, dos quais os cinco primeiros constituem o romance e os dois restantes amplificação, apêndice, notas e glossário. No prólogo se diz exatamente o contrário, ou seja, que os primeiros livros valem antes de tudo como introdução aos dois últimos, ‘O Caderno de Capa Azul’ e ‘Viagem à Obscura Cidade de Cacodelfia’. (...) Os livros VI e VII podem ser desprendidos de Adán Buenosayres com sensível benefício para a arquitetura da obra”. 

 Talvez se possa ver aí uma influência futura sobre O Jogo da Amarelinha, em que tais capítulos de comentários vêm apostos ao romance como “Capítulos Prescindíveis”. 

Cortázar elogia o uso de variadas vozes pelo autor e conclui: 

“Estamos criando um idioma, por mais que incomode aos necrófagos e aos professores normais de letras que creem em seus títulos. É um idioma turvo e quente, torpe e sutil, porém cada vez mais próprio à nossa necessidade de expressão.” 

Ignorado em sua época, o romance de Marechal parece emergir aos poucos, com o passar do tempo.






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