sábado, 29 de maio de 2010

2086) Machado e Nelson (14.11.2009)



Difícil encontrar dois indivíduos tão diferentes e tão parecidos. Ambos eram grandes fazedores de frases, cada um ao seu modo. Alguém já disse que uma frase é algo parecido com uma espada. Se assim for, a frase de Machado era um florete, a de Nelson uma katana de samurai. Viveram do jornalismo em épocas de jornalismos muito diferentes, mas todos dois herdaram do jornalismo a fluência, a aparente facilidade de escrever, o diálogo direto com o leitor, sem falar nos truques narrativos do folhetim.

Ambos eram fascinados pelo adultério, aquela vozinha incansável que lhes sussurra coisas de dentro do travesseiro quando estão tentando dormir. Para a maioria das pessoas o adultério é um perigo terrível mas remoto, como a possibilidade da queda do avião em que estamos ou de incêndio do prédio em que residimos. Para esses indivíduos especiais, no entanto, o adultério é fonte perpétua de deleite e tortura. A idéia do adultério próprio é um Paraíso sem Deus, onde o todo-poderoso é ele, com Eva ao seu dispor, e fazendo o papel de serpente e de folha de parreira. O adultério da companheira é um Inferno de Dante, com todos os Nove Círculos só para si.

Machado era pudico e Nelson era devasso, e cada um fez ao seu modo a crônica do pudor e da devassidão que os cercavam. Alguns leitores acostumados a emoções fortes criticam o pedestrianismo dos enredos de Machado, onde só acontecem coisas banais, domésticas, e os meros crimes de morte podem ser contados nos dedos. Por comparação, os enredos de Nelson são um prolongamento da página policial dos matutinos. Fervilham de tragédias e escândalos que fariam o Bruxo tremer, assustado com tal desvendamento de segredos que ele levava noites inteiras para encaixar nas entrelinhas.

Curiosamente, Nelson (que não praticou a poesia, ao que eu saiba) escrevia tão bem para o teatro quanto no romance, no conto, na crônica. Sua matéria-prima eram situações humanas, expostas através de ações e diálogos. Já Machado foi perfeito no conto e no romance, mas nunca consegui acreditar no seu teatro, e acho sua poesia meio fraquinha (eita, agora lá vêm 200 emails me excomungando!). Alguns sonetos aceitáveis; nenhum que seja classe A (sim, nem mesmo o da Carolina, o do Natal, o do vagalume).

Não sei se Nelson admirava ou desdenhava (e em que termos) a obra de Machado, cujo nome não é mencionado no índice remissivo de O Anjo Pornográfico de Ruy Castro. Talvez tivesse pelo autor de Dom Casmurro aquela admiração tácita de quem escreve bem por quem escreve bem, independentemente de afinidades; e uma dose encorpada de menosprezo por um sujeito que talvez lhe parecesse um fraco, um tímido, um “cauteloso pouco-a-pouco” na expressão de Mário de Andrade. Se compararmos as trajetórias de vida dos dois, a de Machado é um gráfico horizontal que só de longe em longe é perturbado por um estremeção. A de Nelson daria algo parecido com um resumo sismográfico do Japão nos últimos cem anos.

Nenhum comentário: