sábado, 6 de março de 2010

1754) O umbral da cultura (24.10.2008)




(W. B. Yeats)

Acho que foi o poeta Yeats a dizer que, na Irlanda, no momento em que se cruzava o umbral da casa de um camponês deixava-se de estar na Europa. Ou seja: quando se estava no ambiente coletivo da rua e das praças estava-se na civilização contemporânea, européia. No interior da casa de cada um, contudo, predominava uma tradição milenar, antiqüíssima, dependente dos eixos verticais de ancestralidade e descendência, e não dos eixos horizontais de convivência social. 

É algo parecido com um tipo de comentário que já vi várias vezes sobre brasileiros que moram no exterior: “Quando a gente entra no apartamento deles, é mesmo que estar no Brasil!”

Dentro de suas casas, as pessoas são o que não lhes custa esforço. Seu estilo de vida ali serve como um cordão umbilical, ligado a um Passado que as alimenta, a um mundo no qual elas se livram da tensão contínua que nos exige a vivência numa terra estrangeira. 

Lá fora, tudo bem, somos todos civilizados, cosmopolitas, culturalmente flexíveis. Falamos a língua deles, usamos sua cultura, compartilhamos seus hábitos. Mas da porta pra dentro... me desculpem. Da porta pra dentro eu prefiro viver no conforto do meu Passado, nas minhas águas primordiais, na placenta cultural de onde, a bem da verdade, jamais saí.

O que me lembra uma frase de Sartre, ao comparar a cultura oral com a cultura escrita: “Falamos em nossa própria língua, mas escrevemos sempre numa língua estrangeira”. Não importa se a língua a que ele se refere é o mesmo francês, porque na verdade são dois “franceses” diferentes. O francês oral, cheio de sílabas ocultas, de elisões, de contrações; e o francês escrito, repleto de letras mudas, sinais diacríticos, sufixos que não se pronunciam e outros adornos rococós. 

Raymond Queneau, quando propôs um tanto quixotescamente uma reforma que criasse o “néo-français”, queria fundir esses dois idiomas.

Sartre queria dizer que a língua oral é aprendida afetivamente, no contato epidérmico do lar e da família; e a língua escrita, em geral, é aprendida na convivência formal da escola, na socialização forçada com “os Outros”. 

Ampliando-se esse ponto de vista para a cultura em geral, os camponeses de Yeats experimentam a mesma sensação. Ao sair à rua, estão na Grã-Bretanha, na Europa, no mundo exterior, no mundo alheio. Dentro de sua casa, estão num universo remotamente céltico, gaélico, sei lá o quê.

Quando os jagunços de Guimarães Rosa invadem um arruamento perdido nos confins do Sertão mineiro, encontram os “catrumanos”, indivíduos broncos e quase trogloditas, que lhes perguntam de onde vêm. E o eufórico Zé Bebelo responde, em cima da bucha: “Do Brasil!” 

O Brasil, ou seja, a civilização, o mundo dos Outros, ainda não tinha chegado àquelas brenhas inóspitas, àquele continente virgem. Rosa vê nesse Brasil uma evolução; talvez Yeats visse naquela Europa uma ameaça. Mas o fato é que o umbral existe, e o Modernismo, implacável, encurrala a Tradição, de fora para dentro.






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