sexta-feira, 30 de abril de 2010

1981) Fantasia Cartesiana (15.7.2009)




(René Descartes)
 

A abreviatura tradicional para “science fiction” é SF. Indico de saída o termo inglês porque foi nos EUA que essa literatura, antes dispersa em obras individuais, transformou-se, por força do ímpeto comercializador dos norte-americanos, em gênero literário. 

É bem verdade que na Grã-Bretanha usava-se o termo “scientific romance” para designar obras como as de Julio Verne, H. G. Wells e outros. Mas o que colou, pra variar, foi o termo norte-americano, que aqui em português acabamos traduzindo como “ficção científica”. 

Este termo, aliás, traduz a rigor a expressão parecida “scientific fiction”. “Ficção ciência” seria a tradução mais ao pé da letra. Uma palavra bem mais rica de conotações seria a designação italiana para o gênero: “fantascienza”, que em português daria “fantasciência”, fazendo uma correta alusão ao elemento de fantástico ou de fantasia que permeia o gênero. 

Em alemão existe um termo igualmente adequado do ponto de vista semântico: “Wissenschaftlich-phantastische Erzählung”, ou “narrativa científico-fantástica”. Mas quem seria capaz de utilizar um semelhante escolopendro na linguagem cotidiana? Usa-se a siglazinha FC, e estamos conversados. 

Assim como serve para designar “ficção científica”, FC serviria também para indicar um outro rótulo igualmente aplicável ao gênero: Fantasia Cartesiana. Não imagino que este termo venha a suplantar o já consagrado, mas como alusão à ciência moderna ele me parece insuperável. 

Poderíamos dizer, para justificá-lo, que o lema da Fantasia Cartesiana é: “Penso, logo existe”. Se eu penso em alguma coisa, ela torna-se real no plano do pensamento. Os pensamentos que ocorrem numa mente humana são tão reais quando os objetos físicos – eis um postulado capaz de ser aprovado tanto pelos Materialistas Empedernidos quando pelos Idealistas Radicais. 

Tudo que se passa em nossa mente atinge um nível inicial de realidade; se é registrado por algum meio de expressão (fala, escrita, representação visual), sobe a um patamar mais alto de realidade; se é captado por outras consciências e se propaga, atinge um patamar mais alto ainda. Torna-se mais real. Existe com mais intensidade. 

Além do mais, lembremo-nos de que foi Descartes quem concebeu a arte de, com um eixo de coordenadas numéricas (as famosas “ordenadas” e “abscissas”), criar uma equivalência entre grandezas aritméticas e formas geométricas – entre o digital e o analógico, portanto. (Ver artigo “A cruz de Descartes”, 5.11.2003.) 

Uma equação do 1o. grau é uma linha reta; uma de 2o. grau é uma parábola. Cada intersecção entre um “x” e uma “função de x” determina um ponto que se torna um átomo de uma imagem. Podemos gerar imagens a partir de dados numéricos, e vice-versa. 

A Fantasia Cartesiana homenageia aquele que, sem o prever, criou a base para a Computação Gráfica, os efeitos especiais e a arte eletrônica. Ele pensou. E agora, algo existe.







1980) A praga do PPS (14.7.2009)



Não se passa um dia sem que eu receba um spam em forma de arquivo PPS (que imagino significar Power Point System ou coisa parecida). O Power Point é um programa do Windows que produz aquilo que antigamente chamávamos de “projeção de slides” – uma sucessão de imagens fixas e de textos, com ou sem acompanhamento de áudio. Um recurso que o programa torna facílimo produzir. Daí que nossas caixas de mensagens amanheçam todos os dias entupidas por PPSs de todos os tipos.

Não vou dizer que não olho. Olho de vez em quando, e com proveito. PPSs com fotos da natureza, de paisagens, de arquitetura e imagens deste ou daquele país, etc., costumam ser de uma beleza surpreendente. Imagino que o pessoal captura isso de saites como National Geographic. Prefiro aqueles que vêm sem trilha sonora, a qual costuma ser com melosos violinos, pianos dietéticos ou gravações padronizadas de folclores locais. Os PPSs de mensagem cristã eu pulo por cima; afinal já li e assimilei a Bíblia (embora ainda esteja atrasado nos Apócrifos). Os PPSs de mulheres peladas têm qualidade variável, mas se existe uma coisa fácil de obter hoje em dia na Internet é foto de mulher pelada. É mais rápido do que ver que horas são.

Um recurso que me irrita sempre é o fato de que o programa dá ao usuário diversas opções sobre a maneira como o texto vai ser adicionado. Em vez de simplesmente aparecer a foto e depois, sobre ela ou ao lado dela, aparecer o texto correspondente, criou-se um mecanismo teratológico que trata o texto como se as linhas fossem serpentinas e as letras confetes. Aparece uma foto interessante, mas o texto que a explica surge como se o computador estivesse bêbado. Uma linha desliza horizontalmente da direita para a esquerda, a linha seguinte faz o mesmo da esquerda para a direita... Ler uma coisa assim é um suplício.

Pior ainda é quando o engraçadinho faz com que as letras venham caindo de uma em uma do alto e se encaixando em suas posições. Quem faz isso lê pouco, ou lê “assoletrando”. Não perceberam que ninguém lê palavras letra-a-letra. Reconhecemos a forma inteira da palavra, quando já a conhecemos, sem atentar para os detalhes. É por isto que cometemos tantos erros ortográficos, porque não damos atenção ao detalhe, e sim ao conjunto. É por isto que também circulam por aí outras mensagens provando que podemos ler um texto em que as palavras estão escritas com erros, desde que se mantenham iguais a primeira e a última letra. Difereçnas peqeunas são ignroadas durnate a leitrua; as palarvas são reconecihdas pelo seu fomrato e pela probablidade estatítica de frequêcnia das letars.

Meu conselho à galera do PPS: deixem o leitor ler em paz. Não obriguem as letras a fazerem rodopios, piruetas, cambalhotas. Isto incomoda a vista, atrapalha a concentração... Equivale a telefonar para alguém junto de um liquidificador ligado. A menos que seja PPS de mulher pelada. Nesse caso, tanto faz, ninguém vai ler mesmo.

1979) O país dos espiões (12.7.2009)



(William Gibson)

Em seu recente Spook Country, William Gibson produz um curioso romance de espionagem que “The New York Times Book Review” chamou de “o primeiro exemplo do romance pós-11 de setembro, cujos personagens estão cansados de serem empurrados para lá e para cá por forças maiores do que eles – a Burocracia, a História, e, sempre, a Tecnologia – e finalmente decidiram-se a enfrentá-las”. Chamar o livro de Gibson de “thriller” seria forçar um pouco a barra, porque um thriller é por definição um livro que visa produzir emoções fortes, e Gibson afasta-se mais disso a cada livro que publica. Seu estilo é lúcido, contemplativo, e mesmo quando descreve intensa ação física, como uma perseguição, uma tentativa de atropelamento, uma briga, ele verbaliza as coisas de tal modo que o leitor sente estar tendo acesso a uma descrição analítica de um fato, e não à ilusão do fato propriamente dito.

Spook Country conta a minuciosa preparação de algo que imaginamos ser um atentado terrorista, ou um assalto de grande porte, ou um crime político... Vemos os preparativos, mas os vemos através dos olhos de personagens que no livro são protagonistas, mas não passam de meros figurantes no fato. Eles entendem as coisas fragmentadamente, com avanços e recuos, dúvidas e surpresas... Aos poucos vão montando o quebra-cabeças; e nós também.

A certa altura, um dos personagens de Gibson diz: “Uma nação consiste em suas leis. Uma nação não consiste em sua situação num dado momento. Se a moral de um indivíduo é uma moral situacional, este indivíduo não possui uma moral. Se as leis de uma nação são leis situacionais, essa nação não possui leis, e dentro em pouco deixará de ser uma nação. (...) Será que vocês estão tão apavorados com os terroristas que estão dispostos a destruir as estruturas que fizeram da América o que ela é? (...) Se for assim, estarão permitindo que os terroristas vençam. Porque esse é exatamente o seu objetivo, seu único e específico objetivo: amedrontar vocês até fazê-los abrir mão de suas leis. É por isto que são chamados terroristas. Eles usam ameaças aterrorizantes para fazer com que vocês degradem sua própria sociedade. (...) E tudo se baseia no mesmo defeito da psicologia humana que faz as pessoas acreditarem que podem ganhar na loteria. Estatisticamente, quase ninguém ganha na loteria. Estatisticamente, ataques terroristas quase nunca acontecem”.

Desde que Gibson inventou o conceito literário de ciberespaço e fundou o movimento “cyberpunk” sua literatura mudou enormemente, embora em essência permaneça a mesma. Seu estilo tornou-se mais límpido; perto de Spook Country, um livro como Neuromancer é um delírio surreal. Seu tema básico – humanismo vs. alta tecnologia – continua a perpassar tudo que escreve. Vinte e cinco anos após sua estréia em livro, o humanismo está descendo aos Infernos, e a tecnologia subindo ao Paraíso. Gibson tem a ubiquidade de espírito necessária para documentar os dois.

