quinta-feira, 4 de março de 2010

1741) Histórias entrelaçadas (9.10.2008)




Está sendo uma moda no cinema recente: filmes que contam várias histórias mais ou menos simultâneas, pulando de uma para outra, como se fosse um livro de contos onde os contos não são sucessivos, mas embaralhados. Robert Altman explorou de várias formas essa receita, chegando a tratar um livro de contos de Raymond Carver como se fosse uma história só, com personagens que se entrecruzavam (Short Cuts). O diretor-roteirista Paul Thomas Anderson fez o mesmo em Magnólia, só que num roteiro já concebido para ser desta forma (e com um final meio surrealista e apocalíptico que afeta todas as histórias contadas).

Um diretor que tem se especializado nessa forma de narrar é Alejandro González Iñarritu, autor (com o roteirista Guillermo Arriaga) de Amores brutos (2000), 21 Gramas (2003) e Babel (2006). Nos dois primeiros, acidentes de carro fazem com que as vidas de pessoas que não se conhecem acabem se cruzando e interferindo umas nas outras. No último, é um tiro casual de um garoto que fere uma turista e desencadeia uma série de fatos que modificam outras vidas.

Em 21 Gramas, o que chama mais a atenção é o fato de que o diretor e o roteirista escolheram não apenas entrelaçar três histórias, mas contá-las fora da ordem cronológica. Isto cria um verdadeiro quebra-cabeça que desorienta mas fascina o espectador durante toda a primeira metade do filme, até que aos poucos ele vai estabelecendo quem são as pessoas e em quais dos três núcleos narrativos elas se situam.

É uma experiência de afastamento radical entre a “fábula” e a “trama”, dois conceitos básicos de narrativa. A Fábula é a história que se fato aconteceu, os fatos em sua ordem cronológica. A Trama é o modo como o diretor escolhe contá-los. Parece simples mas não é. Fábula e Trama, por definição, jamais coincidem. Se queremos narrar uma história complexa do ponto de vista de um só personagem, na verdade não estaremos narrando os fatos como sucederam, e sim como este personagem tomou conhecimento deles. A trama, portanto, estará sendo criada através desse ponto de vista único. Se escolhemos contar através de vários personagens, ainda assim é preciso fazer uma interferência, um “recorte”, porque em cada momento que descrevemos o que se passa com A estaremos deixando de mostrar o que se passa com B e C. Toda Trama é um estilhaçamento e uma remontagem da Fábula.

Estas ousadias recentes, que interferem na tradição do roteiro cronológico, marcam um momento de necessária reeducação das platéias, acostumando-as a uma nova forma de narrar. Já foi tentado antes – basta pensar em Alain Resnais e Fellini. Mas a experiência atual não se dá no interior da vanguarda, dos “filmes de arte”, e sim de um cinema comercial tecnicamente competente e audaz o bastante para tentar quebrar expectativas, sobressaltar o público, exigir dele uma atenção a mais. São obras didáticas, não porque tragam uma “mensagem”, mas porque são filmes que nos ensinam a ver filmes.



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