sábado, 12 de junho de 2010

2139) Os dois terremotos do Haiti (15.1.2010)



Quando foi noticiado na terça-feira o terremoto no Haiti muita gente comentou: “Meu Deus! Uma coisa como essa, acontecer logo num país tão pobre!” De fato, o Haiti é o país mais pobre das Américas. Vive num terremoto econômico e social há duzentos anos, mas como é um terremoto em câmara lenta todo mundo se acostumou com ele, inclusive os haitianos. Eles conseguem até dançar e jogar futebol, o que aliás nos consola um pouco, porque, afinal, se estão dançando e batendo bola a situação não está assim tão má, não é mesmo? Foi preciso um segundo terremoto. E não é que os pobres tenham má sorte. Catástrofes parecidas atingiram o Japão, os EUA, o México, a Itália e muitos outros países nas últimas décadas. São como ferimentos profundos feitos em pessoas saudáveis: recebem pronto atendimento médico e bem ou mal se recuperam. No caso do Haiti, é como um tiro de .12 num moribundo.

Mal saiu a notícia do terremoto, apareceu na TV dos EUA um pastor evangélico, Pat Robertson (que em 1988 tentou se candidatar à presidência pelo Partido Republicano) afirmou: “O que o Haiti está sofrendo é consequência de um pacto que fez com o Diabo. O país era colonizado pela França, e fez um acordo com o Diabo para ganhar a independência. O Diabo disse: OK, está combinado. O país ficou independente, mas a influência diabólica continua lá. Basta ver que a República Dominicana, que fica ao lado, na outra metade da ilha, é um país próspero e tranquilo”.

O websaite BoingBoing publicou no mesmo dia um post de Maggie Koerth-Baker em resposta ao reverendo Robertson, explicando em que consistiu este pacto com o Diabo. (A fonte é este artigo no Sunday Times, de maio de 2009, cuja leitura aconselho: http://bit.ly/cYXvN.) Para se tornar independente, o Haiti derrotou militarmente a França em 1804, mas concordou em pagar-lhe uma indenização de 150 milhões de francos-ouro. Essa soma surrealista foi reduzida na década de 1830 para 60 milhões, mas é como dizia Edgar Allan Poe, quando duas coisas são impossíveis, não se pode dizer que uma é mais impossível do que a outra. Por volta de 1900, o Haiti tinha 80% de seu orçamento comprometido com essa dívida. Começou a pedir empréstimos aos juros de sempre e aos credores de sempre (EUA, Alemanha e França). Em 1947 a dívida original foi paga, depois de cerca de um século e meio de sangria contínua, e à custa de novas dívidas. Seguiram-se então as ditaduras sucessivas de Papa Doc e de seu filho Baby Doc, o qual, ao ser deposto, fugiu com algo entre 500 e 900 milhões de dólares. E Koerth-Baker completa: “O reverendo estava certo: o Haiti fez um pacto com o Diabo, e o Diabo somos nós”.

Terremotos fazem parte da ordem natural das coisas do planeta. Infelizmente, o terremoto mais lento que arrasou o Haiti a partir de 1804 faz parte de uma ordem artificial, criada por nós, seus beneficiários, onde “o de cima sobe e o de baixo desce”.

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