1978) Os jogos simétricos (11.7.2009)



Não deve ter escapado à maioria dos torcedores a curiosa simetria de resultados nos dois jogos da semana passada, realizados em Porto Alegre. Na quarta-feira, o Internacional recebeu o Corinthians para decidir o título da Copa do Brasil. Na quinta, o Grêmio recebeu o Cruzeiro, na decisão da semifinal da Copa Libertadores da América. Os dois times gaúchos estavam em desvantagem, pois ambos tinham perdido o primeiro jogo para seus adversários por dois gols de diferença: o Corinthians vencera em São Paulo por 2x0, e o Cruzeiro vencera o jogo de Belo Horizonte por 3x1. Mesmo assim, tanto os colorados quanto os gremistas tinham esperanças justificadas, pois bastaria vencerem por 2x0 (no caso do Grêmio) ou por 3x1 (no caso do Inter) para ganharem a disputa. Resultado normais em jogos entre equipes equivalentes.

Na quarta-feira, no entanto, o Corinthians desmantelou as esperanças do Inter logo no primeiro tempo, quando marcou dois gols e aumentou sua vantagem acumulada nos dois jogos para 5x1. Mesmo sendo um dos melhores times brasileiros do momento (na minha opinião), o Inter não tinha como tirar uma diferença tão grande em 45 minutos, enfrentando um time tão bom quanto o seu. Ainda assim, conseguiu fazer dois gols no segundo tempo. O jogo acabou 2x2, e o Corinthians foi campeão com o placar acumulado de 5x3.

Imagino as gozações que os torcedores do Grêmio fizeram durante o dia seguinte, zoando dos derrotados e esperando a noite, quando teriam a chance de ganhar do Cruzeiro e completar a festa. Quando a bola rolou, parecia um VT do jogo da véspera. O time visitante, que já entrara em campo com vantagem de dois gols, fez mais dois no primeiro tempo e foi para o intervalo com vantagem de quatro. O Grêmio, abatido, jogou no segundo tempo sem muita esperança de vitória, apenas para honrar a camisa. Fez dois gols; empatou o jogo em 2x2, mas saiu tão derrotado quanto saíra o Inter na véspera.

É muito raro que duas partidas importantes, na mesma cidade, em dias consecutivos, envolvendo dois times rivais, tenham uma marcha do placar absolutamente idêntica. Até mesmo no detalhe de que o último gol de cada jogo foi marcado aos 30 minutos, o que daria tempo, teoricamente, para que o time em desvantagem fizesse, nos quinze minutos que restavam, os 3 gols de que precisava para vencer a disputa. Não aconteceu, claro. Os visitantes souberam administrar a vantagem que tinham. Corinthians e Cruzeiro ganharam com méritos, principalmente o primeiro, considerando-se que o time do Inter é muito superior ao do Grêmio.

Jung falava em sincronicidades – coincidências significativas e inexplicáveis. Mais do que isso, no entanto, às vezes me parece que a vida é um poema rimado. Simetrias improváveis aparecem quando menos se espera, e nos dão a impressão de que vimos a repetição de um padrão, de um ornato, a justaposição de duas coisas que alguém tornou iguais porque isso lhe dava algum tipo de prazer estético.

1977) Michael Jackson (10.7.2009)



Me deixem correr aqui o restinho de tinta que sobrou para falar desse personagem. MJ surgiu para mim como um neguinho de cabelo bombril, cantando, no Jackson Five, uma açucarada canção de amor, “Ben”, que fez sucesso enorme nos anos 1970 e foi sua primeira música a atingir o #1 da “Billboard”. O que ninguém sabe é quem era Ben. Não, não era um menininho impúbere. Ben era um rato inteligente. Ele se comunicava meio telepaticamente com Willard, um garoto esquisitão cuja mãe viúva era maltratada pelo dono da casa onde viviam, a tal ponto que o garoto e o rato, agora comandando um exército deles, desencadeiam uma horripilante vingança sobre o vilão, interpretado por Ernest Borgnine.

Willard (1971), dirigido por Daniel Mann, foi um sucesso de bilheteria tão estrondoso que logo veio uma continuação, Ben (1972), dirigido por Phil Karlson. Este segundo filme lançou a canção interpretada por Jackson (composta por Walter Scharf e Don Black). Vejam só: um menino antissocial e vingativo, cujo melhor amigo (ousarei dizer “cujo único amor”?) é um rato assassino, a quem ele dedica essa canção... Fico imaginando as dezenas de vezes em que Jackson, com 14 anos, viu e reviu os filmes que lhe deram seu primeiro grande sucesso, e as cenas em que os ratos, comandados por Willard & Ben, devoravam vivo o adulto cruel que os perseguia.

A vida de Jackson foi uma mistura de tudo isso: filme B de terror, palco de megashow, barraco-de-família-pobre. Ele era frágil, temperamental e histérico, como aqueles “castrati” de ópera do século 18, produzidos pela indústria do sucesso a qualquer custo. Virou um perverso polimorfo, que menos explorou do que foi explorado. Era tão pouco pedófilo quanto Lewis Carroll.

Sentia-se um Deus e um Monstro. A imprensa diz que ele comprou o esqueleto de J. Merrick, o “Homem Elefante”, por um milhão de dólares. Jackson negava, mas dizia: “Eu gosto da história do Homem Elefante. Ele parece muito comigo, e eu consigo entendê-lo. Essa história me fez chorar, porque eu me vi refletido nela, mas não, nunca tentei comprar nada... Onde iria pôr aqueles ossos? E para quê iria querer ossos?”.

Jackson tentou fazer em seu próprio rosto aquele “morph” que transformava umas pessoas em outras no seu clip “Black and White”. Foi um dos primeiros a tentar manipular a própria carne e o próprio osso como se fossem pixels, grãos de luz digital. Devia considerar sua imagem mais real do que seu corpo. Era um ser artificial num corpo biológico, algo que os EUA têm produzido em série, como seu contemporâneo Ronald Reagan, um canastrão obtuso que exerceu a Presidência dos EUA como se interpretasse um papel a mais em mais um filme, decorando textos e obedecendo instruções da equipe. Jackson fazia o mesmo, só que era um menino violentado, ressentido, afetado e talentoso, capaz de se apaixonar por um rato. Parecia-se mais com sua estátua no Museu de Cera de Madame Tussaud do que com uma pessoa.

1976) Literatura online (9.7.2009)



Num artigo recente, Steve Johnson imagina que a evolução da literatura online não vai mexer apenas com os modos de comercialização, mas principalmente com o que poderíamos chamar de “nuvem de leitura” em torno de um livro. Chamo de nuvem de leitura aquele agregado difuso de leitores, críticos, estudiosos, etc., que se aglomeram em torno de uma obra, produzindo desdobramentos dela sob formas, que vão desde as mais sofisticadas, como os ensaios acadêmicos, até as mais superficiais, como os comentários de mesa de bar ou de festas (“estou lendo um livro muito interessante, fala de tal ou tal coisa...”) Esse agregado de informações cerca qualquer livro. A nuvem de leitura em torno de best-sellers como Código da Vinci ou de clássicos como Dom Quixote seria, se transformada em texto, algo da ordem de alguns gigabytes. É nesse sentido que Osman Lins afirmava que a Divina Comédia consistia nos três livros escritos por Dante Alighieri e em todos os textos decorrentes deles: todas as análises, traduções, interpretações, etc.

Johnson acha que a fartura de informação e a velocidade de acesso contribuem para dispersar nossa atenção. “Iremos ler os livros”, supõe ele, “cada vez mais do modo como lemos jornais e revistas: um pedacinho aqui, outro pedacinho ali”. Concordo, porque minha apreciação do cinema tem sofrido, por causa da TV a cabo, esse mesmo tipo de mutação. Antigamente, para mim era ponto de honra ver um filme do começo ao fim. Nunca saí no meio de uma sessão, por pior que fosse o filme. Hoje em dia, isso foi para o espaço. Vejo filmes assim, um pedaço hoje, outro pedaço daqui a um mês. Os filmes se repetem muito na TV a cabo. Há filmes dos quais já vi 3 ou 4 vezes as partes do meio, sem nunca ter visto o começo ou o fim. E acho isso normal.

O mesmo deve se dar com as pessoas que não têm muita paciência para ler um livro inteiro. Lêem qualquer livro como eu li o Ulisses: somente as partes que me despertaram a atenção. O resto eu pulei. Uma tendência assim, quando se generaliza, acaba produzindo uma cultura fragmentária, em que todo mundo entende um pouquinho de tudo mas não conhece nada a fundo. Pode ser uma desvantagem, pois estará se criando uma população de cultura superficial. Por outro lado, isto abre a possibilidade de existência de um ambiente de gente mais ou menos bem informada, no qual os especialistas podem vir a ser vistos com respeito: primeiro, porque serão raros; segundo, porque haverá (mais do que hoje) um grande número de pessoas parcialmente informadas e capazes de constituir um público leitor para ele.

Essa democratização superficial da cultura pode ser benéfica. Não no sentido de produzir mais escritores, e sim mais leitores; não de mais conferencistas especializados, mas de maiores platéias em condições de ouvi-los. Intelectuais precisam de pessoas que, sem deter a mesma massa de conhecimentos, sejam capazes de se interessar pelos conhecimentos que eles detêm.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

1975) “Spook Country” (8.7.2009)



O romance mais recente de William Gibson mostra que o criador do movimento cyberpunk está cada vez mais longe da ficção científica tradicional, fazendo literatura “mainstream” sobre um mundo transformado pela tecnologia. Gibson não mais escreve sobre realidade virtual, sobre ciberespaço, sobre mentes plugadas nos computadores. Seus personagens continuam sendo fetichistas tecnológicos, mas suas aventuras acontecem “aqui fora”. Spook Country (que tanto pode ser “País dos Fantasmas” como “País dos Espiões”) é um thriller de espionagem em que a tecnologia tem um papel essencial. Não é um livro de ficção científica. É um romance realista sobre um mundo que foi irremediavelmente transformado pela ficção científica e pela ciência.

