quarta-feira, 1 de setembro de 2010

2334) “Cortina Rasgada” (31.8.2010)



Alfred Hitchcock foi um dos diretores mais planejadores e meticulosos entre os grandes do cinema, porque há milhares de outros, igualmente planejadores e meticulosos, cuja obra passou em branco, porque de qualidades só tinham essas. Sua obra é valiosa para estudar a distância entre roteiro e filme, e ele próprio afirmou mil vezes que depois que escrevia o roteiro e mandava desenhar o “storyboard” o resto era mera execução. Em seus filmes tardios, como Cortina Rasgada, começa a ficar maior a distância entre planejamento e execução, entre idéia e resultado. As idéias continuam ótimas; a execução às vezes fica meio tosca, talvez pela idade avançada do diretor, ou problemas de produção que ele não tinha mais energia ou disposição para solucionar satisfatoriamente. A cena está meio capenga, mas é o tipo da cena que no roteiro está perfeita, como idéia e como intenção.

Todo filme de Hitchcock tem 7 ou 8 cenas cuidadosamente planejadas e dirigidas, as tais cenas que causam impacto e ficam na mente do espectador. O resto é matéria intermediária, cenas de diálogos, deslocamentos, explicações, a encheção de lingüiça dramatúrgica que conduz o público entre a grande cena anterior e a próxima. Hitchcock não é aquele tipo de diretor para quem toda cena é essencial. Seus filmes têm a silhueta de uma cordileira: picos elevados entremeados de vales rasteiríssimos. Quase todos são assim.

Revi hoje Cortina rasgada (1966), um filme problemático na época, porque abordou tema político do tempo da Guerra Fria (cientista dos EUA finge se passar para o lado comunista para roubar segredos de cientista da Alemanha Oriental). As “grandes cenas” que eu lembrava (e que todo crítico certamente lembra) são a da perseguição no Museu deserto, com os sapatos de Armstrong (Paul Newman) e do policial ecoando no piso; o longo e acidentado assassinato do policial na fazenda (Hitchcock: “Eu queria mostrar como dá trabalho matar uma pessoa”); a reconciliação entre Armstrong e Sarah (Julie Andrews), vista à distância, numa colina, sem diálogo; Armstrong induzindo o alemão a escrever no quadro-negro a equação que lhe faltava; a fuga no ônibus falso; o casal fugindo da polícia no teatro, com um falso alarme de fogo; a fuga final dos dois, em cestos de roupa. São praticamente estas as cenas hitchcockianas do filme. As demais, até Jean Negulesco dirigiria.

Hitchcock queixou-se de pouca sintonia com o casal de protagonistas, e isso passa em todas as cenas românticas: a da colina é um bom exemplo de boa idéia (mostrar as emoções à distância, sem que se ouça o que o casal está dizendo) estragada por direção sofrível. A cena do quadro-negro é uma ótima variante do McGuffin hitchcockiano. Toda a história do filme repousa nessa fórmula matemática que Armstrong precisa trazer para seu país. Para o espectador, aquilo é grego. Mas ele tem que acreditar no valor dela, pela força dramatúrgica investida naquele conjunto de símbolos indecifráveis.

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