quinta-feira, 25 de março de 2010

1825) A paz da descrença (14.1.2009)



(ilustração: Millôr Fernandes)

Numa entrevista ao programa Encontro Marcado com as Artes, Millôr Fernandes rememora um episódio crucial de sua infância. Tendo perdido o pai aos cinco anos, ele perdeu a mãe aos dez, e foi morar na casa de um tio. O dia do enterro da mãe foi um dia meio confuso em que ele não teve muita noção do que estava acontecendo. Quando tudo acabou, de volta à casa do tio, ele ficou sozinho no quarto que lhe destinaram. A casa tinha um piso de tábuas corridas, e o piso tinha sido lavado naquele dia. Embaixo da cama havia uma esteira, e o piso estava ainda fresco e úmido, naquele dia de calor. “Fui para baixo da cama,” diz ele, “deitei na esteira e chorei até me acabar. Ninguém viu. Chorei até não poder mais. Depois que acabei, baixou sobre mim uma paz muito estranha, que só posso definir como a paz da descrença. Eu percebi que existia eu, existia o destino, e nada mais. Nenhum intermediário. Nenhuma interface.”

Este episódio lança uma pequena pista sobre a complexa personalidade de Millôr Fernandes, que tem sido por mais de cinco décadas, à distância e à revelia, um dos meus professores de agosticismo. Tive a sorte de não ter passado por uma perda semelhante à dele, de forma que minha relativa descrença se teceu com outras fibras. Millôr é um cético e frequentemente um cínico, pela sua visão irreverente das nossas limitações morais. É um cinismo, contudo, que critica a humanidade em nome de um humanismo. Não é o cinismo ególatra e “blasé” de um certo pessoal de hoje em dia, que escarnece de todas as ideologias, de todas as crenças, de todos os valores, mas preserva cuidadosamente a própria vaidade e os próprios interesses. Millor diz, na entrevista: “A maior qualidade humana não é a inteligência nem a competência técnica, é a bondade. Se estou na minha janela e vejo um acidente lá embaixo na rua, às vezes, por alguma razão, não posso descer para ajudar, mas vejo que duas ou três pessoas descem. Isso me dá fé na humanidade”.

A descrença em divindades sobrenaturais é, para alguns, uma fonte perpétua de desespero, negação de tudo, revolta surda e irritada contra a vida. Para outras pessoas, a descrença pode ser a força que leva cada indivíduo a extrair um humanismo de si mesmo, um humanismo por conta própria, não aprendido num manual ou numa Escritura Sagrada, mas como consequência das experiências de vida de cada um.

Millôr já se queixou muitas vezes de que não é considerado escritor porque nunca escreveu um romance. O que produziu – mesmo que filtrado, enxugado, reduzido ao essencial, ao não-circunstancial, ao que é realmente bom – somaria alguns milhares de páginas. (Sem falar no seu espantoso trabalho como artista gráfico.) Mas os manuais de Literatura Brasileira não lhe reservam mais que umas poucas linhas, enquanto dedicam páginas e mais páginas a algumas cavalgaduras diplomadas e pomposas que só produziram miolo-de-pote. Nossa descrença começa sempre em nossa própria casa.

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