Como em todo livro de Gibson, os capítulos se alternam em linhas narrativas convergentes. São três grupos de personagens, que não interagem entre si, mas fazem parte, todos, da mesma história. De vez em quando, seguindo a linha narrativa “A”, temos um vislumbre dos personagens da linha “B”, vistos através dos olhos daqueles. Pouco a pouco, vai se desenhando uma trama. Algo está para acontecer. Alguns personagens trabalham para que aconteça, e outros trabalham para evitá-lo. Alguns deles têm um papel importante na trama mas não têm uma compreensão geral do que está havendo, e em geral são estes que servem de pontos-de-vista para Gibson. O leitor os acompanha, e compartilha suas descobertas, perplexidades e revelações.

Um dos “gimmicks” mais gibsonianos deste romance é a Arte Locativa, uma mistura de realidade virtual com GPS. Os artistas produzem um programa que superpõe imagens a uma paisagem real qualquer; estas imagens só podem ser vistas com um sistema de capacete e óculos especiais, com uma antena que recebe e transmite coordenadas GPS via satélite. Indo numa determinada praia de Los Angeles, o espectador coloca o capacete, liga o botão... e vê o corpo de uma Estátua da Liberdade emergindo das águas. Essa imagem só é visível para quem esteja precisamente naquelas coordenadas: mesmo com o capacete, se o observador se afastar dali algumas dezenas de metros deixa de receber o sinal, a obra deixa de ser visível.

Num dos primeiros capítulos, um personagem diz: “Tudo começou em 1o. de maio de 2000. O governo desligou o sistema de Disponibilidade Seletiva, e as coordenadas de GPS, do posicionamento global por satélite, ficaram pela primeira vez ao alcance de qualquer civil.” O resultado mais prático disto é já termos, por exemplo, táxis com aquele pequeno visor onde aparece um mapa mostrando onde estamos e para onde estamos indo. Rastreamentos desse tipo aparecem o tempo inteiro em “Spook Country”, o que leva um personagem a dizer que “o ciberespaço está sendo virado pelo avesso”, ou seja, ele não reside mais “lá dentro”, mas ajuda as pessoas a navegarem “aqui fora”, e se superpõe (como na Arte Locativa) às próprias imagens que enxergamos com os olhos.

1974) “Profanação”(7.7.2009)



A TV a cabo exibiu este filme de Jules Dassin, de 1962, que já tentei assistir no cinema mas era proibido para menores de 18 anos. Hoje passou na TV proibido para doze. Alguns detalhes justificam em parte essa censura: um caso de incesto (madrasta e enteado se apaixonam) e uma sugestão de lesbianismo. Diante do que vemos nos cinemas em 2009, é um filme quase puritano. Até mesmo pela mensagem do seu final, que, como em qualquer tragédia grega, pune os transgressores com a morte.

Dassin foi um cineasta transnacional. Nascido nos EUA, filho de um judeu russo, tornou-se cineasta, foi perseguido pelo macartismo, mudou-se para a França onde fez nova carreira, e depois criou uma ligação muito forte com a Grécia, onde fez numerosos filmes, alguns deles com sua esposa grega Melina Mercouri. O roteiro de Profanação (cujo título original é “Phedra”) se inspira superficialmente numa peça de Eurípides (Hipólito). Fedra (Melina Mercouri) é casada com o armador grego Thanos (Raf Vallone) e se apaixona pelo seu filho Alexis (Anthony Perkins). Os dois têm um caso. Ela não pode se divorciar, pois isto seria a ruína do marido (que depende do dinheiro do pai dela). Alexis se revolta e passa a desprezá-la. Ela volta a persegui-lo. No final, todos saem perdendo.

Dassin é um cineasta de narrativa tradicional, criando imagens de valor simbólico mas justificadas pelo contexto. A festa noturna em que os convidados atiram pratos brancos ao mar; Alexis ferido deitando-se sob uma torneira aberta para lavar o sangue; Thanos e Alexis subindo num andaime e contemplando os enormes navios em construção. Objetos adquirem valor simbólico: Alexis chama de “my girl” o carro em que morrerá no final, e o naufrágio do navio “Fedra” anuncia a destruição da personagem.

Profanação pertence a um gênero cinematográfico que floresceu nos anos 1960, a Tragédia Amorosa da Burguesia Européia. Nunca os desencontros amorosos dos milionários europeus foram descritos com tanta beleza plástica e tanta impiedade, antes ou depois. Antonioni (quase toda sua obra na época), Fellini (Doce Vida), Resnais (Marienbad), Pasolini (Teorema), Visconti (vários filmes), e inúmeros outros cineastas deram à burguesia capitalista daqueles tempos uma importância cósmica semelhante à que tinham os reis e as rainhas no teatro elizabetano. Ou na tragédia grega, que no caso deste filme serviu de inspiração direta.

Não vejo hoje em dia muitos filmes com essa temática. É uma mitologia que os intelectuais europeus cultivaram com fascinação, como se vissem um significado transcendental naquelas pessoas riquíssimas, frias, ressecadas por dentro, tempestuosas e cruéis, hedonistas e introvertidas, consumidas pelo torpor de quem pode tudo mas não deseja nada. Filmes assim encorparam o “cinema de autor” daquele tempo. Por alguma razão misteriosa deixaram de ser feitos, não sei se por falta de artistas à altura ou por esgotamento do tema.

1973) Os castigos eternos (5.7.2009)



Na infância, amedrontavam a gente com o Inferno através da descrição de torturas físicas horrorosas. As aulas de Religião nos ameaçavam com o Fogo Eterno, em que nossas almas iriam arder para sempre, caso a gente morresse em pecado. Um dia, um aluno mais blasê retrucou: “Eu não ligo, porque é a alma, alma não sente dor”. A freira o fuzilou com o olhar: “Pois fique sabendo que quando a alma está no fogo do Inferno ela sente muito mais dor do que o corpo! E o que é pior: não morre! É um fogo tão grande que o corpo não ia aguentar nem um minuto, mas como a alma é imortal, ela queima ali eternamente!” Era o quanto bastava para de noite eu cair de cama e arder numa febre antecipatória.

Teólogos adultos são mais sofisticados. Dizem-nos que “o Inferno é a ausência de Deus”, o mais intolerável dos castigos. Imagino que para uma pessoa religiosa a ausência de Deus deve provocar uma Náusea, uma ausência de sentido nas coisas, mil vezes maior do que a do protagonista do livro de Sartre quando olha para a raiz de uma árvore e percebe que ela não significa nada, apenas está ali, e isso é tudo. Será que este castigo é mesmo o mais cruel de todos? Parece ser assim para Neil, o protagonista do conto “Hell is the absence of God”, de Ted Chiang (2001), no qual ele vai parar no Inferno, um lugar de onde Deus está ausente a ponto de não saber que Neil está ali. Diz o autor: “Neil sabe que, estando fora da percepção de Deus, seu amor por Ele não é retribuído. Isto não afeta os seus sentimentos, porque o amor incondicional nada pede em troca, nem mesmo reciprocidade. Mas ele continua a amar Deus, pois essa é a natureza da verdadeira devoção”.

Espíritos céticos, no entanto, continuam a se alinhar com a opinião daquele meu colega blasê da escola. É o caso de Oscar Wilde e sua famosa frase: “Livre-me Deus da dor física, e pode deixar que da dor espiritual eu mesmo me encarrego”. Tem razão, em parte. Quando eu tinha 12 anos tive uma dor de dentes que durou dias, tão violenta que pensei em me suicidar. Em alguns momentos o medo de ir para o Inferno me detinha. Em outros eu pensava: “Dane-se o Inferno, eu quero é acabar com essa dor!” E então me veio a idéia salvadora. Compreendi que o Inferno era aquela mesma dor – só que em todos os dentes ao mesmo tempo, e por toda a Eternidade. Essa noção pode ter salvado minha vida.

E tem a história de Rudyard Kipling dando conselhos ao jovem escritor Ford Maddox Ford, então um garoto. “Se você for bom, Fordie”, disse ele, “irá um dia para um lugar cheio de nuvens e de harpas. Você vai sentar numa nuvem e cantar hinos em louvor ao Senhor, para sempre, e sempre, e sempre. Você vai vestir eternamente uma túnica branca, e estará cercado por criaturas parecidas com sua mãe, só que todas têm asas. Mas se você for um menino mau...” Aí ele fazia uma pausa ameaçadora e concluía: “Se você for mau, vai parar num lugar muito, muito pior do que esse”.

1972) A Jovíssima Guarda (4.7.2009)



Os puristas irão torcer o nariz diante do superlativo do título, mas sinto muito, a Língua se faz com “a contribuição milionária de todos os erros”, como disse Oswald de Andrade. Passemos ao assunto. Vi dias atrás, pela primeira vez, um show do Skank, o que não deixa de ser surpreendente, pois o grupo mineiro está na estrada há pelo menos uns quinze anos. Não é um dos meus preferidos. As bandas do Rock Brasil que sempre ouvi com prazer são Paralamas, Titãs e Barão Vermelho. Mas por trás destas existem, ou existiram, pelo menos umas vinte em cujo rock em vejo qualidades, mesmo quando tende para o lado bobinho do Kid Abelha ou o lado truculento do Sepultura.

O que ficou martelando com insistência no meu juízo, durante o show do Skank, foi a enorme distância entre essas bandas e as bandas que eu próprio ouvi no começo da adolescência, nos tempos da Jovem Guarda. Muita gente vê a Jovem Guarda com nostalgia, dizendo que “eram tempos mais puros”, e reclama que o rock dos anos 1980 em diante foi um movimento comercialesco, manipulado pelas gravadoras multinacionais. Parece. Mas não é.

Vejo com o maior carinho a Jovem Guarda dos anos 1960. Se deixarem, sou capaz de pegar o violão e tocar 50 músicas seguidas sem errar a letra. Bom ou mau, aquilo fez parte da minha formação, e sou capaz de me despir de qualquer intenção crítica ao cantar músicas de Wanderléia, Golden Boys, Renato e Seus Blue Caps, Os Vips, Jerry Adriani, Bobby de Carlo... São bobinhas? Sem dúvida. Mas eu as conheci numa época em que era tão bobinho quanto elas. Tocá-las e cantá-las, de misturada com a MPB e o Tropicalismo nascentes, dava a sensação de lidar com algo confortavelmente unidimensional.

Com poucas exceções, as letras da Jovem Guarda eram no nível mental dos gibis de Luluzinha ou Pato Donald. As versões, comparadas aos originais, eram de uma vacuidade assombrosa. E vejam, naquele tempo as gravadoras mandavam e desmandavam, embora comparadas às dos anos 1980 fossem tão bobinhas quanto os intérpretes. O Rock Brasil dos anos 1980 em diante, mesmo num ambiente de gravadoras muito mais multinacionais e poderosas, teve um lado de rebeldia e de “atitude” que a Jovem Guarda nunca foi capaz de sonhar. Sendo uma cópia ou transcrição do rock que se fazia fora, o Rock Brasil copiou também muitas coisas boas daquele rock. Não apenas o vigor eletrificado e a postura desafiadora, mas uma consciência crítica nas letras, uma disposição de dizer verdades incômodas, uma irreverência que, mesmo diluindo-se com frequência em mera “atitude”, produziu canções notáveis que ainda hoje são lembradas e cantadas.

Comparados aos ingênuos rapazes de franjinha e às mocinhas de minissaia da Jovem Guarda, os roqueiros dos anos 1980 fizeram rock de verdade, um similar nacional que imitou com sucesso as qualidades do original estrangeiro. Comparado a eles, a Jovem Guarda foi algo tão infantil quanto o repertório de Xuxa e Angélica.

1971) O automóvel e o petróleo (3.7.2009)




Michael Moore, o cineasta de Tiros em Columbine e Fahrenheit 9/11, publicou uma carta aberta sobre a estatização da General Motors, a maior e mais tradicional fábrica de automóveis dos EUA, cuja “quebra” obrigou o governo a absorvê-la para evitar prejuízos maiores. 

Passei a vida vendo a imprensa brasileira criticar o nosso capitalismo subdesenvolvido, comparando-o ao capitalismo moderno dos EUA. Diziam que nos EUA o capitalismo era capitalismo mesmo, era uma iniciativa de risco, onde era possível ter lucro ou prejuízo. 

No Brasil, ao contrário, predominava a mentalidade paternalista em que quando uma empresa dava certo o lucro era seu, e quando dava errado o prejuízo era absorvido pelo Governo, ou seja, era pago pelo bolso do contribuinte. 

A enxurrada de estatizações de empresas nos EUA e na Europa parece dizer que o problema não é brasileiro, é uma coisa que está no DNA do capitalismo. Quando perdem dinheiro em suas aventuras financeiras, eles exigem que o povo pague seus prejuízos. 

Diz Michael Moore: 

“Assim como o Presidente Roosevelt fez depois do ataque a Pearl Harbor, o Presidente (Obama) deve dizer à nação que estamos em guerra e que devemos imediatamente converter nossas fábricas de carros em indústrias de transporte coletivo e veículos que usem energia alternativa. Em 1942, depois de alguns meses, a GM interrompeu sua produção de automóveis e adaptou suas linhas de montagem para construir aviões, tanques e metralhadoras. Esta conversão não levou muito tempo. Todos apoiaram. E os nazistas foram derrotados. Estamos agora em um tipo diferente de guerra - uma guerra que nós travamos contra o ecossistema, conduzida pelos nossos líderes corporativos. Essa guerra tem duas frentes. Uma está em Detroit. Os produtos das fábricas da GM, Ford e Chrysler constituem hoje verdadeiras armas de destruição em massa, responsáveis pelas mudanças climáticas e pelo derretimento da calota polar. 

"As coisas que chamamos de ‘carros’ podem ser divertidas de dirigir, mas se assemelham a adagas espetadas no coração da Mãe Natureza. Continuar a construir essas ‘coisas’ irá levar à ruína a nossa espécie e boa parte do planeta. A outra frente desta guerra está sendo bancada pela indústria do petróleo contra você e eu. Eles estão comprometidos a extrair todo o petróleo localizado debaixo da terra. Eles sabem que estão ‘chupando até o caroço’. E como os madeireiros que ficaram milionários no começo do século 20, eles não estão nem aí para as futuras gerações. 

"Os barões do petróleo não estão contando ao público o que sabem ser verdade: que temos apenas mais algumas décadas de petróleo no planeta. À medida que esse dia se aproxima, é bom estar preparado para o surgimento de pessoas dispostas a matar e serem mortas por um litro de gasolina. Agora que o Presidente Obama tem o controle da GM, deve imediatamente converter suas fábricas para novos e necessários usos.”





1970) "Oito e Meio" de Fellini (2.7.2009)



Fui rever este filme num curso que está ocorrendo no Rio, “História da Filosofia em 40 Filmes”, ministrado por Alexandre Costa e Patrick Pessoa. Entrada franca, mas mesmo assim me surpreendi em ver mais de 300 pessoas, às 10 da manhã de um sábado, vendo e debatendo filmes de arte. A vida presta! Melhor ainda rever este filme em tela grande, reencontrar as imagens de Fellini, que faz com o preto-e-branco o que João Gilberto faz com a voz-e-violão.

Oito e Meio (1963) já foi descrito, na época de seu lançamento, como “o filme mais hermético da história do cinema”. Vi-o pela primeira vez no Capitólio, quando era um cineclubista de 18 anos, com as mãos banhadas de suor frio, com “medo de não entender”. Teria sido difícil, porque já lera o que uma dúzia de críticos tinham a dizer a respeito. Quando surgiu aquele túnel silencioso, aquele engarrafamento de trânsito, aqueles automóveis asfixiantes, e quando Marcello Mastroianni, todo vestido de preto, emergiu do carro e começou a flutuar, elevando-se nos ares, tudo desapareceu. Elevei-me nos ares, eu também, e deixei-me levar por duas horas ao longo daquela galeria de rostos deformados por uma grande angular, de ambientes insólitos, de mulheres sensuais e cafonas, de cançonetas, mágicos de salão, querelas conjugais... E ao fundo de tudo, uma imensa plataforma de lançamento de um foguete espacial. Para que? Talvez um resíduo do tempo em que Fellini traduzia baluns das histórias em quadrinhos de Flash Gordon.

Não existe coisa mais chata do que um livro a respeito de um escritor que tenta e não consegue escrever um livro. Não conheço nenhum que preste. Por outro lado, um filme sobre as atribulações de um cineasta que tenta fazer um filme é algo fascinante. Por que? Não sei. Mas aí estão O Desprezo (Godard), Noite Americana (Truffaut), O Estado das Coisas (Wim Wenders) e tantos outros filmes de fascínio inesgotável. Lembro-me que quando vi pela primeira vez o filme de Truffaut, há mais de trinta anos, escrevi algo mais ou menos assim: “É um filme que desvenda todos os truques e todos os segredos técnicos de como os filmes são feitos, e torna isso ainda mais misterioso e fascinante do que era antes”. Não acho necessário mudar uma letra sequer.

Numa crítica publicada quando do lançamento de 8 ½, Truffaut disse: “A acreditar em Fellini, um diretor é antes de tudo um homem a quem todos incomodam, de manhã, de tarde, de noite. Fazem-lhe perguntas que ele ou não sabe ou não quer responder. Sua cabeça está às voltas com mil idéias contraditórias, impressões, sentimentos, desejos em botão, e no entanto todo mundo lhe pede certezas, nomes precisos, números exatos, lugares, cronogramas”. Não há dúvida de que o filme de Fellini foi uma grande inspiração para que Truffaut fizesse Noite Americana dez anos depois, dando a sua versão pessoal da Arte de Padecer no Paraíso.

1969) Resposta de nordestino (1.7.2009)



“Quais foram as leituras básicas da minha infância? Ih, esta entrevista está começando bem. Estou vendo que vocês querem coisas do fundo do baú. Bem, infância você sabe como é. A gente não escolhe o que vai ler, ou melhor, a gente lê o que tem à mão. Nesse sentido eu tive uma infância privilegiada. Não porque foi uma infância rica, com tudo entregue de bandeja. Meus pais passaram dificuldades, mas nunca faltou o básico. E básico inclui leitura, não é mesmo? O grande problema da infância de hoje, principalmente na classe média alta, é que está havendo uma industrialização da infância. Criança não lê, não brinca. É um verdadeiro treinamento que elas recebem: judô, natação, inglês, violão... A criança é vista como um pré-profissional, alguém em processo de profissionalização, que aos 10 anos já está se preparando para competir no mercado, para fazer sucesso... Novos tempos!

“Existe uma coisa que eu acho essencial: saber brincar. O tal do espírito lúdico. A criança não pode ficar condicionada a esse negócio de pra quê que vai servir. Criança tem que descobrir as coisas movida pela própria curiosidade dela. Se botar aquilo como obrigação, não dá em nada. Se você obrigar uma criança a fazer uma conta de somar, ela vai levar meia hora, vai ficar mordendo o lápis, balançando a perna, olhando pela janela. Mas se ela ganha um jogo de armar, passa a mesma meia hora montando e desmontando o negócio até entender como funciona, e ai de você se tentar montar também, porque provavelmente não vai conseguir. Criança é movida a curiosidade. E quem diz curiosidade diz brincar, diz: isto parece com isso, que dá certo com aquilo, que me lembra aquilo-outro... E não tem mais fim.

“Leitura é a mesma coisa. É preciso deixar por perto, elogiar em voz alta para alguém para que a criança ouça. Dar risadas enquanto lê um livro. Dizer para alguém; “Não sei se vou dormir direito hoje... fiquei muito impressionado com o que eu li nesse livro!” E deixar o livro de bobeira, como que por acaso, em cima da mesa da sala. Criança não quer o que os adultos procuram forçar para dentro do seu mundo. Quer o que faz parte do mundo dos adultos e lhes é vedado.

“Me lembro de meu avô, que lia a Bíblia em silêncio, depois fechava com uma pancada seca e dizia: ‘Isso não é coisa que se faça com um filho de Deus!’ Eu ficava me roendo de curiosidade de saber o que era. A Bíblia é uma grande influência, mas o defeito dela é que não é um livro, é uma biblioteca inteira. Ali a gente acha o que procura e o que não procura, acha guerra, violência, intriga, história, geografia, sacanagem... Sim, sacanagem, vejam a história de Noé com as filhas, vejam Sodoma e Gomorra... criança fica de olho, não perde uma chance. Não que eu tenha lido muito a Bíblia, meus interesses eram outros. Como é mesmo a pergunta? Minhas leituras básicas? Pode botar aí: Monteiro Lobato, Malba Tahan... E a Bíblia. Pra dar credibilidade, né?”

1968) Bafana Bafana (30.6.2009)



A simpática seleção da África do Sul, comandada por Joel Santana, deu um calor no Brasil na partida semi-final da Copa das Confederações. Só nos classificamos nos últimos minutos, com um gol de falta de Daniel Alves , num desfecho que foi uma ameaça à condição cardíaca de qualquer torcedor. Há rumores de que Michael Jackson estava vendo esse jogo e não resistiu à emoção. Os Bafana Bafana (apelido que significa “os meninos”) mostraram as qualidades e os defeitos de qualquer seleção da África. Nunca isso foi tão claro quanto na decisão do terceiro lugar, quando perderam para a Espanha, num jogo que bastava ter um pouco de malícia e experiência para ter ganho por 1x0.

Já o Brasil, no jogo final, enfrentou a zebra dos EUA, que surpreendeu a Espanha e veio para cima do Brasil com um esquema bem montado, jogadores aplicados e velozes, com certa habilidade. Se os EUA continuarem investindo no “soccer”, talvez nunca cheguem a ter um time que se equipare a Espanha ou Itália, mas nada impede que, ao seu estilo atlético, batalhador, com muita aplicação tática, possam vir a ter no futuro equipes comparáveis a certas boas seleções que Alemanha ou Inglaterra já tiveram.

Os ianques botaram 2x0 no 1º. tempo e foram para o vestiário já mascando o chiclete da vitória. Do jeito que sabem se defender – provaram isso contra a Espanha – não era difícil que conseguissem bloquear o ataque brasileiro por mais 45 minutos e saíssem dali com a taça. O destino foi cruel com o time americano. Fê-los provar as altitudes inebriantes do triunfo, apenas para jogá-los de volta no vale das lamentações.

Os 2x0 no 1º. tempo não foram justos – o Brasil dominava o jogo, finalizava mais, só que tomou dois gols por descuido. O que nos salvou, além da mexida que Dunga fez no intervalo, foi o gol de Luís Fabiano com um minuto do 2º. tempo. Reduzindo a vantagem do adversário para um gol, ele permitiu que o Brasil se acalmasse, visse o empate como um objetivo alcançável a curto prazo, e a vitória idem um pouco mais adiante. Se esse primeiro gol só tivesse saído aos 20 minutos, não sei se seria a mesma coisa.

Fabiano fez o segundo, e tiro o chapéu para ele. Não o considero um grande jogador, não é um dos melhores atacantes brasileiros da atualidade, mas bem ou mal é ele quem tem feito gols decisivos para a Seleção de Dunga. Tem estrela, está vivendo o momento certo no lugar certo, e quando isso acontece, meu amigo, melhor deixar dez ronaldos no banco. Jogador que está dando certo é titular absoluto.

Lúcio fez o gol da vitória na única bola cruzada pelo alto que resultou numa cabeçada rumo ao gol. No segundo tempo, o Brasil não foi tecnicamente brilhante mas fez o que todo time grande tem obrigação de fazer quando decide um título com um adversário mais fraco: ir para cima, se impor, martelar, pressionar, jogar com autoridade, aplicação, e, principalmente, ousadia. Ah, se já estivéssemos em 2010! Mas daqui a um ano muita coisa pode mudar.

1967) Antonio Cândido e as frivolidades literárias (28.6.2009)





(Antonio Cândido)

Jornalistas gostam de elaborar listas dos “Dez Melhores do Ano”, construir tabelas comparativas, item por item, entre dois tipos sociais (“O Carioca x O Paulista”, “O Conectado x O Gutemberguiano”) ou fazer pequenos testes de trivialidades: Em que filme de Hitchcock ele aparece através de uma porta envidraçada? Qual o diretor famoso que faz uma ponta em Contatos Imediatos? Qual o livro de poemas que Anna Karina está lendo em Alphaville?

Uma função dessas brincadeiras é serem brincadeiras mesmo, atividades sem utilidade prática realizadas num contexto de pouca tensão. 

Outra envolve um certo exibicionismo: quer apostar que eu sou mais bem informado do que você, conheço mais detalhes sobre algo que nós dois apreciamos? 

Outra envolve esse fetichismo inocente de quem sente prazer em extrair, de uma obra que lhe dá prazer, a derradeira gota de significado ou de informação, por mais irrelevante que seja.

Em seu livro O Albatroz e o Chinês, num ensaio intitulado “Dos livros às pessoas”, Antonio Cândido faz uma comparação entre as personalidades e os estilos de Machado de Assis e Eça de Queiroz, e relembra seus tempos de estudante e jovem intelectual, num ambiente – princípio do século XX – que comparado ao mundo de hoje é de uma notável sobriedade. Ainda assim essas atividades um tanto frívolas não eram estranhas aos leitores da época. Diz Cândido:

“Machado era menos lido, menos conhecido e menos estimado. Sobretudo, menos incorporado aos hábitos mentais. De fato, muitos sabiam de cor trechos dos livros de Eça e os seus personagens eram comentados como gente viva. No ginásio e na universidade fazíamos estes testes divertidos de conhecimento, como: 

"Quem, e em que romance, é visto com seus bigodes louros no fundo de uma frisa? Qual o personagem cujo alfinete de gravata é um macaco comendo uma pera? Qual a cor da gravata de André Cavaleiro quando jantou pela primeira vez na casa dos Barrolos? Que autor Jorge está lendo no começo d’O Primo Basílio? 

"Machado nunca teve esse tipo de popularidade, por ser menos pitoresco e menos aberto, o que não quer dizer que seja maior ou menor. É uma questão de naturezas literárias diferentes que tornam difícil a avaliação comparativa, como também nos casos de Stendhal e Balzac, Dostoiévski e Tolstoi, Proust e Joyce”.

Esta pequena rememoração dá um perfil curioso da época da juventude de Cândido. Vê-se que os romances de Eça não apenas eram lidos em grupo – ou seja, todo mundo lia os mesmos livros no mesmo tempo – mas eram relidos, quase que decorados, a ponto de ser possível fazer perguntas com esse grau de minúcia, pois se alguém as fazia era porque sabia a resposta, e porque confiava que algum outro leitor as saberia também. 

Uma brincadeira inconsequente que hoje em dia se repete no âmbito de livros como os da série Harry Potter ou O Senhor dos Anéis. Literaturas que despertam o impulso lúdico e afetivo, tanto quanto o intelectual e analítico.





terça-feira, 27 de abril de 2010

1966) Contracapa de email (27.6.2009)



& um dragão de papel que bota fogo pela boca & se um historiador do século 22 nos visitasse só faria perguntas que acharíamos idiotas & o futebol suíço é ruim daquele jeito porque lá é falta de educação pisar na grama & acordo com 90 anos e vou rejuvenescendo ao longo do dia & você só levanta um muro bom se der um nome e uma biografia a cada tijolo & um condomínio com grades em vez de paredes e pisos & com aquela cara de pária que foi parar em Paris & a tapioca ainda será a nossa pizza & um astronauta aborígine levando no capacete a gravura de um animal totêmico & assim era Penélope, bordadeira de dia, tesoureira de noite & tão banal como o som de fogos de artifício & um dia os bares serão ocupados apenas pelas estátuas em homenagem aos famosos que os frequentaram & ali, se um médico esquecer o bisturi dentro da paciente ele a denuncia por furto & a pata de uma ave guardada num bolo de aniversário & é melhor se arrastar ladeira acima do que rolar ladeira abaixo & um teclado eletrônico de vogais e consoantes & um escultor de sobremesas trocando idéias com um caçador de aviões submersos & um profeta é alguém que está olhando para o alto de um prédio e diz que daí a pouco vai aparecer algo na calçada & uma mulher com know-how de profissional e coração de amadora & a arte de pentear cometas & um daqueles coronéis que só são derrotados pelas coronárias & deviam inventar um telefone cujo toque sugerisse boas notícias & daqui a cem anos a América do Norte será habitada por um bilhão de chineses falando inglês estropiado & ele se dedica a fazer a volta ao mundo em bicicleta ergométrica & uma mulher vestida apenas com a minha fantasia & é mais fácil adquirir um produto do que ter uma idéia & quem nunca construiu uma casa popular que coloque a primeira pedra & literatura é fazer gol de placa num treino com estádio vazio & uma ampulheta e uma clepsidra usam cadências diferentes para marcar o mesmo tempo & a peleja da pirâmide com a floresta & é mais simples teorizar a prática do que praticar a teoria & botaram a Mona Lisa de bigodes no lugar da verdadeira e se alguém reparou não teve coragem de comentar & uma estátua nadando de olhos fechados & pássaro com asas de páginas & um mágico que só soubesse fazer aquilo de verdade, e fosse incapaz de fazer o truque & um CD-pentimento que a cada audição tocasse músicas mais antigas & um filme projetado nas pás de um ventilador & a banda tocando dentro do elevador de serviço e a platéia subindo correndo as escadas & depois da meia-noite, de cem em cem metros naquela avenida se desce um degrau na pirâmide sociológica & minha vida é meus baratos & quem será que vai morrer hoje? & até as pedras se encontram e até as águas se apartam & uma xícara cheia no fundo do mar & lençóis de mármore, almofadas de granito e o sono feliz da eternidade & viajar mil quilômetros, beijar teus pés e voltar &

1965) As redundâncias no português (26.6.2009)




Circula pela Internet uma lista de expressões em português que, segundo os missivistas, devem ser evitadas, pois são redundâncias tipo “subir para cima”, “entrar para dentro”, etc.

A lista é muito útil para redatores em formação, estudantes de jornalismo, etc. Algumas expressões são indiscutivelmente bobas. É o caso de se dizer: “duas metades iguais”, “anexo junto à carta”, “superávit positivo”, “planejar antecipadamente”, e outras.

Por que falamos assim? Na grande maioria dos casos é por mero reforço, confirmação, até incorrermos no tal do “pleonasmo”, palavra que parece significar uma doença do pulmão mas na verdade indica uma deformação, por exagero, do discurso verbal.

Um lembrete: “discurso verbal” não é redundância, é para lembrar que estamos nos referindo a qualquer expressão por meio de palavras. Serve para evitar confusão com outra acepção da palavra “discurso” que tem muito mais uso em nossa língua: o discurso político, eleitoral, etc.: “O senador fez um discurso descoordenado e trôpego, tentando defender-se das acusações”.

Voltando aos exemplos acima. Por que usamos esses reforços? Acho que é porque não temos certeza do significado de uma das palavras que usamos e precisamos colocar ao lado dela outra palavra com o mesmo sentido, para evitar dúvidas. (Ou então sabemos, mas temos receio de que nosso interlocutor não saiba.)

“Estou enviando os comprovantes anexos junto a esta carta...” Quem nos garante que o cidadão lá do outro lado, que não conhecemos, sabe o que quer dizer “anexo”? A presença do “junto” é um pequeno ato de tradução, produzindo uma espécie de discurso bilingue dentro do próprio idioma.

O mesmo vale para “superávit positivo” ou “déficit negativo”, embora neste último caso o idioma já tenha disseminado melhor o termo, com adjetivos como “deficitário”, etc.

Algumas formas criticadas me parecem defensáveis. Consta da lista a expressão “exceder em muito”, que para mim faz sentido. Uma medida ou contagem qualquer pode exceder um limite por muito pouco, ou por muito. A distinção é válida. “Não posso lhe dar um cheque de mil reais, isto excede em muito o meu saldo, que é de 150 reais”. É diferente de: “...isto excede o meu saldo, que é de 980 reais”. Quando algo apenas excede, basta um pequeno ajuste. Quando excede “em muito”, não tem solução.

O mesmo se dá com “fato real”, apontado como redundância. Pode ser excesso de sutileza de minha parte, mas eu preciso desse termo como contraposição a “fato fictício”. O primeiro aconteceu de fato; o segundo é algo que alguém supõe ter ocorrido mas o autor do discurso verbal questiona.

O naufrágio do Titanic é um fato real, e esta expressão o distingue de fatos fictícios como a queda de uma espaçonave alienígena em Roswell, EUA (que para mim não ocorreu), o assassinato de Napoleão (que imagino ter morrido de morte natural) ou o afundamento da Atlântida (que suponho nunca ter acontecido, pois ela não existiu).





1964) Twitterando (25.6.2009)



Me preveniram que é um máximo de 140 caracteres, mas não disseram se é com ou sem espaços, o que é uma grave lacuna em internetês. Mesmo assim, creio que essa limitação estilística não passa de uma “contrainte” para despertar nossa esperteza e precisão. O carvão comprimido numa super-prensa esmigalha-se sobre si mesmo e produz densas moléculas de diamante. Algo semelhante ocorre à linguagem quando comprime seus leques de significado num bloco compacto, auto-suficiente, completo em si mesmo. O Twitter foi inventado para dar aos fãs de alguém um flash eloquente, instantâneo, do que aquela pessoa está fazendo neste momento.

“Ora,”, direis, “mas a essência do Twitter é o acompanhamento, o toque que se recebe e nos dá a pista sobre os passos da pessoa”. Ou seja: é a interatividade que conta, o rastreamento, a possibilidade de fotografar à vida alheia como num Big Brother à distância. Mas – agora sou eu quem diz – de nada adiantaria isso se a gente não soubesse comprimir o essencial no obrigatório, o Todo numa fôrma. Produzir a frase exata no tamanho certo é arte do sonetista, do poeta do hai-kai, do telegrafista,do publicitário, do redator de manchetes. A veiculação, embora importante, foge à esfera do fato criador em si, pertence, se é mesmo o caso, à “estética da recepção”.

Há outras sutilezas a considerar. Quando falamos de um limite, falamos de um máximo. Um limite não atrai, apenas bloqueia. Se dizemos um máximo de 140 caracteres, não significa que cada trecho deva se esforçar para atingir esta marca. Trata-se de uma opção estética. Ritmo também conta. E ritmo se cria jogando com extensões, dosando repetições, variando intervalos. É como beber água: o copo estabelece um limite de volume, mas o que servimos e bebemos varia de acordo com nossa sede.

E, convenhamos, 140 caracteres dá pra dizer um monte de coisas. Grandes citações literárias cabem nesse limite aparentemente exíguo. Quem o estabeleceu provavelmente estava pensando numa relação com bytes de memória, mas não importa. O limite encontrado é um copo cuja água pode matar variadas sedes. “Mundo, mundo, vasto mundo... Se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução.” “A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, e significando nada”. “Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. “Eu canto porque o instante existe, e a minha vida está completa. Não sou alegre nem triste; sou poeta”. “O poeta é um fingidor; finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”.

O Twitter pode servir como uma agenda em movimento, um rastreamento do cotidiano. Mas nessa dimensão escolhida pelos programadores cabem grandes verdades, grandes momentos de poesia ou de filosofia popular. É como um buraco de fechadura deste tamanhinho, pelo qual a vista pode alcançar o mundo inteiro.

1963) “Budapeste”(24.6.2009)



O filme Budapeste, de Walter Carvalho, tem sido elogiado como a mais bem cuidada adaptação dos romances de Chico Buarque. Vi o filme sem ter lido o livro, o que hoje em dia considero a melhor maneira de ver. Quando já conhecemos a obra literária, na verdade não vemos o filme. Passamos a projeção inteira fazendo comparações, satisfazendo (ou frustrando) expectativas, e assinalando itens numa lista imaginária: “Isto apareceu... isso não apareceu... aquilo apareceu mas está mal feito...” Duvido muito que a maioria das obras resista a um escrutínio dessa natureza. Mesmo que seja elogiada e aprovada, não foi vista de fato – ficou submetida a uma relação triangular em que suas soluções estéticas nunca foram aferidas pelo que realmente são, mas pelo que parecem ser quando comparadas às soluções estéticas do livro.

O filme Budapeste é uma homenagem apaixonada à palavra, feito de imagens belíssimas. Pode ser que o livro de Chico seja um romance de frases muito belas, feito para louvar a palavra. Esse louvor irrestrito, apaixonado, deleitoso, está presente no filme impregnando a história de um “ghost-writer”. José Costa (Leonardo Medeiros) ganha a vida escrevendo livros para que outras pessoas os assinem e fiquem famosas por causa daquelas histórias e daquelas frases que não são suas. Toda a história se estrutura nesse jogo de dualidades: rosto-máscara, português-húngaro, frente-costas, cima-baixo, original-cópia... Um conceito básico reproduzido nestas e em outras variantes, de tal modo que a narrativa ganha uma imensa continuidade e consistência, sem se repetir. Tudo ali tem duas faces, dois lados, dois sentidos.

O filme tem um detalhe impressionante que transcende o livro. Vagueando por Budapeste, o ghost-writer vai parar na frente do Monumento ao Escritor Desconhecido, elogiado em francês por um guia para um grupo de turistas. Isto não aparece no livro: Chico Buarque, que jamais fôra a Budapeste antes de escrever o livro, afirma que desconhecia a existência dessa estátua na época em que escreveu. Para mim, é coincidência demais. Imagino que Chico, que tem uma cara danada de quem gosta de ler almanaques de cultura inútil, leu sobre essa estátua quando tinha 15 anos, e na hora de escrever o romance uma voz segredou-lhe que ghost-writer e Budapeste tinham tudo a ver. Não acredito em coincidências. Acredito que consciência e memória são diferentes coisas.

