quinta-feira, 3 de junho de 2010

2115) O soneto azul (18.12.2009)




(Carlos Pena Filho)

É talvez o soneto mais famoso de um grande poeta que hoje anda quase esquecido. Carlos Pena Filho era um dos poetas mais elogiados por meu pai. Foi um desses muitos poetas brasileiros que morreram jovens (31 anos) mas deixaram pelo menos uma dúzia de poemas que provavelmente serão preservados e ainda serão republicados e discutidos cem anos depois da morte do autor. O que não é nada mau para qualquer texto.

O “Soneto do Desmantelo Azul” é um dos mais bonitos de Carlos Pena, com suas repetições, simetrias, assonâncias, e principalmente com o uso livre e desassombrado de imagens cromáticas. Ele começa assim: 

Então pintei de azul os meus sapatos 
por não poder de azul pintar as ruas 
depois vesti meus gestos insensatos 
e colori as minhas mãos e as tuas. 

A espontaneidade da dicção de Carlos Pena o leva a essa bela inversão nos dois primeiros versos (“pintei de azul”, “de azul pintar”) que dá fluência ao verso e é tão natural que é quase imperceptível. 

A imagem dos sapatos e das mãos pintadas de azul é quase surrealista; lembra o grupo norte-americano Blue Man (que agora aparece na TV num comercial da Tim), lembra certos quadros de Magritte e De Chirico.

O segundo quarteto diz: 

Para extinguir em nós o azul ausente 
e aprisionar no azul as coisas gratas, 
enfim, nós derramamos simplesmente 
azul sobre os vestidos e as gravatas. 

Como não tenho o livro, recorri à Internet, e vejo que o segundo verso aparece em saites diferentes com duas redações, a que está acima e esta: “e aprisionar o azul nas coisas gratas”. Ambas as leituras são possíveis e poeticamente legítimas, desde que a gente considere que o azul se aprisiona nas coisas, ou elas que se aprisionam nele. 

No primeiro verso também aparecem, em diferentes fontes de consulta, “extinguir de nós” e “extinguir em nós”, variantes que não esvaziam a imagem proposta: pintar de azul é extinguir a ausência do azul. (Sem falar na bela assonância, azul / ausente).

Note-se que as rimas deste quarteto diferem das do primeiro. E se considerarmos os dois tercetos em conjunto, veremos que eles não passam, em termos de rimas, de um quarteto e um dístico rearranjados: 

E afogados em nós, nem nos lembramos 
que no excesso que havia em nosso espaço 
pudesse haver de azul também cansaço. 

E perdidos no azul nos contemplamos 
e vimos que entre nós nascia um sul 
vertiginosamente azul. Azul. 

Trata-se, portanto de um soneto inglês em estrutura (4-4-4-2), disfarçado graficamente de soneto italiano (4-4-3-3). Disfarce muito frequente na poesia brasileira, onde o modelo italiano predominava.

A aparente falta de lógica, e a intensidade visual, fazem o encanto deste soneto, que não é perfeito, mas surpreende a cada passo (como no formato de sua última linha: uma palavra longuíssima seguida pela repetição de uma palavra curta). É um soneto que transborda alegria de viver, audácia e romantismo juvenil. E que me lembra (não sei por quê) a camisa amarela de Maiakóvski.


Um comentário:

Josie disse...

Querido Braulio, recebi como presente de aniversário esta cópia do "Soneto do desmantelo azul" que posto aqui, e que me foi enviada por uma amiga da Paraíba, parente do poeta:

"Para Josie Mello... mulherpoetazul

Então pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul... Azul.

("Soneto do Desmantelo Azul" do Livro Geral, poemas, de Carlos Pena Filho)