sábado, 8 de maio de 2010

2015) O soneto de Euclides (23.8.2009)



O caderno “Prosa & Verso” do Globo, dias atrás, publicou um soneto de Euclides da Cunha que eu lembrei de ter lido em algum compêndio escolar, mas tinha esquecido por completo. 

O original está manuscrito por cima de uma foto de Euclides, entre amigos, numa comissão de exploração do Alto Purus, na Amazônia, em 1905. E merece um pequeno exame. Diz o soneto: 

Se acaso uma alma se fotografasse 
de sorte que, nos mesmos negativos, 
a mesma luz pusesse em traços vivos 
o nosso coração e a nossa face; 

e os nossos ideais, e os mais cativos 
de nossos sonhos... Se a emoção que nasce 
em nós, também nas chapas se gravasse 
mesmo em ligeiros traços fugitivos; 

amigo! Tu terias com certeza 
a mais completa e insólita surpresa 
notando – deste grupo bem no meio - 

que o mais belo, o mais forte, o mais ardente 
destes sujeitos é precisamente 
o mais triste, o mais pálido, o mais feio. 

É um clichê, é a fantasia romântica sobre a possibilidade de enxergar a verdadeira alma de alguém; mas a idéia de que a luz gravasse sobre os “negativos” essa alma ressalta a curiosa contemporaneidade entre a fotografia e o espiritismo. 

O primeiro daguerreótipo é de 1839. A primeira manifestação mediúnica das irmãs Fox foi em 1848. Na década de 1890, a Society for Psychical Research produziu na Inglaterra uma imenso arquivo de fotos de materializações de ectoplasma, visualização de espíritos, etc. Sessões de médiuns famosas como Eusapia Palladino (1854-1918) e Eva Carrière (1886-?) foram extensamente fotografadas. 

A idéia de fotografar a alma (do médium, ou alheia) não era um devaneio de Euclides, era uma pesquisa que dezenas de cientistas sérios levavam a cabo nessa época. 

O sentido moral do soneto, o que me parece ser o objetivo do poeta, é a idéia convencional de que essência e aparência são contraditórios, “quem vê cara não vê coração”. O poema parece uma versão menos “dark” de O Retrato de Dorian Gray de Wilde, se tomarmos “retrato” como sinônimo de “foto” e não de “pintura a óleo”. 

A releitura, agora, me trouxe outro ponto de vista. Este soneto sempre me pareceu dizer, em seu desfecho: “Esse indivíduo que você está vendo nesse grupo, esse indivíduo tão belo, tão forte, tão ardente, é na verdade o mais feio de todos, e nós perceberíamos sua feiura, se pudéssemos enxergar sua alma”. 

Mas como o poeta coloca entre esses dois tipos um sinal de igualdade, é possível ler também o inverso: “Sabem quem é o mais belo, forte e ardente desses indivíduos? É precisamente esse que, quando o vemos apenas por fora, é de todos o mais triste, pálido e feio”. 

É o sertanejo. O sertanejo “desgracioso, desengonçado, torto” que de início despertou menosprezo em Euclides, mas aos poucos o conquistou pela sua bravura, estoicismo, grandeza moral. Fotografado de fora, era o “Hércules-Quasímodo”. Quando emergiu de si mesmo, transfigurou-se no “titã acobreado e potente”, graças ao olho-câmara do poeta-jornalista.







2 comentários:

Rubens disse...

Que análise excelente. Há muito tempo conheço esse poema, mas aprendi mais sobre ele agora.

Braulio Tavares disse...

Rubens, há uma comparação muito boa de Paulo Leminski (no livro "Anseios Crípticos 2") entre o soneto de Euclides e o soneto de Raimundo Correia "Mal Secreto", que tem uma idéia muito parecida.

MAL SECRETO (R. Correia)

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!