Como filme (deixemos de lado o texto original), Budapeste se sustenta pelo exame distanciado desse personagem dilacerado por contradições. Escreve muito bem (“seus” livros fazem sucesso) mas não consegue ser autor. Vive com mulheres deslumbrantes e é infeliz no amor. Foge do Rio de Janeiro e se mistura aos húngaros, que se auto-denominam “os cariocas da Europa”. Joga a própria vida fora e recupera apenas fragmentos dela ao dizer palavras como marimbondo, energúmena, adstringência.

1962) O tira-teima eletrônico (23.6.2009)



Jogos recentes pela Copa das Confederações tiveram lances importantes decididos pela arbitragem com a ajuda de elementos de fora do campo. No jogo Brasil 4x3 Egito, o último gol do Brasil surgiu de um pênalte que o juiz não viu, mas marcou, com atraso, depois de alertado pelo ponto eletrônico. O uso deste intercomunicador permite ao juiz dialogar com os bandeirinhas (ou, para usar a terminologia atual, permite ao árbitro dialogar com os auxiliares), o que a meu ver ajuda muito a corrigir possíveis distrações, equívocos, etc. Afinal, se o bandeirinha usa seu instrumento para assinalar uma infração, por que não pode usar um microfone para explicar o que foi?

Foi o que ocorreu no jogo Brasil 3x0 EUA, quando uma falta violenta de um jogador norte-americano nem sequer foi marcada pelo árbitro, que na sequência do lance, contudo, expulsou o faltoso. Ele foi claramente avisado pelo bandeirinha; inclusive, depois da expulsão, foi até lá e os dois trocaram umas palavras rápidas. Quanto a isto, tudo bem. O que mais se questiona, no entanto, é que no caso do pênalte cometido pelo jogador egípcio não foi sequer o bandeirinha quem o viu: foi o “quarto árbitro”, que recorreu ao replay da televisão. E aí começou a polêmica.

O presidente da Fifa, Joseph Blatter, já afirmou mais de uma vez que se recusa a permitir que a TV seja utilizada para orientar o árbitro. Diz ele que isso acabaria com a graça do futebol, que depende em grande parte de decisões quase instantâneas tomadas pelo juiz, as quais podem ser equivocadas, porque afinal ele não pode ver tudo, interpretar corretamente tudo. O futebol tem, assim, um componente imponderável, imprevisível, sujeito a erros, o que seria característico do esporte. Introduzir “tira-teimas” com TV iria amarrar o jogo, fazendo com que a cada instante o time que se sentisse prejudicado com uma marcação interrompesse o jogo para exigir verificação eletrônica.

Pode até ser, mas não acho que isso interrompesse ou tumultuasse um jogo mais do que já acontece quanto o juiz comete um erro claro, ou quando um lance é de difícil interpretação. Ou – o que é cada vez mais frequente – quando os jogadores tumultuam por tumultuar mesmo, porque querem ganhar as marcações na marra, no grito, na intimidação.

O basquete, por exemplo, tem a lateral da quadra ocupada por uma equipe de cronometristas, anotadores de faltas, etc., todos auxiliando o juiz principal em suas marcações. O futebol só teria a ganhar com isto. O único perigo que corremos é que a coisa desande, e cheguemos um dia a ter um futebol decidido não por gols, mas pela avaliação de juízes em mesas ao lado do campo (ou cabine blindada!). O número de gols marcados seria tão irrelevante quanto o número de escanteios. O júri iria anotando as estatísticas (posse de bola, passes certos, etc.) em pranchetas, e no fim daria seus votos, como nas lutas de boxe. Mas, enquanto isto não chega, seja bem vindo o tira-teima eletrônico.

1961) Uma Instalação: o Arco-Íris (21.6.2009)




"Listar as obras da optical art ou da chromo-art influenciadas por este clássico da instalação conceitual seria uma tarefa exaustiva. O uso de fenômenos ópticos para produzir efeitos estéticos tem uma longa tradição, e a instalação (de âmbito planetário) conhecida como Arco-Íris tem sido apontada por historiadores da Arte como matriz de muitas tendências atuais.

"O artista (anônimo) soube se cercar de precauções para garantir que haveria em sua obra um grau acentuado de (im)previsibilidade. De fato, todos sabemos em que circunstâncias será mais provável o avistamento de um Arco-Íris; mas nunca sabemos o momento exato em que ocorrerá, nem em que ponto deveremos nos postar por antecipação, na expectativa de vê-lo. 

"Esta hesitação entre o certo e o incerto traz uma imprevisibilidade quântica à Instalação. Faz-nos retroagir à descoberta da decomposição da luz solar através do prisma, por Isaac Newton. Leva-nos em seguida a refletir sobre o conflito entre a teoria corpuscular da Luz e a teoria ondulatória. E no espaço de alguns segundos, através daquela refração colorida, o que se desdobra aos nossos olhos, mais do que um simples leque de vibrações coloridas, é a rarefação do conceito de matéria e energia ao longo dos últimos 500 anos.

"O artista também preparou um cuidadoso “mix” de mídias que nos remete também à tradição grega dos Quatro Elementos. Fogo: o sol. Ar: o espaço onde a Instalação se projeta. Água: as gotículas de chuva que agem como prisma. Terra: o posto de observação de onde a Obra é fruída. 

"Esta tendência de aproveitar o material em-bruto da própria Natureza demonstra a crescente integração entre a Arte Contemporânea e o mundo físico, calando os protestos daqueles para quem a Arte de hoje seria fechada em si mesma, inacessível às massas.

"E não há como negar a habilidade do artista ao fazer diante dos nossos olhos um verdadeiro malabarismo conceitual entre contemplação versus interatividade, experiência coletiva versus experiência única. Amparada pelas descobertas científicas no campo de Óptica, a crítica mundial já fez correr muita tinta em torno da ambiguidade da experiência do Arco-Íris. 

"Coletivismo: no instante da produção de um Arco-Íris no espaço, centenas, talvez milhares de pessoas, agrupadas, podem afirmar que estão diante de um mesmo fenômeno, que se dá em coordenadas precisas do Espaço e do Tempo. Trata-se de uma fruição coletiva semelhante à de um filme, uma peça de teatro, um espetáculo musical. 

"Por outro lado, sabemos que quem define a visão do Arco-Íris é o ângulo preciso de onde cada observador individual percebe a Obra. A luz refratada na umidade do ar incide de forma única e irrepetível em cada par de retinas. O Arco-Íris de um não é (cientificamente falando) o mesmo Arco-Íris avistado por cada um de seus vizinhos mais próximos. 

"Tendências da Estética contemporânea: interatividade, unicidade da experiência. Obra personalizada, múltipla e única."  





segunda-feira, 26 de abril de 2010

1960) Como um tatu age (20.6.2009)



Um amigo meu, que tem o cacoete mental dos trocadilhos infames, explicou-me que a palavra “tatuagem” tem sua origem etimológica no fato de que as agulhas motorizadas dos tatuadores agem na nossa pele como se fossem um tatu, cavando, rasgando, destruindo. Ver esses ornatos epidérmicos me produz admiração e calafrios. Mesmo quando o resultado é bonito (e muitas vezes é tenebroso) imagino o sofrimento que exigiu, e o caráter irremediável da mudança. Sobre este último aspecto, procurem no meu blog (http://mundofantasmo.blogspot.com) a crônica “Pikachu Metallica”.

Usar o próprio corpo como superfície para obras de arte visual é uma tradição antiga, mas a sociedade moderna acelerou muito este processo nos últimos vinte anos. É impressionante a quantidade de gente se desenhando por aí. Isto tem dado ao Brasil de hoje um ar de ficção científica, porque a FC usou com frequência esse recurso ao imaginar mundos futuros. Até parece que os escritores de FC percebiam uma espécie de demanda reprimida no que diz respeito a modificações do corpo, e projetavam em seus escritos esse imaginário que acabou surgindo mais cedo do que eles próprios supunham.

A tecnologia do futuro próximo pode ajudar a propagar esse hábito. Pessoas que, como eu, recuam diante da irreversibilidade de uma tatuagem poderão ter alternativas. Seria possível recolher amostrar do DNA de um sujeito e produzir, em laboratório, “emplastros” de pele idêntica à dele, que poderiam ser implantados em qualquer local do corpo, e com qualquer extensão, sem sofrerem a rejeição que se dá com órgãos transplantados. Acredito que a genética de hoje permite isto, e a pesquisa de células-tronco pode tornar mais fácil e mais barata a produção desses “excedentes epidérmicos”. Colados sobre a pele original, seriam eles a superfície a receber a tatuagem. Se anos depois o cara mudasse de idéia, era só extirpar a pele implantada e restaurar a anterior.

No clássico Neuromancer, de 1984, William Gibson diz: “Com as mãos nos bolsos do casaco, Case olhou, através do vidro, para um losango achatado de pele produzida em laboratório que jazia sobre um pedestal de imitação de jade. A cor de sua pele trouxe a sua memória a pele das prostitutas de Zona; ela estava tatuada como uma imagem digital luminosa, conectada a um chip subcutâneo. Ele pensou: é mesmo, para que se dar o trabalho de uma cirurgia, quando a gente pode levar qualquer tatuagem no bolso?”

