sexta-feira, 5 de março de 2010

1749) A prosa coagulada (18.10.2008)



No Jornal Nacional, um repórter entrevistou um grupo de pessoas que ocupava irregularmente uma encosta de morro. Tinha havido um problema burocrático, e a Prefeitura os tinha autorizado a se instalar nessa área, condenada pela Defesa Civil por perigo de desabamento. Percebido o erro, a própria Prefeitura quis retirá-los, mas aí eles fincaram pé, naquela de “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. O repórter, sabendo do que ocorria, foi entrevistar o líder dos moradores, e perguntou; “Seu Fulano, quem foi que autorizou vocês a se instalarem aqui?” O cara olhou o logotipo da Globo no microfone, olhou para a câmara, pigarreou, passou a mão no cabelo e disse; “Bem, isso aí, principalmente, tem o mérito da questão de ser propriamente a Prefeitura, né?...” Ficou claro que a resposta que ele queria dar era: “Foi a Prefeitura”. Por que não disse logo?

Direi por quê. Porque ocasiões especiais requerem (ou parecem requerer) um vocabulário especial. Para o favelado em questão, a ocasião era especialíssima – quantos de vocês, caros leitores, já foram entrevistados pelo Jornal Nacional? Eu, do alto de todo o meu currículo, nunca fui. E se chegar a ser um dia (“Sr. Braulio, como é essa emoção de ser o primeiro brasileiro a receber o Prêmio Nobel de Literatura?”) vou ter que lembrar do presente artigo, para não pigarrear, passar a mão no cabelo e dizer algo como: “É uma situação dialeticamente contraditória, um verdadeiro oxímoro para quem sempre eludiu os spotlights da fama e cortejou o lusco-fusco do semi-anonimato...”

Ocasiões especiais, principalmente quando nos sentimos observados por gente superior a nós, nos pressionam a usar uma linguagem paletó-e-gravata. Mesmo quando não a temos em nosso armário. Vai daí que acabamos, na velocidade do improviso, usando roupagens verbais que não são nossas, palavras de corres berrantes e que não combinam, construções sintáticas cujo defunto-era-maior e que acabam transbordando de si mesmas.

Microfone é um bicho danado para produzir essas reações. Página impressa (para quem nunca publicou) é outra. O indivíduo já leu tanta xaropada em linguagem pomposa, empolada, cravejada de pretensão, que se sente no dever moral de reproduzi-la, porque acha que é esse o idioma que se usa na palavra impressa. O cacoete torna-se ainda mais catastrófico quando o indivíduo em questão convive com professores-doutores, acadêmicos, juristas, tecnocratas... Porque há pessoas que vivem da linguagem pomposa. Fazem dela as púrpuras e as sedas de sua superioridade intelectual, quando a possuem, ou a cortina de fumaça que os protege, quando não.

Vemos isto também em textos literários de adolescentes, os quais se dividem em dois grupos: os que querem destruir a linguagem, e os que querem reproduzi-la mimeticamente, repetindo cada chavão que leram e cada jargão com que entraram em contato. Terão que se deslastrar muito, jogar muita coisa fora, até encontrarem a própria voz.

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