quinta-feira, 13 de maio de 2010

2039) Compor sem pensar (20.9.2009)



Conversando com alguns amigos músicos, um deles contou ter participado de uma gravação com músicos de jazz fora do Brasil, e disse: “Achei muito estranho. Quando se marcou a gravação de uma música para dois dias depois, o cara pediu a partitura para estudar o improviso que iria fazer. Disse que passou os dois dias estudando, e aí na hora da gravação fez um solo genial. Mas aí eu pergunto, que diabo de improviso é esse que o cara leva a harmonia pra casa e fica planejando o que vai fazer?!”

Esse episódio põe o dedo num chakra dolorido da criação musical e poética, é aquele ponto em que um sujeito se apresenta como repentista e, na hora em que chega ao microfone, desfia cinco minutos de sextilhas ou martelos impecáveis até a derradeira vírgula, escritos, vê-se logo, ao longo de madrugadas insones e sob o acompanhamento de café e cigarros. Que diabo de improviso é esse?

Improvisar é compor sem pensar. Compor versos ou melodias, não importa, mas fazer – “no arranco do grito”, como registrou Maria Ignez Ayala – uma pequena obra de arte, um pedacinhozinho de perfeição. Claro que nem todo improviso resulta nisso, e é justamente por essa dificuldade que o bom repente é precioso. Durante uma cantoria de viola ou uma exibição de jazz a gente fica receoso até de chamar o garçom para pedir uma cerveja. Vai que logo naquele momento o cara consegue fazer algo genial! Não, melhor ficar com sede e esperar o intervalo.

Já vi músicos fazendo um meio termo entre o improviso total e a composição meditada. O cara chega ao estúdio para a gravação, tira o instrumento da caixa, afina, pede para ouvir a faixa onde vai tocar. Senta, coloca os fones, ouve a música inteira de olhos fechados. Pega o instrumento, pede para ouvir de novo, desta vez já seguindo os acordes, fixando a sequência harmônica: vem pra cá, depois vai para ali, dá uma passada rápida aqui, depois para esse outro... Manda desligar, experimenta algumas notas, algumas passagens, aí fala pro técnico de gravação: “Vamos fazer uma para testar”. Volta a escutar a música, e quando chega no momento do “improviso”, produz uma linha melódica impecável, perfeitamente casada com a sucessão de acordes, parecendo ter sido composta em paralelo pelo autor da música original. Às vezes não é tão simples assim, precisa de 3 ou 4 “takes” para sair redondo. A questão é: isto é um improviso? Para mim, sim. O processo todo (ouvir uma música desconhecida, produzir “do nada” uma melodia alternativa para ela) durou meia hora. Talvez um Grande Mestre torça o nariz. Eu tiro o chapéu.

Não há uma linha nítida separando as duas coisas. (Aliás, no mundo não há linhas nítidas, Deus fez o mundo usando spray e airbrush.) Mas o grande improviso só nasce em cima de um Everest de experiência, pois é este que comprime em poucos segundos os dias de estudo e planejamento necessários para produzir o verso mais-que-perfeito, o solo que eleva ao quadrado a canção de onde nasceu.





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