domingo, 1 de agosto de 2010

2309) Notas de um mendigo taciturno (1.8.2010)




“Nasci em berço dourado, de sangue antigo e sobrenome nobre. Desde pequeno meus preceptores me transmitiram o senso das grandes responsabilidades que pesavam sobre mim, e dos vastos horizontes à minha espera. Estudei, preparei-me, viajei pelo mundo para adquirir experiências e forjar amizades. Meus múltiplos talentos e minha personalidade forte impressionavam todos que entravam em contato comigo, e previa-se um grande futuro meu à frente do conglomerado de empresas da minha família, do qual eu era herdeiro inevitável.

“O que ninguém sabia era que minha condição de filho único produzira em mim, desde a infância, uma fantasia inofensiva que com o correr dos anos se cristalizou em certeza. Imaginei que em algum lugar do mundo eu tinha um irmão gêmeo, um menino com minha idade, meu nome e meu rosto, cuja vida seguia paralela à minha mas era seu reflexo invertido. Se eu morava numa mansão, ele morava num pardieiro; se eu desfrutava de lautas refeições e envergava trajes refinados, ele vestia andrajos e comia sobejos; se eu desfrutava de estudos e lazeres, ele mourejava noite e dia, ainda menino, em trabalhos embrutecedores. Éramos o oposto simétrico um do outro, e a partir de uma certa idade era-me impossível ter o prazer mais banal sem que me viesse à mente que o outro estaria não só sendo privado daquilo como talvez experimentando uma dor igualmente intensa.

“Uma noite, quando tive febre e acessos de asma, uma idéia estranha me veio à mente: a de que, enquanto eu tentava sorver grandes haustos de ar, meu outro estava em sua esteira incômoda, respirando em paz. E, de tanto imaginar e tentar imitar o modo como ele respirava, pela primeira vez em várias noites pude adormecer. Deliberei então que dali em diante tentaria equilibrar nossa mútua condição. Passei a me privar de prazeres da mesa, do conforto doméstico. Os hábitos espartanos que adotei causaram surpresa, mas foram aprovados pelo meu pai, homem rigoroso e disciplinador. A cada vez que eu madrugava no inverno para um banho frio, imaginava o outro, dormindo aconchegado em seu cobertor.

“O que dizer? Cheguei assim à idade adulta, desfazendo-me de tudo quanto herdara. Minha mãe, depois de viúva, deixou-se morrer de desgosto ao me ver desmontar o império de meu pai (e eu visualizava a mãe do outro, vendo o filho, homem feito, terminar a construção de um casebre para si próprio). Mantive-me celibatário para que ele fosse marido e pai; deixei-me adoecer para que ele tivesse saúde; desci da riqueza para a modéstia, e desta para a penúria, e da penúria para a mendicância. Hoje, velho e tossindo, durmo envolto em jornais para que ele possa desfrutar lençóis de linho e travesseiros de plumas; entrego-me passivamente à doença para que ele possa enfim ter uma velhice feliz. Não me queixo, e na verdade a única inquietação que me assalta às vezes, dormindo nesta calçada, é não saber se ele sabe que existo; e o que pensa de mim.”


(Este conto está incluído no livro Histórias para Lembrar Dormindo, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2011).




10 comentários:

Unknown disse...

Gostei. E, para teu arquivo, chegaste ao Uruguai.

Braulio Tavares disse...

Isto quer dizer que você está me lendo no Uruguai? Rapaz, a Internet é maior do que eu pensava! :-)

heliojesuino disse...

vi um Borges por trás desse espelho ...

Braulio Tavares disse...

Olhe, depois de uma certa idade, cada vez que a gente se olha num espelho está mais parecido com Borges...

Unknown disse...

Quer dizer, sim. Mais do que isso: sou uruguaio. A língua portuguesa é maior do que pensas...
Aliás, acabei de te mandar um correio.
Seguiré leyendo, a falta de libros importados del Brasil, en interné.
Gran abrazo,
Ignacio

Julien Sorel disse...

Tenho 21 anos e ainda não li o citado Borges. Mas de uma coisa eu sei: esse conto está sensacional.
Parabéns!

Braulio Tavares disse...

Julien, eu tinha 21 anos quando li Borges pela primeira vez. Invejo quem não leu ainda, porque me lembro bem da sensação.

Julien Sorel disse...

Decidi. Me iniciarei na obra do argentino. Tenho 'Ficções' comigo, e desse ano não passa; espero que seja um bom começo.

Abraços! e nos presenteie com mais contos.

Unknown disse...

Vai ser, Julien.

Elumen disse...

Te conheci tarde. Desculpe. Culpa da mania de ler coisas antigas. Só não gostei das histórias porque, para mim, estão sem final. Como assim acabar com elas em 2 páginas? Pecado mortal! Lerei mais você. Obrigado.