terça-feira, 27 de julho de 2010

2304) Marlyse Meyer (27.7.2010)



Faleceu dias atrás em São Paulo, aos 85 anos, Marlyse Meyer, grande pesquisadora de literatura e cultura popular. Publicou livros sobre o teatro de Marivaux, as cavalhadas e folguedos do interior do Brasil, os almanaques e lunários, e, principalmente, escreveu talvez as melhores páginas da nossa ensaística sobre o romance de folhetim. Conheci-a muito ligeiramente em pessoa, o bastante para admirar sua elegância, a mesma da sua prosa. São raros os críticos literários capazes de nos contar o desenrolar do seu pensamento crítico como se fosse uma história fascinante que se cria diante dos nossos olhos. Marlyse era assim, através do torneado de suas frases (sempre claras, sempre inteligíveis à primeira leitura), da precisão sutil do seu vocabulário, da finura psicológica das suas conjeturas sobre intenções de um autor e as motivações de um leitor. Sua erudição só nos ocorre a uma segunda leitura.

Folhetim: uma História (Companhia das Letras, 1996) é sua obra de maior peso, e um dos melhores livros de estudos literários que já li, de qualquer país. Digo estudos literários por falta de um termo melhor, porque não se trata de crítica literária no sentido muito específico do termo, da análise dos mecanismos verbais de criação. Marlyse Meyer conta como surgiu o romance folhetim europeu e depois o brasileiro, descreve a cultura da época, compara as mentalidades, faz o censo dos tipos e personagens mais comuns, avalia os estilos, os recursos dramáticos postos em prática pelos autores. Sempre recorrendo a fontes primárias: ela lia de fato todos aqueles livros gigantescos, e mais que isto, comparava as diferentes traduções, diferentes edições, porque lera todas.

Outro livro essencial é um que ela considerava uma espécie de apêndice do Folhetim, reunindo capítulos que foram retirados do primeiro para que ele não ficasse gigantesco. É As mil faces de um herói canalha (UFRJ, 1998), que tem capítulos deliciosos: sobre a relação de Machado de Assis com o famoso folhetim Saint-Clair das Ilhas e outros (Machado tratava o folhetim como os críticos de hoje tratam Paulo Coelho); sobre o “herói canalha” que foi Rocambole, o vilão-tornado-herói de Ponson du Terrail, assunto que ela parecia ter esgotado no livro anterior e ao qual retorna aqui com riqueza de detalhes e de novos ângulos de interpretação; um capítulo saboroso sobre as heroínas “seduzidas e abandonadas” do folhetim clássico, onde ela examina com argúcia e malícia feminina os jogos eróticos e de classe social entre os sedutores e as seduzidas; e assim por diante.

No terreno coberto por Marlyse nestas duas obras podem florescer algumas dúzias de teses de mestrado ou de doutorado sobre essa literatura que foi nos séculos 19 e 20 o que a novela de TV é hoje. Esses pesquisadores futuros fariam muito bem em, de vez em quando, esquecer o assunto e assimilar algo do estilo de Marlyse: uma pessoa que ama os livros lendo e comentando em voz alta as suas descobertas.

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