Recursos tecnológicos para produzir isto provavelmente já existem. O que não existe ainda é demanda da moda e investimento logístico. No dia em que pessoas começarem a chegar nas festas com tatuagens luminosas sobre (ou sob) a pele, e cada dia chegarem com uma tatuagem diferente, todo mundo vai querer uma igual. Daí a pouco surgirão festas black-out em que o ambiente da buate será iluminado apenas pelos “displays” multicores das tatuagens da galera que está dançando. Esperem, e verão.

1959) O gênio e o caos (19.6.2009)




Leonardo da Vinci é considerado um gênio por causa de suas pinturas e de suas descobertas científicas e tecnológicas. E no entanto isto representa uma fração ínfima do que ele fez em vida. 

Leonardo encheu de anotações centenas de caderninhos que ele mesmo fabricava e levava consigo para toda parte. A tradução e publicação desse material tem sido um passatempo de pesquisadores, há séculos. 

Leonardo produziu uma dúzia de obras de grande porte e milhares de pequenos fragmentos, anotações, lembretes, começos de obras que nunca eram concluídas. Foi chamado “o rei da procrastinação”, da arte de interromper uma tarefa urgente para se dedicar a uma trivialidade qualquer, uma atividade sem importância.

Num ensaio famoso a seu respeito, “Leonardo da Vinci e uma Recordação da Infância”, Freud analisou essa fragmentação da atenção intelectual de Leonardo, relacionando-a com traumas de infância, a ausência do pai, fixação erótica na mãe, etc. 

A análise de Freud é brilhante e pesquisadíssima (ele dá sempre a impressão de ter lido tudo sobre o assunto). Mas um artigo recente de W. A. Pannapacker (em: http://tinyurl.com/dmj74r) sugere que, independentemente de sua origem, a procrastinação e o gênio de Leonardo eram uma e a mesma coisa. 

Para ele, “a mediocridade produtiva requer um tipo banal de disciplina, porque é segura e não ameaça ninguém”. E essa mediocridade é o contrário do que chamamos “gênio”. 

Ser medíocre é ser capaz de executar, no tempo adequado, tarefas banais. “Mas o gênio”, diz ele, “é descontrolado e incontrolável. Não se produz uma obra de gênio de acordo com um cronograma ou um projeto. Como Leonardo bem sabia, as obras de gênio surgem através de inspirações aleatórias que resultam de combinações imprevistas”.

A definição é brilhante porque mostra o terreno perigoso onde caminha o gênio. A mediocridade acerta em 99% dos casos. O gênio tem a probabilidade de errar numa proporção semelhante. 

O gênio é sempre um risco, porque é uma entrega ao caos criativo, ao improviso, ao imprevisto, ao descontrole. É quase certo que dê com os burros nágua. Quando, por uma feliz combinação de circunstâncias, tudo se encaixa satisfatoriamente, temos a “Mona Lisa” ou a “Última Ceia”. 

O gênio não elimina a necessidade de preparação, trabalho árduo, estudo. Mas tudo isso é voltado numa direção imprevisível, geralmente (no caso da criação artística e da descoberta científica) tomando caminhos por onde ninguém se aventurou antes.

Diz Pannapacker: 

"A vida acadêmica está cheia de gênios em potencial que nunca realizaram o que queriam porque havia muitas coisas a fazer primeiro: projetos de pesquisa, preparação de conferências, livros, artigos... Nada disto foi livremente escolhido. (...) A procrastinação revela as coisas para as quais temos um verdadeiro dom. Ela nos arrasta para as coisas que, de fato, queríamos fazer”.





1958) É permitido proibir (18.6.2009)



Houve um tempo em que nas revistas masculinas as fotos de mulheres nuas só podiam mostrar um mamilo. Se fossem dois, a foto seria proibida. Socorro-me dos psicanalistas: por que um mamilo não é pornográfico, e dois o são? Proibições muitas vezes acabam chamando atenção para o que tentam proibir. O filme Laranja Mecânica esperou anos para ser liberado no Brasil, e quando o foi teve suas cenas de nu acompanhadas por bolinhas pretas ocultando as imagens de “genitália desnuda” que havia no filme. Esta invenção surreal dos censores brasileiros levou muita gente ao cinema só para dar risada, e foi objeto de comentários irônicos em outros países. A cena em que Alex e seus “drugues” arrancam as roupas de uma mulher para estuprá-la – com a vítima nua, correndo atarantada de um lado para o outro – era uma gargalhada só, todo mundo histérico diante do nervosismo da bolinha preta que pulava de fotograma em fotograma, tentando cobrir as partes pudendas da coadjuvante.

São proibições supérfluas, meramente pró-forma, como aquelas estreitas faixas pretas que cobrem os olhos dos “di-menor” nas matérias policiais. Em tese, isto é feito para preservar sua identidade; mas se eu visse qualquer conhecido meu “protegido” por um barramento tão exíguo ninguém me impediria de reconhecê-lo. É como dizer: “O acusado do crime é o menor J.C.F.S., que mora na Rua Rio Azul, número 42, no bairro da Bela Vista”. Belo modo de proteger a identidade de alguém.

A melhor maneira de burlar censuras e proibições é omitir a palavra proibida, mas revelá-la pelo contexto. Como na piada do português, dono de bar, que proibiu que se contassem piadas de português no seu boteco. No dia seguinte, um dos engraçadinhos começou a contar assim: “Era uma vez dois japoneses, um se chamava Manuel, o outro Joaquim...” Artistas fazem isso desde que a censura foi inventada.

A história da Censura no Brasil está cheia de episódios pitorescos, muitos deles ridicularizando a ignorância e a truculência dos censores, como aqueles que queriam mandar prender “um tal de Sófocles” autor de uma peça proibida. Mas talvez a Censura às artes seja o setor em que fica mais claro uma característica das ditaduras que é o modo aleatório como ela se manifesta. Mesmo que adotando métodos aparentemente profissionais e técnicos (torturadores treinados em academias de tortura norte-americanas, etc.) a ditadura é um processo que acontece às cegas, no varejo. Ordens genéricas são baixadas para que seja proibida toda expressão de idéias marxistas-leninistas. Como poucos executantes dessas ordens têm idéia do que seja isto, acabam proibindo e perseguindo às cegas, às tontas, e desse modo não apenas os culpados, mas também os inocentes correm riscos. Foi esse aspecto desinformado e “perdidão” dos próprios perseguidores que Kafka soube captar. Um não sabe por que está sendo preso, e o outro não sabe por que está prendendo.

1957) Os anjos pornográficos (17.6.2009)



Qualquer estudo sobre as relações entre o machismo, a literatura de folhetim e o cristianismo não pode deixar de incluir Nelson Rodrigues e Luís Buñuel como personagens. (Não seriam os únicos, claro – como deixar de fora Rubem Fonseca, Adelino Moreira, Pedro Almodóvar, Carlos Zéfiro, Dalton Trevisan, etc.?) O teatro de um e o cinema do outro são herdeiros do teatro de melodrama e do folhetim do século 19, cuja mentalidade absorveram na infância. Desinformação, tabus, voyeurismo, culpa, pecado... e um desejo sexual maciço, que, segundo Don Luís, não podia ser comparado com nada neste mundo.

Nelson Rodrigues via na arte uma função purificadora: “o personagem é vil para que não o sejamos”. Dizia que as mulheres honestas viam a adúltera no palco e descarregavam através dela suas tentações; era o que bastava para que se mantivessem fidelíssimas. Seu teatro tem a duplicidade permanente que permeia a obra de tantos moralistas: descrevem o pecado com minúcias, e no fim elogiam a virtude.

Coisa parecida ocorre com o cinema de Buñuel, que compartilhava com Nelson a maldição de ter nascido no interior de uma cultura católica, repressiva, em que o sexo era carregado de culpa. Buñuel dizia não gostar dos filmes modernos (dos anos 1960) em que as pessoas tiravam a roupa e copulavam na tela. Isto o desagradava – mas não o impedia de realizar filmes cheios de perversões e depravações contadas indiretamente, como Viridiana ou A bela da tarde.

O sexo, nessas circunstâncias, tem o mesmo poder liberador da blasfêmia. Quando é permitida, a satisfação do desejo sexual é como uma brisa agradável que acaricia, trazendo um misto de alegria e paz. Reprimida, tem a força do ar comprimido capaz de disparar uma bala; ou de um furacão que esperou anos para tirar aquela cidade do meio do seu caminho. A obra desses autores frutos da cultura cristã (mesmo quando se afirmam ateus) é a ponta do iceberg celibatário de homossexualismo e pedofilia em seminários, mosteiros e conventos. O ascetismo é possível, é belo e nobre. Mas aqui pra nós, não é pra todo mundo. Requer uma chama límpida e fria, quase divina, e nós somos (para o bem e para o mal) humanos e “calientes”.

Reprimidos, angustiados e cheios de conflitos, nem Don Luís nem Nelson viveriam em paz no mundo de hoje. A superabundância de bundas na TV e nas capas de revistas os chocaria. Tarados até a medula, eram do tipo para quem o excesso de nudez física é um entrave à fantasia mental. O que os excitava não era propriamente tocar a carne feminina, mas, de certo modo, possuir a mente da parceira, dobrá-la aos seus desejos, arrastá-la ao pecado conjunto. Como no velho bolero cantado por Dalva de Oliveira (“Querido!... / Eu tenho um pecado novo / e quero pecar contigo...”), seu desejo era o de ser seduzido e de seduzir, o de pecar e arrastar para o pecado, o de raptar uma parceira e conduzi-la de volta ao Jardim da Serpente.