quinta-feira, 24 de junho de 2010

2189) Dioclécio (14.3.2010)



Dioclécio não era workaholic, mas em três anos passou de auxiliar a chefe de equipe. Para Darci, era Deus no céu e Dioclécio na terra, e casal mais unido era difícil. Ela dizia às outras, “pense num marido bom, fiel, companheiro...”. Sozinha, pensava na história deles e marejava os olhos. A sorte que tinha tido! Resolver fazer aquele curso noturno. Estar no corredor naquela noite. O livro cair no chão, o rapaz de barba loura vir passando, abaixar-se, entregar o livro sorrindo. E ela agradecer, e ele dizer, você me deve um cafezinho. O primeiro café que ela tomou em anos, ele só sorrindo e colocando as perguntas sem pressa, ela dizendo tudo. E agora os dois casados, o apartamento se pagando e quem sabe um filho no ano que vem.

Mas Dioclécio trabalhava tanto! Vou me deitar, dizia ela, rabo de olho vendo que eram onze e quinze. Tou terminando e vou já, dizia ele. Ela deitava, cochilava, olhava o relógio: uma e meia e o computador teleco-teco, teleco-teco. Às vezes ele até vinha, apagava a luz, enfiava-se nas cobertas, cheirava o cabelo dela, e quando iam adormecendo ela o sentia empertigar-se todo, pular da cama. Ia para a sala, ela escutava a musiquinha do computador ligando, e teleco-teco. Voltava. O que foi, bem? Esqueci de mandar o email com o trabalho, dizia ele. Ela passava o braço e a perna por cima dele, duvido sair mais daqui.

Tudo porque era virginiano, ela nunca vira alguém tão perfeccionista, seguríssimo, exigente, refazia as coisas dez vezes e conferia vinte. Um dia num almoço da empresa um dos sócios falou para ela: Cuide desse rapaz, viu, porque sem ele nada acontece aqui. Lá também, disse ela, num rompante de audácia, e se acanhou quando todo mundo riu. Preferia que ele não trabalhasse tanto! Que até gostasse dum futebol, dum pagode! Teleco-teco, teleco-teco.

Um dia, o telefone estridente cortou a vida dela ao meio como uma serra elétrica. Minto; foi o celular que tocou o carrilhãozinho de sempre, ela atendeu e era uma das moças da firma dizendo: Darci, venha urgente aqui no escritório, Dioclécio teve um problema grave. Mas o que foi, meu Deus? ela acertou a perguntar. E a moça, tensa: Ele está muito, muito, muito mal. E desligou. Aquela repetição era um recado, não é mesmo? “Vá se preparando...” Darci era valente, se preparou, trocou a blusa, prendeu o cabelo e foi. Cuidou de tudo, dos papéis, da cremação, da missa de sétimo dia. Voltou para casa. O mundo sem Dioclécio era um filme mudo. Ela botou pra tomar café.

Um dia encontrou na praça um colega dele. Conversaram casualmente, tomaram sorvete. O rapaz falou bem de Dioclécio o tempo todo. A certa altura, como se tirasse um peso, comentou de passagem: Nunca vi fazer as coisas com tanta dificuldade, trabalhos que a gente fazia numa tarde ele levava uma semana. Tinha medo de errar, era inseguro, vivia com um medo eterno de não conseguir... Eu sei, disse ela. Mas só soube então. Foi a última a saber.

Nenhum comentário: