quarta-feira, 31 de março de 2010

1853) Os bagunceiros e os arrumadinhos (15.2.2008)




Todo mundo ficou triste quando Edmilson e Flavinha se separaram. Eram um casal alegre, sempre de alto astral, tinham dezenas de amigos em comum, e pareciam se dar tão bem. Um ano de namoro os levou ao sétimo céu; seis meses de casamento os trouxeram sem paraquedas ao chão pedregoso da desilusão. 

E o pior é que se separaram jurando amor eterno um pelo outro. O que é ainda mais trágico do que quando os separantes desabafam coisa como “ainda bem que me livrei daquela mala sem alça” ou “felizmente percebi a roubada em que estava me metendo”. Não, nada disso. Edmilson, depois do décimo chope, confessava: “Nunca mais vou amar ninguém, só quero ela”. Flavinha pendurava-se ao telefone com as amigas: “Se ao menos ele cedesse um pouco! Um pouquinho só! Eu seria a mulher mais feliz do mundo!”.

Aos olhos dos amigos, os dois se sincronizavam sem esforço, como patinadores escandinavos deslizando no gelo. Todo o problema (vim a apurar) começava em casa. Fechada a porta e acesa a luz, começava o desespero, porque Edmilson era a ordem e a limpeza em pessoa, enquanto Flavinha tinha sido criada por pais meio ripongas e era aquariana (explicava: “nós não ligamos para os aspectos superficiais da realidade”). Do tipo que deixa um prato sujo em cima da TV durante uma semana, calcinhas jogadas pela casa, livros abertos onde quer que a leitura fosse interrompida. Seu conceito de arrumar a casa consistia em apanhar os objetos no chão (contas a pagar, casca de banana, saco plástico vazio) e colocá-los sobre o móvel mais próximo.

Edmilson não podia ver uma revista oblíqua em cima da mesa de centro, tinha que colocá-la em paralelo com as bordas. Beber água incluía o ato de lavar o copo, enxugá-lo e colocá-lo de volta no armário. Sua mesa de cabeceira tinha sempre a caixa de óculos para ver TV, o despertador digital, um vidro de pílulas e uma foto emoldurada de Flavinha. A mesa de cabeceira dela tinha revistas amassadas, frutas roídas pela metade, calcinhas, invólucros rasgados de preservativos, meias, e uma foto emoldurada de um ex-namorado, que ela planejava trocar um dia pela de Edmilson, porque adorava aquela moldura.

Descobriram uma das mais duras verdades da vida: amor não basta, e amor havia. Edmilson não podia vê-la sem sentir na garganta um nó de ternura. Flavinha via nele um arquétipo paternal, um ursinho de pelúcia e um garanhão que a deixava de pernas bambas. O problema é que cada um tinha a sensação de viver numa casa totalmente dominada pelo outro. Ele considerava aquele apartamento um pesadelo rabelaisiano, uma proliferação barroca e insensata de justaposições surrealistas, um pesadelo de Ionesco dirigido pelo Monty Python. Para Flavinha, ele representava a ditadura do Número, da Medida, da Ordem, da Disciplina, um delírio de Kafka administrado por economistas de Chicago e designers da Bauhaus. 

Era o amor entre uma ave e um peixe, em que ir viver no mundo do outro significa a morte.




1852) Incrementando o celular (14.2.2009)



O celular começou como telefone portátil, e já acomodou agenda, calculadora, câmara fotográfica... O passo seguinte foi compor e enviar mensagens de texto, acessar a internet, mandar e receber emails. Tem celular com lanterna pra gente se orientar no escuro, teclado para compor musiquinhas simples, vibrador... As possibilidades, como sempre, são infinitas. O celular acabou se tornando um bicho de estimação eletrônico, um tamagochi sem perfil zoomórfico, mas, em compensação, capaz de trocar uma idéia com a gente.

As pessoas têm com ele uma intimidade que talvez nunca tenham tido com acessórios mais antigos como um relógio ou um par de óculos. Talvez o cachimbo se assemelhe, visto que requer atenção e paciência do usuário, sempre a limpá-lo, esvaziá-lo, enchê-lo de novo. Com o banco-de-dados biográfico que conduz em si, o celular vira uma mistura de diário, agenda, porta-retratos...

Foi feito um estudo patrocinado pela Wi-Ex, empresa que trabalha (nos EUA) com equipamentos para intensificação do sinal de celular dentro de edifícios. Ela concluiu que 62% dos usuários que costumam fazer ligações a partir de casa fazem algo fora do comum para tentar melhorar a recepção do sinal. Isto está criando uma cultura gestual nova, que não existia antes do celular e que vai se impondo enquanto os padrões de recepção continuarem problemáticos.

Entre as técnicas empregadas pelos usuários, algumas têm finalidade óbvia. A Wi-Fix constatou comportamentos que qualquer um de nós reconhece: “esticar a cabeça num ângulo esquisito”, “debruçar-se na janela enquanto fala ao celular”, “ficar mexendo com o braço”... Tudo isto são coisas que eu mesmo faço quando o sinal está ruim dentro de casa.

Mas a criatividade humana é inesgotável, e as pessoas não temem nem o ridículo nem o absurdo. Uma usuária afirmou que costumava “subir para o primeiro andar” para ver se melhorava o sinal; outro disse que “subia num móvel, como um sofá ou uma cadeira”. Houve que preferisse “ficar imóvel” e quem optasse por “correr de um lado para outro”. Um entrevistado afirmou que “entrava num closet e deixava a luz apagada”, enquanto outro “ficava ao lado de objetos de metal”. Uma entrevistada confessou: “vou para o quarto da minha filha e fico segurando a correntinha que pende do ventilador de teto”. E outro disse: “fico movendo o celular até conseguir sinal, e já cheguei até a me inclinar para trás, naquela posição do filme Matrix, tentando manter o sinal”.

Toda essa doidice me lembra aquele tempo em que ficávamos mexendo na antena interna da TV, apontando-a de um lado para outro, pendurando bombril na ponta, etc. E as horas intermináveis com alguém gritando de cima do telhado: “Melhorou?” e as pessoas de baixo gritando de volta: “Assim! Não, volta! Mais um pouco! Do jeito que estava!” e as crianças roendo as unhas. Está para se inventar uma tecnologia que não tenha uma mistura de superstição, “simpatia” e magia corporal.

1851) A narrativa pré-moldada (13.2.2009)



Quando um tipo de narrativa é repetido ao longo de décadas, de séculos, algumas de suas partes começam a se cristalizar, a se tornar quase obrigatórias. O público as espera, e o narrador, que também é público, espera de si mesmo o ritual de repeti-las. Isto vale para gêneros formulaicos como o conto policial, de terror, etc. O leitor pouco afeito a esses gêneros queixa-se: “A fórmula é sempre a mesma! Quem lê um, leu todos”. Admite, no máximo, que há variações entre os textos. Sua descrição não difere muito da descrição que um fã faria. Ambos concordam sobre o que acontece ali (reiteração de efeitos já conhecidos, com uma pequena margem de novidades), só que um gosta justamente disto, e o outro não.

O cinema comercial, mais formulaico que qualquer gênero literário, é feito de blocos de cenas assim. Há sub-seções dos estúdios encarregadas de preparar essas cenas, sob a supervisão do diretor do filme. São as chamadas equipes de “segunda unidade”: o pessoal que faz a Perseguição de Automóveis, o pessoal que faz o Baile no Palácio Imperial, o pessoal que faz a Transformação em Lobisomem... Cada tipo de filme tem algum desses blocos, e uma equipe inteira que já sabe como fazê-los. Vêm sendo feitos, com lentíssima evolução, há cem anos.

Na literatura, esses blocos também ocorrem. O romance policial clássico sempre tem como uma de suas últimas cenas a Reunião dos Suspeitos, todos trazidos pelo detetive e agrupados numa sala enquanto Hercule Poirot (Ellery Queen, Philo Vance, etc.) rememora as circunstâncias do crime, expõe as pistas, indica os raciocínios falsos e os becos sem saída. E por fim propõe a hipótese final,o raciocínio certo que demonstra que o criminoso é... VOCÊ! Com essa revelação bombástica, o acusado às vezes tenta dar uma desculpa esfarrapada, outras vezes pula pela janela, ou saca de uma arma e alveja o próprio peito... É uma cena clássica. Alguém (sei lá, Otto Penzler, Bill Pronzini, algum desses antologistas de mão cheia) devia preparar uma antologia desses capítulos, extraídos de romances clássicos (e precedidos, claro, por introduções explicando o crime e todo o contexto anterior). Daria um delicioso e desfrutável volume de umas mil páginas.

Filmes de faroeste têm cenas pré-moldadas típicas: a Perseguição Pela Campina; o Ataque dos Índios (à Diligência, aos Carroções, ao Forte); o Duelo na Rua Principal; a Briga no Saloon. Os filmes de ficção científica renovam seu repertório de acordo com a influência dos clássicos. Os filmes de FC até 1950 eram econômicos em mostrar o vôo de espaçonaves, discos voadores, etc. Mostravam o mínimo necessário para dar a informação, e cortavam antes que o espectador percebesse a precariedade dos efeitos. Depois de “2001”, uma cena pré-moldada é o baile das espaçonaves tendo ao fundo planetas em contraluz; depois de “Star Wars”, virou obrigatória a cena das espaçonaves se metralhando umas às outras, como bimotores da I Guerra Mundial.

1850) Piadas metafísicas (12.2.2009)




Um grupo de cariocas e um grupo de paulistas embarcaram num trem para participar de um evento. Todos os paulistas compraram bilhetes, e observaram que apenas um dos cariocas fez o mesmo. 

Quando alguém avisou que o condutor estava se aproximando, os cariocas correram para o banheiro e trancaram-se lá. O condutor viu a porta fechada e bateu: “Bilhete, por favor!” O bilhete foi enfiado por baixo da porta, o condutor o perfurou, devolveu e seguiu em frente.

Na viagem de volta, os paulistas decidiram comprar apenas um bilhete e fazer o mesmo. Mas aí perceberam que os cariocas não compraram nenhum! De qualquer modo, quando alguém avisou que o condutor estava vindo, os dois grupos correram para os dois banheiros, que ficavam lado a lado. 

Depois que os paulistas se trancaram num deles, um carioca bateu na porta e disse: “Bilhete, por favor!” O bilhete foi enfiado por baixo da porta, ele o levou para o outro banheiro e o apresentou quando o condutor pediu.

Boa piada, não é mesmo? Eu a recolhi num saite onde os dois grupos eram compostos por matemáticos e engenheiros. Como todo mundo sabe, os matemáticos são uns sujeitos ingênuos, abstraídos, incapazes de tomar providências práticas, enquanto os engenheiros são hábeis, pragmáticos, cheios de expedientes. 

A piada acima exprime muito bem o modo como os dois grupos se vêem – ou talvez como os engenheiros vêem os dois grupos.

Mudar para cariocas e paulistas deixa a mecânica da piada intacta, porque a estamos transpondo para um conjunto de preconceitos que não altera o funcionamento da anedota. 

Não é que os paulistas sejam “ingênuos, abstraídos, incapazes de tomar providências práticas”, e que os cariocas sejam “hábeis, pragmáticos, cheios de expedientes”. Estas descrições não correspondem ao clichê habitual de cada tipo. Mas a piada funciona porque tendemos a achar (mesmo que não seja verdade) que os cariocas são espertalhões, trambiqueiros, especialistas em pequenos golpes deste tipo; e que os paulistas são bitolados, sem imaginação, sem jogo de cintura.

As piadas sobre grupos étnicos, sobre categorias profissionais, etc. se baseiam sempre em noções pré-concebidas sobre esses grupos, noções que são tomadas como uma premissa implícita, e que precisam ser reafirmadas pela anedota. “Estavam num avião um japonês, um alemão, um francês e um brasileiro...” 

É com clichês que estamos lidando, e o que esperamos (para produzir o riso) é a obediência ao clichê, ao preconceito. 

Se essa piada do trem fosse atribuída, por exemplo, a um grupo de brasileiros e de portugueses, todo mundo também acharia graça. Mas se o fosse a um grupo de tipógrafos e um grupo de tintureiros, a esperteza do golpe seria percebida, mas o ouvinte se sentiria na obrigação de perguntar: “Mas... por que logo os tipógrafos? Por que os tintureiros?” 

Pré-conceito é qualquer característica atribuída a um grupo que será sempre tomada como axioma sempre que esse grupo for invocado. Mesmo que não seja verdadeira.






terça-feira, 30 de março de 2010

1849) O anti-intelectualismo (11.2.2009)



Um amigo meu foi assistir o Ensaio Sobre a Cegueira de Fernando Meirelles e comentou comigo que um jornal paulistano se referiu desdenhosamente ao filme como “uma mera tentativa de fazer filme de arte”. Achei engraçado esse menosprezo ao conceito de Cinema de Arte, que para mim não difere do Teatro de Arte, Pintura de Arte, Poesia de Arte... Parece que nestas outras áreas o termo “arte” é tão subentendido que se torna supérfluo, mas no cinema, uma mídia bastarda, tecnológica, popularesca, “divertimento de feira”, é preciso fazer a distinção. E nos dias que correm, ao que parece, essa distinção desvaloriza a arte em benefício do “entretenimento”.

Comparei essa frase a outra que li no mesmo dia na Folha de São Paulo sobre o recente CD de Lenine. O cara dizia (não exatamente assim, cito de memória): “Lenine é um artista inteligente, ou seja, já está a meio caminho de se tornar um mala”. Esclareço que no Sudeste “mala” não quer dizer “malandro, esperto”, como na Paraíba, e sim “um chato”, a famosa “mala sem alça”. Para esse jornalista, ser inteligente é meio caminho para ser chato. Imagino que com isto ele queira exigir dos artistas que sejam meio burrinhos para poderem ser compreendidos e assimilados pelos milhões de burrinhos que constituem O Público.

Por que essa preconceito contra a arte e a inteligência? Faço esta pergunta em benefício próprio, porque gosto de arte, me considero inteligente, e acho que ser inteligente é ser menos propenso à chatice do que ser burro. E neste últimos quarenta anos tenho percebido uma tendência interessante. A cada década que passa, aparece mais gente querendo desvalorizar conceitos como inteligência, cultura, intelectualidade, erudição, profundidade e tudo o mais. Se um artista é associado a qualquer desses termos, logo é acusado de elitista, incompreensível, esnobe, inimigo das “pessoas comuns”, enfim, um “mala sem alça”, um cara chato, pedante, que não deixa os outros se divertirem.

Acho que isto tem a ver com uma certa mentalidade mau-caráter que a cada década vem ampliando seu espaço no Brasil. É a mentalidade conhecida como a malandragem (no pior sentido), o golpismo, a “lei-de-Gérson”, o conto-do-vigário, o blefe. Esses indivíduos são os principais adversários de tudo que se diga inteligente, intelectual, culto, etc. Por que? Porque o contrário de “inteligente” não é burro, é esperto: “ichperto”, espertalhão, trambiqueiro, cascateiro, picareta, um-sete-um. O espertalhão não gosta dos inteligentes porque estes não caem com facilidade nos seus golpes. (Caem de vez em quando, claro – os inteligentes em geral são honestos, porque sabem que isto é mais benéfico a longo prazo, mas em compensação tendem a imaginar que todo mundo também é honesto.) Enquanto existirem inteligentes haverá alguém para abrir os olhos dos burros contra os golpes dos espertos, e isso é algo que os espertos morrem ciscando mas não admitem.

1848) “Moacir Arte Bruta” (10.2.2009)



Revi no Canal Brasil este documentário de Walter Carvalho sobre um desses personagens que são às vezes chamadas de “para-artistas”, no sentido de que alguns fenômenos são chamados de “parapsicológicos”. Moacir é um sujeito com problemas mentais, que fala com dificuldade, e que desde pequeno demonstrou, se não um grande talento para o desenho, pelo menos uma compulsão irresistível para desenhar. Mora com os pais e duas irmãs num conjunto de casinhas, na periferia de uma cidade pequena de Goiás. Depois de uma vida inteira de trabalho, e de aparecer algumas vezes nos jornais e na TV, sua obra é procurada por turistas e colecionadores.

Todos nós temos uma certa simpatia implícita por esses artistas que, chamados vulgarmente de “doidos”, perderam a aura de ameaça ou de opróbrio que tinham antigamente. Graças à psiquiatria e a novas teorias estéticas, somos capazes de olhar com simpatia e condescendência para a obra de artistas como Carlos Pertuis e Fernando Diniz, revelados pelo trabalho da Dra. Nise da Silveira na série de trabalhos (filme, exposição, livro) Imagens do Inconsciente.

O problema com Moacir é que sua arte é bruta mesmo, no sentido de que é tosca, mal-feita, sem qualidades estéticas que, aproximando-a da arte convencional, a redimam. Do ponto de vista da técnica é como se um garoto de cinco anos estacionasse para sempre naquele estágio de representação visual, repetindo incessantemente os mesmos traços, as mesmas composições, as mesmas imagens. Moacir diversificou suas técnicas (lápis cera, lápis, tinta e pincel, etc.); diversificou suas superfícies (ele desenha e pinta em papel, em metal, em madeira, nas paredes e no chão da casa); mas não mudou de traço nem de tema.

Aí entra a parte mais desconfortável, capaz de fazer bambear um observador politicamente correto, ansioso para reconhecer que um doido pode ser tão artista quanto um não-doido. Porque há dois aspectos da arte de Moacir que podem incomodar muita gente. Um deles é o fato de ele pintar diabos (diabinhos mesmos, com chifres e cauda) o tempo todo. O pai dele, que tem um olho esperto e cúmplice, e se exprime por elipses e subentendidos, diz para a câmara: “Só não pode é pintar aquele. O do chifre. Por que? Porque não pode. Né?”

O outro são as suas imagens de sexo explícito envolvendo homens, mulheres, diabos e animais, em combinações que às vezes deixam o espectador meio desconfortável. Cenas de auto-erotismo, de bestialismo, de pessoas de todos os sexos executando posições de um Kama Sutra bizarro. Moacir interpreta todos os seus desenhos, menos esses: “Esse aqui eu não sei o que é...” Faltam palavras ou falta coragem de pronunciar as que sabe? Moacir não é um caso de doente mental que se curou através da arte. A arte nele é a apoteose do sintoma. Ele e o sintoma estão numa queda de braço que, a menos que ocorra um fato extraordinário, deve durar pelo resto de sua vida.

1847) Madame Bibiloni de Bulrich (8.2.2009)




O diário Borges de Adolfo Bioy Casares (Ediciones Destino, 2006) retrata de forma indireta personagens de uma Buenos Aires que parece inventada por dois humoristas sardônicos. 

Uma delas é a Madame Bibiloni de Bullrich, ou, mais precisamente, Beatriz Bibiloni Webster de Bullrich. É pena que o livro não seja ilustrado, porque muito me agradaria ver a reprodução de um retrato a óleo (só serviria assim) dessa socialite de vasta inocência, que nunca recuava diante de um solecismo, um absurdo ou um haraquiri verbal. 

À página 65 se diz que ela foi convidada a um baile, e à saída lhe perguntaram o que tinha achado. Respondeu: “Gostei, mas prefiro aqueles onde há gente conhecida que nos tira para dançar”.

Quando sua irmã se suicidou, ela tentou suavizar o fato informando (p. 210): “Minha irmã é tão exagerada que tomou essas coisas para dormir”. 

Tinha uma noção bem peculiar sobre o talento. Foi informada de que alguém conhecido havia ganho na loteria. Quando soube que havia comprado o bilhete inteiro, ganhando com isto o grande prêmio, comentou: “Que inteligente!” (p. 179). 

Tinha opiniões muito claras sobre si mesma: “Eu não sou uma mulher frívola. A única coisa que me interessa é o dinheiro” (p. 134). Vá se adivinhar o que ela entendia nesse adjetivo, porque também afirma: “Minha irmã era uma mulher frívola, mas eu a trouxe ao clube de bridge e agora ela passa o dia jogando” (p. 463).

Este exemplo gera uma discussão filológica entre Borges e Bioy, onde cabe a este, mais afeito à alta sociedade, explicar ao amigo que “frívola” não significa superficial, e sim “mulher que se deita com muitos homens”. Borges comenta: “Esta noite fizeste uma grande descoberta filológica. Mas a elas não podemos perguntar essas coisas porque ficam ofuscadas, pensam que estão sendo submetidas a uma prova”.

Ela conta um episódio em que saiu com umas amigas para ver fogos de artifício numa praça: “Vimos uma bola de fogo que avançava sobre nós. As outras fugiram. Eu, com meu psiquismo, compreendi que não me aconteceria nada. Depois tive que ir à farmácia, porque fiquei com as pernas cheias de queimaduras”. E Borges comenta: “Ela é invulnerável à realidade” (p. 62).  

Lamento não ser portenho para saborear a ênfase com que ela elogia uma festa a que compareceu: “Nessa festa estava tudo que é Unzué e tudo que é Madero” (p. 395). Com que sobrenomes uma socialite paraibana lapidaria um elogio desse porte?...

Na década de 1950, o marido da madame era presidente de uma associação beneficente dos refugiados húngaros. Borges comenta: “Às vezes ela é incapaz de recordar o nome da entidade e diz: ‘Ele é presidente dos húngaros’. Fala como quem entrega peças de um quebra-cabeças, e o interlocutor deve encaixá-las. Ela mesma afirma que "para conversar com ela é preciso ser muito inteligente” (p. 383). 

Se a sra. Bibiloni não existisse talvez nem mesmo Borges e Bioy, dois sarcásticos de truz, pudessem inventá-la.






1846) O jornal intacto (7.2.2009)



(Dorothy L. Sayers)

Há poucas maneiras mais agradáveis de começar o dia do que sentando à mesa, diante de um café da manhã substancial e sortido, com café recém-passado, e abrir o jornal do dia para iniciar nosso gradual retorno à vida real, depois de uma noite inteira no Mundos dos Sonhos. O jornal novo, cheirando a tinta e a rotativas, é um ingrediente crucial neste processo. O que me lembra um trecho do famoso conto “Suspicion”, de Dorothy L. Sayers, em que o protagonista, Mr. Mummery, recomenda a sua esposa: “A propósito, querida, por favor recomende à cozinheira que, se ela quer mesmo ler o jornal pela manhã, antes que eu desça para o café, eu ficaria muito grato se ela o dobrasse depois, bem cuidadosamente.” A esposa brinca com ele, dizendo que ele é cheio de manias, e a narradora diz: “Mr. Mummery soltou um suspiro. Ele não conseguia explicar que lhe era importante, por algum motivo, que o jornal da manhã chegasse às suas mãos liso e intacto, como uma virgem. Mulheres eram incapazes de compreender essas coisas”.

Já falei disto em “A flor do coco”(27.11.2005). É a nossa necessidade do novo, do intacto, do que durante todo o tempo esteve se guardando, à nossa espera. Amigos meus que dirigem automóvel sentem tal afeição por essas engenhocas que lamentam não serem capazes de engarrafar num frasquinho o “cheiro de carro novo”, para aspirá-lo quando a carência ficar muito grande. Não mango deles porque sou do tipo que gosta de cheirar as páginas de um livro, tanto faz que seja velho quanto novo. Papel de livro tem sempre um cheiro próprio e único. Alguns há que nem têm grande valor literário, mas os mantenho em minhas estantes somente por causa do perfume único e inimitável de suas páginas.

O café recém-passado, o jornal cheirando a tinta... Tudo isto nos garante a sensação da vida voltando a desabrochar, da máquina do mundo abrindo-se para nós como se abriu para Carlos Drummond, oferecida, desfrutável, “como uma virgem”, intacta na sua pureza e tentadora na sua oferta. Após uma noite de sono o mundo nos recebe de volta, através do jornal dobradinho e liso, para que desdobremos sua primeira página e vejamos o rosto multifário da Vida. Não importa se as notícias nos alarmam com enchentes, quedas de aviões, quebras da Bolsa, atentados, potentados. É o ato de recebê-las prontas que nos dá o piso mínimo de normalidade-das-coisas, sem a qual ninguém se anima a encarar o dia à frente.

Não há sensação maior de sacrilégio do que procurar o jornal pela manhã e ver seus cadernos espalhados, as folhas amarfanhadas, uma ou outra caída no chão, como se fossem as ruínas de um vilarejo saqueado por vândalos que sumiram sem deixar outro rastro que o da destruição. Mr. Mummery estava certo. Mesmo que alguém insista em ler o jornal antes, por favor, recomponha-o, recoloque seus cadernos na ordem, dobre-o, alise-o, para que ele nos receba do jeito que é para ser.

segunda-feira, 29 de março de 2010

1845) A cultura como interface (6.2.2009)




Ligo meu computador e durante vários segundos se sucedem uns códigos indecifráveis, letras brancas sobre fundo preto, tabelas, fichas técnicas repletas de códigos e de números. Então há uma espécie de recomeço e brota na tela a confortável e acolhedora paisagem do Windows XP, aquele céu azul e as verdes colinas que depois de alguns anos acabam se tornando uma espécie de Pátria, de terra natal. 

“Pronto!”, murmura o usuário, “estou em casa”. Por isso mesmo os teclados e menus nos fornecem a palavra “Home”. Só faltam botar “Home, sweet home”.

Essas imagens existem? Essas colinas do Windows, esses peixinhos-de-aquário que me servem de descanso de tela, esses quadros abstracionistas que escolhi, com um clique, para ser meu papel de parede? Poderei dizer que esta página onde escrevo agora existe, é real, é palpável? 

Estou vendo agora uma página branca com letras pretas, em Time New Roman, tamanho 12 (a que uso como padrão para estas colunas). Nada disso existe. São instruções matemáticas do programa. 

Quando abro o Word, o programa determina que pontos luminosos brancos apareçam na tela, emoldurados por pontos, traços e formas de diferentes cores que compõem as molduras. A barra de ferramentas e os menus desta página são ficções visuais. Desligado o computador, os pontos de luz se apagam, e só voltam a existir de novo quando o programa ordena que reapareçam.

É isto que chamamos interface gráfica. Foi criada para que não tenhamos que dar instruções ao computador. Os computadores mais antigos eram todos movidos a instruções. Era preciso dialogar com eles o tempo todo. Faça isto, agora faça aquilo. 

A interface gráfica surgiu para esconder o fato de que estamos dando instruções, e para imitar o ambiente, os objetos e os gestos de nossa vida física. Clicamos, arrastamos, copiamos & colamos, abrimos e fechamos janelas e menus. E quando apontamos o dedinho do cursor num link e clicamos, estamos autorizando o computador a dar o comando correspondente à ação que queremos.

Assim também é nossa cultura. Criamos, para nossa mútua proteção, uma super-estrutura de cidades, civilizações, códigos, princípios, arte, religião, conceitos de política e economia. 

Tudo para não ter que pensar na infraestrutura, nos comandos rudes e toscos, em tela preta, que determinam nossa vida: o funcionamento dos nossos órgãos, o funcionamento do planeta que habitamos. 

Os processos físicos e químicos que me mantêm vivo, e que ignoro solenemente; e os processos que mantêm o planeta habitável para nossa espécie, e que também ignoramos. 

A cultura é uma interface gráfica cheia de prioridades em tecnicolor: o trabalho, o lazer, a família, a diversão, a vida espiritual. Mas toda ela repousa numa infraestrutura invisível de processos, cuja existência só percebemos quando alguma coisa começa a dar errado e vamos parar na UTI, reduzidos ao conflito binário fundamental entre continuar existindo ou parar de existir.




1844) A memória perfeita (5.2.2009)




(Jill Price)

Existem pessoas com memória perfeita, memória total? Quais os limites da memória? 

Leio de vez em quando sobre isto, e uma coisa que percebo é que nossas memórias são personalizadas. Pessoas de memória excepcional só se assemelham por esta condição, no mais são muito diferentes: usam processos diferentes, têm mais facilidade para coisas diferentes, etc. 

Vejamos o caso de Jill Price, uma californiana de 42 anos. Entrevistada por Samiha Shafy para “Der Spiegel” (http://tinyurl.com/58o9nm), ela conta as tribulações por que passou, os problemas familiares, as depressões, até o dia em que digitou no Google a palavra “memory”, encontrou o dr. James McGaugh, da Universidade da Califórnia, em Irvine, e descobriu que era uma pessoa fora do comum.

Price é dessas pessoas capazes de, ouvindo uma data, dizer imediatamente qual foi o dia da semana. Ela diz que tem uma lembrança normal da própria infância, consegue lembrar a maioria das coisas entre os 9 e os 15 anos, e a partir daí não esqueceu mais nada: “A partir de 5 de fevereiro de 1980, eu lembro de tudo. Era uma terça-feira”. 

Basta alguém dizer um dia e ela lembra o que fez, com quem estava, o que foi conversado, o tempo que fazia, a roupa que estava usando, a comida que comeu, os pequenos fatos ocorridos à sua volta. 

“Mas,” diz Shafy, “muitas vezes as lembranças voltam por conta própria”. Cenas belas, horríveis, importantes, banais, cruzam de forma desordenada o seu “monitor mental”, muitas vezes obliterando o momento presente.

E muitas vezes retornam, também, “cada palavra dita com raiva, cada erro, cada decepção, cada choque e cada momento de dor; nada é esquecido. No caso de Price, o tempo não cura as feridas”. 

Ela se queixa de que “é como estar passando de novo por tudo aquilo, vezes sem conta, um filme sem fim, caótico, que toma conta de mim, e não existe um botão que eu possa apertar e interromper aquilo”.

Para mim, o mais interessante, o que distingue o caso de Jill Price é o fato de que ela mantém desde os dez anos de idade um diário minucioso de tudo que lhe acontece: “Ela já preencheu mais de 50 mil páginas com caligrafia miúda, documentando cada acontecimento, não importa o quanto seja insignificante”. 

Graças a isto os médicos são capazes de “sabatinar” Jill Price e verificar que aqueles detalhes não estão apenas no papel, estão todos no seu HD mental e ela pode acessá-los instantaneamente.

Este detalhe do diário é significativo, porque mostra que desde muito cedo Jill descobriu uma forma de lidar com essa memória hipertrofiada. E o remédio que encontrou só fez aumentar a doença, porque sem dúvida o registro por escrito afiou ainda mais sua capacidade de recordação. 

Já li muitos casos de memórias privilegiadas, mas este é o primeiro em que o ato de escrever serve como terapia, como fator potencializador do “problema” e como parâmetro de julgamento para os pesquisadores.






1843) Antonioni e o cinema (4.2.2009)



Numa entrevista contida nos “extras” do DVD de seu filme A Noite, Michelangelo Antonioni arrisca (em 1985) uma interessante previsão: “O específico fílmico e o específico televisivo acabarão se juntando. As salas são subdivididas em salas menores, com telas menores. As telas de TV aumentam. Um dia, as telas das nossas salas e as dos cinemas serão do mesmo tamanho”. Esta expressão “o específico fílmico”, que não vejo na imprensa há muitos anos, era um tema perpétuo de debates no século passado. Refere-se a algo que o cinema tem e que é diferente de todas as outras artes. É uma experiência cognitiva e estética que só o cinema pode dar, e que não pode ser imitada pelo teatro, pela literatura, pela música, etc. Foi na busca do “específico fílmico” que se criaram as grandes teorias da linguagem do cinema no século 20: André Bazin, Rudolf Arnheim, etc.

Antonioni percebeu, em 1985, que as salas de cinema estavam diminuindo de tamanho, e as telas diminuíam proporcionalmente. Hoje são raras, no Brasil, as salas de cinema para mais de mil pessoas, quando eu bem me lembro do Cinema de Arte Coliseu, em Recife, com mais de 2 mil lugares, frequentemente cheios. É mais rentável, para as cadeias de exibição dos shoppings, explorar 4 ou 5 salas, com filmes diferentes, cada uma numa faixa de 250-500 lugares, com sessões contínuas.

Por outro lado, já naquela época surgiam os primeiros sinais dos enormes “home theatres” de hoje. Talvez em 1985 não existisse a tecnologia, mas já existia a tendência. A TV ganhava espaço, aumentava de tela; hoje, com a imagem digital, pode se gabar de ter mais nitidez e mais riqueza de nuances do que a imagem do cinema (não falei que tem, falei que pode se gabar). Com as salas digitais, a mistura entre as duas coisas fica ainda mais acentuada. Eu, pelo menos, não sei distinguir, olhando apenas a tela, se o filme que estou vendo está sendo projetado em película ou em sistema digital. Se eu não consigo, imagino que a maior parte do público também não consegue.

Há outra frase de Antonioni, no mesmo documentário, que dá o que pensar: “Às vezes é preciso não fitar o interlocutor, e sim fitar o vazio para isolar o próprio pensamento”. Acho que ele se referia ao trabalho do ator, que não precisa ficar encarando o tempo inteiro o outro ator com quem dialoga. Suas atrizes, especialmente Monica Vitti, tinham essa arte incomparável de fugir com o olhar, deixá-lo vaguear pela sala, pela mobília, pela paisagem, enquanto escutava o que um homem lhe dizia.

Mas Antonioni também pode estar se referindo à câmara, e dizendo que a câmara não precisa filmar o tempo inteiro a pessoa que está falando, não precisa cortar o tempo inteiro de uma pessoa que pergunta para outra que responde. Filmar a pessoa que escuta também pode dar a medida exata do que está sendo dito e escutado. Olhando o que diz a TV de hoje, talvez possamos escutar o que tenta dizer o cinema.

1842) “Forró de Todo Canto” (3.2.2009)



Se você por acaso é produtor, dou de graça um projeto de CD. Este mote é para tentar ilustrar uma das coisas mais perguntadas, fora do Nordeste, a respeito do nosso universo. As pessoas perguntam: mas afinal o que é forró? Porque o forró não é apenas um gênero musical, um ritmo. É um contexto social completo, que envolve um local, um grupo de pessoas, uma forma de comportamento, um repertório de bebidas e alimentos, uma certeza de diversão e uma possibilidade de violência. Isto tudo poderia ser ilustrado num CD com o título provisório de “Forró de Todo Canto”, contendo apenas canções com o título nesse formato.

Poderíamos começar com o “Forró em Campina” de Jackson: “Ó linda flor, linda morena, Campina Grande, minha Borborema...” É a canção emblemática em que o rei do ritmo recorda sua formação e seu aprendizado, uma “Bildungslied”, se me perdoam este termo bárbaro: “Bodocongó, Alto Branco, Zé Pinheiro... Aprendi tocar pandeiro nos forrós de lá!” Esta faixa poderia ser sucedida pelo “Forró de Zé Lagoa” de Rosil, em que faríamos a união entre a música e o rádio, artista real e personagens fictícios, porque tal forró existiu apenas nas ondas hertzianas: “Se você não viu, vá ver que coisa boa, em Campina Grande o forró de Zé Lagoa”. É a cara de Campina: desembarca um turista perguntando pelo tal forró, e o pessoal explica: “Não existe não, é tudo invenção de Rosil...”

E aí teríamos uma sequência impecável e divertida, começando com o “Forró de Mané Vito”, que introduz o tema do sururu e do bafafá: “Puxei do meu punhal, soprei no candieiro, botei tudo pro terreiro, fiz o samba se acabar”. Forró, no inconsciente coletivo, sempre acaba em confusão. Daí pularíamos para o “Forró em Limoeiro” (“Eu fui pra Limoeiro, e gostei do forró de lá... Eu vi um caboclo brejeiro, tocando a sanfona, e gostei do fuá...”). É claro que “no meio do forró houve um tereré”, que envolveu o “mano Zé” e depois a “Dona Dedé” que “puxou da navalha e entrou no forró”.

A barra parece mais leve no “Forró em Caruaru” (“No forró de Sá Joaninha em Caruaru, compadre Mané Bento, só faltava tu!”). Tudo começa numa boa: “Eu nunca vi, meu compadre, uma dança tão boa, tão cheia de folguedo e de animação...” Mas por causa de ciúme e de maus bofes a coisa degringola e acaba envolvendo as Forças Armadas (“matemo dois soldado, quatro cabo e um sargento!”).

Músicas assim prolongam o mito de que forró que presta acaba em quebra-quebra. Claro que, se todo forró fosse assim, a espécie teria se extinguido muito mais rapidamente, mas felizmente existem protagonistas como o do “Forró do Surubim”, que “faz uma rosca na ponta do bigode, com ele ninguém pode, só ele é valentão”. Melhor encerrar a seleção com o “Forró na Gafieira”: “Eu peguei logo uma escurinha, e mandei passo de coco que foi um chuá... Falando assim parece brincadeira, mas num instante a gafieira virou um forró!”

1841) Pensar e cantar (1.2.2009)




Comentando a poesia de G. K. Chesterton (que hoje em dia, quando é lembrado, é apenas como prosador e como polemista) Jorge Luís Borges comenta (Borges, Bioy Casares, pág. 365) que metade do esquecimento a seu respeito se deve ao próprio Chesterton. 

Diz ele: “Nos poemas de Chesterton o uso da linguagem é admirável. Suas metáforas são daquele tipo que parecem ter estado ali o tempo todo, e que só uma inacreditável cegueira nos impediu de perceber. Ainda assim, esses poemas correspondem a um esquema; neles o pensamento está sempre presente, e talvez em demasia.” 

E lembra um episódio, talvez apócrifo, em que um crítico inglês perguntou a um irlandês: “Os poetas de vocês não sabem pensar?”. Ao que o irlandês retrucou: “E os de vocês, não sabem cantar?”

Predomínio da idéia e predomínio da música: esta é uma maneira mais nítida de colocar a oposição que em geral se formula nos termos vagos e improdutivos de “forma” e “conteúdo”. 

Falar em forma e conteúdo é sugerir que são aspectos mutuamente excludentes, a menos que queiramos derivar (como os críticos derivam com frequência) para avaliações vazias do tipo “O conteúdo da obra de Fulano é sua forma” ou “a forma das obras de Sicrano é o seu conteúdo”.

Poesia é feita de música e idéia (além de imagem). Como são domínios diferentes da sensibilidade, não se contradizem nem se excluem. 

É perfeitamente possível ter um poema extremamente musical e ao mesmo tempo saturado de idéias. Os Lusíadas e a Divina Comédia são exemplos em grande escala, "A Máquina do Mundo” de Drummond e “Um Operário em Construção” de Vinicius de Morais são exemplos em pequena escala. Música e idéia, quando juntas, funcionam que é uma beleza.

Poucos poetas, no entanto, são tão completos como estes. Alguns são muito bons num aspecto e são fraquinhos ou desatentos no outro. Quando sua obra se impõe, acabam virando uma anti-propaganda das características que não possuem, mas contra a qual talvez não tenham muito a opor. 

Há poetas “engajados” que acabam servindo como exemplo da tese de que é possível (e talvez até melhor) fazer poesia sem música, sem sonoridade, sem ritmo. E poetas dotados de magia verbal, que passam a ser indicados como uma prova de que a poesia consta somente de estruturas sonoras e pode prescindir de significado.

Idéias e imagens podem, até certo ponto, ser traduzidas. O difícil é encontrar noutro idioma equivalentes sonoros para o que um poeta faz. Dois dos meus poetas preferidos são Bertolt Brecht e Vladimir Maiakóvski, mas como não sei uma palavra de alemão ou de russo sinto-me condenado a nunca conhecer de verdade essas duas obras que leio há quarenta anos. 

A música de cada idioma é inalienável e irreprodutível. Pode-se e deve-se traduzir, mas sabendo o quanto de música se perde. Traduzir poesia e imaginar que se tem um equivalente ao original é como escrever uma biografia e acreditar que com isso se evitou a morte do biografado.





1840) Rushdie e os tribunais (31.1.2009)



(Salman Rushdie)

O escritor Salman Rushdie, que anos atrás foi ameaçado de morte e perseguido por fanáticos islâmicos por causa de seu livro Os Versos Satânicos, envolveu-se recentemente numa disputa judicial que ainda é uma conseqüência remota desse período perigoso de sua vida. Como se sabe, Rushdie, que é cidadão britânico nascido na Índia, recebeu proteção da polícia inglesa nessa época, e durante vários anos teve que viver escondido, clandestino, mudando de endereço com frequência, protegido dia e noite por guarda-costas.

Agora, Rushdie acabou de ganhar uma causa judicial contra um desses guardas, Ron Evans, autor do livro On Her Majesty’s Service: My Incredible Life in the World’s Most Dangerous Close Protection Squad. Ao que parece, Evans, que era apenas o motorista do grupo, apresenta-se no livro como um policial armado do esquadrão, chama Rushdie de “mau e arrogante” e diz que certa vez os policiais ficaram tão de saco cheio com ele que o trancaram num armário embaixo da escada e foram tomar cerveja num pub. Tudo isto, de acordo com a sentença, era mentira. Aliás, Evans saiu da polícia depois de receber nove sentenças por desonestidade.

O editor e o “ghost-writer” contratado por Evans para escrever o livro admitiram, após a sentença, que grande parte da história contada era falsa, e comprometeram-se a corrigir os erros. Os réus foram condenados a pagar as custas do processo, mas o escritor não quis indenização para si próprio, e afirmou que isto deveria encorajar outras pessoas a exigir retratações sem exigir pagamentos: “Me parece pouco convincente a idéia de que receber uma enorme soma de dinheiro irá fazer bem a sua reputação. Isto significa apenas que seus advogados são melhores do que os advogados da outra parte. Por outro lado, ver a Corte afirmar que certas coisas publicadas pelo seu oponente são mentirosas é algo que tem peso. Nunca procurei perseguir ninguém pelas suas opiniões pessoais. Contudo, fatos são fatos, e mentiras são mentiras, e acho que a lei existe para permitir que fique bem claro o que é uma coisa e o que é a outra”.

Rushdie foi perseguido pelo fanatismo religioso muçulmano. Agora, depois que os aiatolás retiraram a “fatwa” ou condenação contra ele, tem que quebrar lanças contra o fanatismo comercialesco do Ocidente. Como o Deus que manda aqui é o Dinheiro, qualquer indivíduo que conviveu com alguém famoso quer escrever memórias escandalosas, revelando detalhes da vida do ex-patrão, ou inventando, quando não tem o que revelar. É o mordomo de Roberto Carlos, o segurança de Lady Di, a camareira da atriz A, o secretário do cantor B... Todo mundo finge que tem segredos escabrosos para contar. No mínimo faz um “retrato sem retoques” que vai agradar aos desafetos do famoso e fazer a festa na redação das revistas de fofocas. Pensando bem, não custava nada Rushdie ter exigido uma indenização e empregar esse dinheiro no combate aos Parasitas da Fama.

domingo, 28 de março de 2010

1839) “Dead Man” (30.1.2009)



Revi na TV a cabo este “faroeste metafísico” de Jim Jarmusch, um dos seus melhores filmes. Vi pela terceira vez, e a cada vez gosto mais. Digo isto com cautela, porque sei de muita gente que detesta este filme distanciado, irresoluto, onírico. Faltam nele coisas que nos seduzem nos faroestes: o arrebatamento físico das grandes cavalgadas e grandes lutas, as dimensões épicas de heróis e vilões maiores-que-o-mundo, o corte sociológico das guerras de colonização dos EUA. Tudo isto está ausente deste filme feito num preto-e-branco leitoso e pulverulento (o termo é de Cruz e Sousa), de imagens granuladas que parecem não o Oeste do cinema, mas o Oeste fotografado ao vivo no século 19 pelos lambe-lambes que subiram num carroção e rumaram para as pradarias com um tripé às costas.

Bill (Johnny Depp) vai assumir um emprego num lugarejo que não passa de um quarteirão enlameado e malcheiroso. Mete-se numa confusão por causa de uma mulher, que é morta nos seus braços e o obriga a matar o assassino, filho de seu possível empregador. Ferido a bala no peito, ele rouba um cavalo e se embrenha na mata, onde passa a ser perseguido por pistoleiros de aluguel contratados pelo pai furioso da vítima. Ali ele conhece um índio, que diz chamar-se Ninguém, e que se assombra ao saber que o nome do rapaz é William Blake: “Mas não é possível! Eu sei os seus poemas de cor!” E passa a tratá-lo como se ele fosse mesmo o poeta inglês do século 18.

Durante a fuga, cruzam com matadores profissionais, um pistoleiro antropófago, animais feridos, Iggy Pop vestido de velha. O índio tenta arrancar, com a faca, a bala encravada no peito de Blake, mas não consegue. Como dizia João Cabral (Uma faca só lâmina): “Essa bala que um homem / leva às vezes na carne / faz menos rarefeito / todo aquele que a guarde”. Blake, que era um contabilista pacato, é forçado a enfrentar de arma em punho os caçadores de recompensa que o rastreiam. Vai matando gente, abrindo caminho a tiros, enquanto Ninguém (índio que foi criado na cidade grande) age como anjo protetor.

Não sei o que é melhor, se a fotografia láctea de Robby Müller, toda baseada em fumaça, neblina e sombras, ou se a música de Neil Young, arpejos e rasqueados de guitarra elétrica que nunca se resolvem em melodia ou sequência harmônica, e que, como a própria narrativa do filme, parecem mudar de direção o tempo todo, ziguezagueando ao vento das circunstâncias. Nunca o estilo minimalista de Jarmusch se harmonizou tanto com um argumento, com a fuga espectral desse rapaz baleado que parece morrer um pouco mais a cada homem que mata. E a música, recorrente, fragmentada, inconclusiva, parece também se separar, lentamente, em fragmentos que se apartam para sempre uns dos outros. O filme inteiro é um rito de passagem para o reino das sombras e das luzes, uma transição gradual para um mundo onde não há matéria, apenas o oceano luminoso do ser e do não ser.

1838) Dürer e o rinoceronte (29.1.2009)





Talvez o leitor já tenha visto alguma reprodução desta famosa gravura de Albrecht Dürer, feita por volta de 1515. Aparece com frequência em revistas, posters, capas de livros, e mostra um volumoso rinoceronte reproduzido com riqueza de detalhes e de imaginação. 

A gravura tem uma história tão fantasiosa que parece inventada. O rinoceronte foi dado de presente pelo Sultão de Gujarat a Alfonso de Albuquerque, que era o governador das Índias no tempo do império português. O governador repassou o presente para o Rei de Portugal, Dom Manuel I, e o paquiderme foi embarcado num navio de especiarias, rumo a Lisboa.

Ali chegando, causou sensação, como era de se esperar. Era no auge da riqueza de Portugal, e os soberanos da época gostavam de espetáculos radicais. Dom Manuel botou o rinoceronte para brigar, diante da corte, com um elefante que ele havia ganho algum tempo antes. Reza a lenda que o elefante bateu em retirada sem querer enfrentar o “quindim” do rei. 

Logo depois, Dom Manuel mandou o rinoceronte de presente ao Papa Leão X. De passagem por Marselha, o navio fez uma parada para que a fera fosse vista e admirada pelo Rei da França, Francisco I. Logo em seguida, foi colhido por uma tempestade e foi a pique; o rinoceronte estava acorrentado e não pôde escapar.

Baseando-se em desenhos e relatos por escrito, Albrecht Dürer fez essa gravura. Ela é uma notável obra de arte e ao mesmo tempo um “caveat”, um sinal de alarme para que sempre vejamos com desconfiança os relatos alheios, por mais honestos e bem intencionados que possam ser. 

Dürer, guiando-se pelos testemunhos de terceiros, produz um animal cheio de adornos fantasiosos. A pele coriácea do animal (de onde vem a designação “paquiderme”, “pele grossa”) foi substituída por placas que parecem de armadura, e que em alguns trechos imitam, com suas subdivisões geométricas, o casco de uma tartaruga. As pernas são cobertas de escamas, detalhe totalmente fantasioso. 

Na verdade, Durer, conscientemente ou não, reproduz no animal detalhes que lembram as armaduras e as cotas-de-malha dos guerreiros da época. É uma espécie de linguagem metafórica levada ao pé da letra.

Outro aspecto interessante é que olhando com cuidado a gravura de Dürer não há como não reconhecer nela um certo toque “manuelino” em termos de estilo, como se o artista holandês tivesse inconscientemente se deixado influenciar pelo estilo arquitetônico que os portugueses estavam criando. O animal é tão enfeitado quanto a Torre de Belém (em cujo museu, hoje, há uma reprodução da gravura de Dürer, pois foi nesse local, durante a construção da Torre, que ele ficou preso na sua passagem por Lisboa). 

Por trezentos anos, manuais científicos usaram a fantasia de Dürer como se se tratasse de um retrato cientificamente exato, o que mostra o poder das lendas, das fantasias e das modas estéticas.



1837) O sociólogo e o operário (28.1.2009)



Há uma foto muito publicada na imprensa, e até usada como capa de livro, tirada durante o tempo dos protestos contra a ditadura militar no fim dos anos 1970. A foto mostra dois caras, lado a lado, panfletando no centro de uma cidade. Um deles, de pulôver e com uma elegante cabeleira preta, é o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. O outro, atarracado, rosto redondo, barba igualmente preta, é o líder metalúrgico Luís Inácio da Silva, o Lula. Não sei a data da foto, mas pela cara dos dois imagino que FH nem sonhava em ser Senador da República, e Lula nem pensava em se tornar deputado federal. Nenhum dos dois, provavelmente, imaginaria a sério, naquele dia, que se tornaria Presidente da República – e que o colega ao lado também.

FH e Lula são duas figuras emblemáticas de todos os Brasis que poderiam ter sido e não foram. Lembro que numa das vezes em que se enfrentaram nas urnas eu dizia a amigos meus, decepcionados com as plataformas e os ideários de campanha de ambos: “Olha, nós aguentamos a ditadura, aguentamos Sarney, aguentamos Collor, aguentamos Itamar. Bem ou mal, ter o direito de escolher entre FH e Lula é uma bênção”. Porque todos estes cidadãos que os precederam na presidência eram políticos profissionais, fossem raposas velhas como Sarney e Itamar Franco, ou maracajás jovens como Fernando Collor. Eram gente do ramo, membros da irmandade sem nome, sem partido e sem ideologia que nos governa e nos dessangra há tantos séculos.

Aqueles dois, não. Um era sociólogo de esquerda, amadurecedor de utopias nas bancadas acadêmicas, grande esgrimidor de estatísticas e grande pesquisador da via-crucis latino-americana. Era filho das nossas melhores elites militares. Surgiu como rapaz-prodígio no mundo universitário no tempo em que a ditadura fez o que pôde para quebrar a espinha dorsal do pensamento crítico brasileiro. O outro era o contrário. Filho criado sem pai, migrante em pau-de-arara, operário, sindicalista. Chegou à presidência depois de um calvário de derrotas e perseguições. No Planalto, sentiu-se tão à vontade quanto Romário na grande área: ali ninguém o desarma.

Em homenagem a estes dois brasileiros, que não foram políticos profissionais de origem mas chegaram à presidência, sugiro que nossa próxima Constituição estabeleça um pré-requisito para governar o Brasil. Para se candidatar a presidente, qualquer brasileiro será obrigado a fazer o curso de Sociologia (graças a uma Bolsa de Estudos, pela qual ressarciria os cofres públicos depois de eleito), e a trabalhar durante quatro anos como torneiro mecânico, ganhando, morando e criando os filhos nesse nível de poder aquisitivo. O que faltou a FH foi ter sido pobre, nordestino, assalariado, comer de marmita; o que faltou a Lula foi não ter estudado, não ter sido obrigado a teorizar, não ter amargado um exílio no estrangeiro. Que presidentes teriam sido ambos (não custa nada sonhar) se os dois tivessem sido um só.

1836) “O curioso caso de Benjamin Button” (27.1.2009)



Baseado num conto de F. Scott Fitzgerald, este é o filme com maior número de indicações para o Oscar deste ano. É, surpreendentemente, dirigido por David Fincher, autor de filmes de suspense (Seven, Zodiac) e do famoso Clube da Luta, já comentado aqui, um thriller eficiente e muito bem feito, apesar de uns flertes com o machismo-fascismo. Todos esses muito diferentes deste filme longo, nostálgico, cheio de bons sentimentos e daquilo que hoje em dia se chama “lições de vida”. Fosse Benjamin Button dirigido por algum desses cineastas de auto-ajuda como Steven Spielberg, eu talvez o tivesse achado insuportavelmente açucarado. Sendo de David Fincher, é sinal de que a humanidade não está perdida.

Benjamin é um sujeito que nasce com 90 anos de idade e vai remoçando ao longo da vida. É uma premissa fantástica, que desorienta os críticos mais cartesianos, como Roger Ebert, o qual achou o filme um desperdício de talentos. Bobagem. É uma das premissas mais batidas da literatura fantástica, e o seu desafio está justamente em estabelecer logo de cara um traçado obrigatório para o filme e segui-lo sem deixar que o espectador boceje. Ou seja, com quinze minutos de filme a gente já sabe que o personagem vai remoçar. Cabe ao diretor e ao roteirista inventar coisas interessantes para lhe acontecerem durante o trajeto.

Eu tinha achado o filme muito parecido com Forrest Gump. O mesmo personagem fora do comum e simpático; o mesmo trajeto pelo mundo, ao longo de décadas; a mesma sensação de ver os fatos da História através dos olhos do protagonista; havia até mesmo algumas cenas quase idênticas, como uma tempestade no mar. E em seguida vim a descobrir que o roteirista dos dois filmes é o mesmo, Eric Roth, o que explica a extrema semelhança estrutural dos dois filmes, além do clima nostálgico, distanciado, conduzido por uma voz-guia que atravessa as décadas como quem conta uma história da qual só recorda algumas partes.

O filme é excelente no que se propõe, em parte pelas sucessivas reconstituições de época, pois a história vem desde a I Guerra Mundial até a destruição de Nova Orleans pelo furacão Katrina. A maquiagem consegue dois prodígios: transformar Brad Pitt primeiro num ancião e depois num rapazola. Cate Blanchett, como sempre, está magnífica. O roteiro de Roth me parece dever muito, também, ao estilo de escrever e filmar de Jean-Pierre Jeunet (Amélie Poulain), encadeando de maneira engraçada e engenhosa fatos irrelevantes, extraordinários.

Li em 1962 um contozinho de ficção científica sobre um planeta chamado Arret, onde as pessoas nasciam idosas, rejuvenesciam, e conseguiam, em seus últimos anos, reunir um máximo de experiência de vida e de energia física. O conto (não recordo o autor nem o título) ironizava o nosso mundo às avessas. Benjamin Button nos dá um vislumbre das belezas e das tristezas dessa vida ideal.

sábado, 27 de março de 2010

1835) Banco Imobilionário (25.1.2009)



("It's a Good Life", episódio de Além da Imaginação)

A Operação Satiagraha, da Polícia Federal, indiciou o banqueiro Daniel Dantas, do banco Opportunity, como envolvido em numerosos episódios de enriquecimento ilícito. Agora, autoridades da República e parte da imprensa desencadearam uma operação “Salta e Agarra” destinada a pressionar, desacreditar e intimidar o delegado Protógenes, da PF, e o juiz De Sanctis, que decretou a prisão de Dantas. Na impossibilidade de provar a inocência do acusado, a tática da defesa é encontrar culpas nos acusadores.

Parece que todo mundo no Brasil (menos esse delegado e esse juiz) tem medo de Daniel Dantas. Por que? Que dossiês comprometedores terá esse cidadão a respeito de cada membro do Executivo, do Legislativo e do Judiciário? Que quantidade enorme de informações secretas? Que caixa-forte repleta de discos rígidos? Que bunker blindado, atulhado de fotos, gravações grampeadas, documentos cabeludos com as assinaturas mais prestigiosas da República? Que medo terrível é este que faz as autoridades pressionarem dessa forma os indivíduos que ameaçam o figurão? Olhe, se eu fosse um corretor de seguros era mais fácil eu aceitar um seguro de vida para Osama Bin Laden do que para esse delegado e esse juiz.

O Brasil (sejamos honestos: o Mundo) é uma espécie de jogo de Banco Imobiliário onde um grupo de crianças gananciosas faz o que pode para destruir os imperiozinhos das outras e engoli-los com o seu imperiozão. É um jogo de Banco Imobilionário disputado por crianças cruéis e sem escrúpulos. Me lembra o terrível conto fantástico de Jerome L. Bixby, “It’s a Good Life”, em que num vilarejo norte-americano nasce uma criança com o poder de manipular o mundo à sua vontade. Basta ela desejar uma coisa e essa coisa acontece. É uma parábola freudiana de terror, sobre a perversão e a onipotência do desejo. Uma das primeiras coisas que o garoto faz é arrancar o vilarejo inteiro do mundo real: as pessoas que tentam fugir dali vêem-se perdidas numa zona crepuscular, num Nada que não pode ser transposto. Qualquer adulto que desagrade ao menino é imediatamente destruído. Pessoas que o repreendem ficam sem a boca. Todos compreendem o terrível poder do pirralho e passam a bajulá-lo o tempo inteiro, para continuarem vivos.

Assim é o mundo de hoje em relação a figurões como Daniel Dantas e outros por aí. Eles varrem do seu caminho os adultos que querem interromper sua diversão. Seu objetivo não é enriquecer, não é multiplicar a própria riqueza, não é desfrutar a própria riqueza. São vítimas de uma compulsão de poder, são prisioneiros da própria onipotência, à qual não podem deixar de obedecer um instante sequer, porque ela se transformou em sinônimo de sua própria vida. No dia em que Daniel Dantas pronunciar (ou apenas pensar) a frase “Não posso fazer isto” ou “Não devo fazer isto” sua onipotência será estilhaçada como uma bolha de sabão, e ele desmoronará, transformado num pequeno monte de cinza inorgânica.

1834) Gérard de Nerval, o “flâneur” (24.1.2009)




(Gérard de Nerval)

Existe uma arte em vias de desaparecimento, além do retrato a óleo, da zincogravura e do canto gregoriano. Refiro-me à arte de andar a pé pelas ruas de uma cidade, de preferência à noite, como nos versos de Cecília Meireles que já me conduziram através de muitos subúrbios adormecidos:

Alta noite, lua quieta 
muros frios, praia rasa. 
Andar, andar, que um poeta 
não necessita de casa. 
("Canção de Alta Noite", em Vaga Música, 1942)

Coisa de cavalheiros vitorianos percorrendo uma Londres que não existe mais:

Andamos seguramente três horas juntos, observando o calidoscópio da vida em constante mudança, com fluxo e refluxo, na Fleet Street e no Strand. A conversa característica de Holmes, com sua observação penetrante e poder de inferência, conservava-me pasmado e dominado. 
(Conan Doyle, Memórias de Sherlock Holmes).

Isto me vem à mente folheando Paris et Alentours de Gérard de Nerval, no qual descobri que o poeta precursor do surrealismo era também um grande caminhante, e escreveu numerosas obras descrevendo seus passeios a pé por Paris. Rabiscava o tempo inteiro nesses passeios, em pedaços de papel que guardava soltos nos bolsos. Escrevia no parapeito de uma ponte, sentado numa mesa de café, a bordo de um cabriolé.

Escrever e caminhar, para ele, eram uma única coisa. Diz-se que para descrever um por-de-sol em Chantilly, em seu romance Sylvie, passou oito horas naquela localidade. Depois comentou que a viagem a Chantilly lhe custou duzentos francos e lhe rendeu uma dúzia de linhas, e que, proporcionalmente ao que lhe rendeu, deu-lhe um lucro de 24 centavos.

Jorge Luís Borges costumava andar madrugadas inteiras pelas infinitas avenidas de Buenos Aires, ao lado dos amigos ou das namoradas platônicas.

Arthur Machen, o novelista de The Three Impostors, era outro que percorria a pé os subúrbios londrinos, e num prefácio a esse romance David Trotter lembra:

No século 19, pesquisas de ambientes urbanos resultavam não apenas em vívidas cenas de rua, mas na mitologia autoral como um todo. Os dois maiores romancistas urbanos do século, Honoré de Balzac e Charles Dickens, foram famosos caminhantes; ambos reconheciam haver uma conexão entre o ato de andar e a criatividade.

Parece que foi Baudelaire quem redefiniu literariamente o termo “flâneur” para designar o indivíduo que anda sem pressa, observando, registrando, embebendo-se da vida urbana. Este mesmo espírito impregna a obra de Chesterton, de Stevenson; e sua face mais obscura e terrível foi imortalizada por Edgar Allan Poe na vinheta “O Homem da Multidão”.

Rubem Fonseca, com seu conto “A arte de caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro” ressuscita esta grande arte (embora seu conto, pelo que me lembro, seja diurno).

Alguém deveria escrever um romance que transcorreria inteiro ao longo de uma noite em que um indivíduo insone cruzaria sem pressa as ruas e os bairros de sua cidade natal, e cada detalhe que avistasse o faria evocar um episódio de sua própria vida, vida cujo mapa seria a paisagem urbana.





1833) O novo funcionário (23.1.2009)



Dias atrás um novo funcionário público passou a ocupar, nos EUA, o cargo que a imprensa chama de O Homem Mais Poderoso do Mundo, e muitos ocupantes acreditam. Barack Obama é um personagem interessante, mas, antes de falar dele, falemos do cargo, porque à primeira vista Obama desmente tudo que vivo afirmando sobre a Presidência de uma República. A coisa que mais horrorizava as pessoas quando as repúblicas começaram a substituir as monarquias era a impessoalidade dessa forma moderna de governar. As pessoas estavam acostumadas a dois sistemas – a Substituição Sanguinolenta (Fulano matava Sicrano e tornava-se rei) ou a Eternização Bocejante (soberanos que passavam 40, 50 anos no trono, como D. Pedro II ou a Rainha Vitória). Esse negócio de haver uma substituição de quatro em quatro anos (diziam) nem dá tempo da gente se acostumar com a cara e os cacoetes do governante.

A República Presidencialista (sistema que acho muito inferior ao parlamentarismo) é uma tentativa de salvar um pouco desse espírito monárquico em que tudo gira em torno de um nome, um rosto e uma vontade. O Presidente é, mitologicamente, um rei de paletó e gravata. (Ariano Suassuna, que cultiva um monarquismo estético, muito diferente do monarquismo político, fala de sua decepção na infância quando viu o Rei da Bélgica vestindo terno, e sem coroa.) A República é um esvaziamento de toda a pompa icônica e simbólica que cerca a monarquia. Esteticamente, toda monarquia é católica e toda república é protestante.

E aí passamos para um patamar superior do mito que cerca os presidentes em regimes presidencialistas. É o mito de que quem toma as decisões é ele. Como um rei. Ora, nem os reis eram voluntaristas desse jeito, nem mesmo um rei faz tudo que quer (OK, alguns imperadores faziam – Nero, Calígula, Heliogábalo...) De vez em quando aparece um presidente querendo criar, mas na verdade presidente não cria, presidente escolhe. Governar é escolher entre as opções A, B, C, D e E que lhe são oferecidas por ministros e generais (e olha que nem sempre as escolhas são tantas).

Obama está sendo saudado como Salvador da Pátria, como foi Lula aqui no Brasil, por sindicalistas, povão, setores de esquerda, etc. O candidato sempre chega com um discurso de mudança. (São raros os momentos tão positivos que permitam a alguém fazer campanha dizendo “votem em mim, não vou mudar nada, garanto que fica tudo como está”.) Depois que bota o pé lá dentro, o eleito tem uma reunião a portas fechadas em que lhe mostram a real situação do país, e o que acontecerá ao país (e a ele, e à família dele) se ele cumprir as promessas de campanha. Não sei se é bem assim, sei que o candidato sai dessa reunião transformado. O Lula de 2002 era um, o de 2003 em diante era outro. Saudemos Barack Obama, um cara simpático e provavelmente bem intencionado. Saudemos esse mulato sorridente que nos traz tantas esperanças, porque de agora em diante talvez nunca mais o reencontremos.

1832) O algoritmo Dylan Thomas (22.1.2009)



(Dylan Thomas)

Os surrealistas franceses foram talvez os primeiros poetas a tentar produzir poemas ao Acaso. Um dos seus jogos preferidos era o “cadáver delicado”, em que frases eram escritas aos pedaços, por diferentes pessoas, cada uma sem saber o que as demais tinham escrito. Produziam frases que para mim são de uma estranha beleza: “O cadáver delicado beberá vinho novo... A ostra do Senegal comerá o pão tricolor…” Vale como experiência e como passatempo, mas não pode ser um sistema para a produção constante de poesia.

A poesia de Dylan Thomas, o poeta galês, é extremamente rica, difícil, obscura, marcada por imagens surpreendentes, alusões às vezes inacessíveis, e um vocabulário muito específico. Talvez por causa desta última característica um grupo de fãs (ou de críticos sarcásticos, nunca se sabe) criou um “gerador automático de poemas de Dylan Thomas”. Você clica, e segundos depois aparece na tela um poema que poderia (?) ter sido escrito por Thomas. No dia em que acessei o saite (em: http://tinyurl.com/yklnehr) o poema que estava na tela era: “I slept heartily / By the goosefield of the truant boy / Laughing mildly on the invisible leaves / On thoughts of tides / Where bones lie proudly / And all the patchwork birds burn and walk”. Não traduzirei. Eu não consigo traduzir o Thomas de verdade, quanto mais um ghost-writer cibernético que escreve em seu nome.

A brincadeira consiste na criação de dois bancos-de-dados, um com o vocabulário característico do autor (algumas centenas de substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, preposições, etc.) e outro com suas estruturas sintáticas preferidas, além dos padrões rítmicos (alternância de linhas longas e curtas, etc.). Quem faz esse banco não é o computador, claro. O computador é uma máquina burra. Quem faz são pessoas que entendem de literatura, conhecem a obra do poeta, conhecem os mecanismos de composição literária. Esse papo furado de que “o computador está escrevendo poesia” é balela. O baralho todo é criado por pessoas; o computador apenas traça o maço e escolhe algumas cartas.

É complicado? Não acho. Um amigo meu, Harry Ingham, que não era programador de informática nem nada, escreveu um programazinho chamado “Pim” que gerava poemas dessa forma. Podíamos mudar o banco-de-dados, por exemplo, para substituir as palavras “poéticas” (nuvem, sorriso, flor, etc.) por palavrões ou por palavras absurdas (ornitorrinco, moringa, caduceu...) e os resultados eram sempre interessantes.

Falei em ghost-writer, e isso me lembra que os tais poemas psicografados por médiuns espíritas não são muito diferentes. Conhecendo o vocabulário, os temas e os padrões sintáticos típicos de um poema, é muito fácil produzir centenas de sonetos de Cruz e Souza ou Augusto dos Anjos. Quanto mais típico, quanto mais diferente dos outros é um autor, mais fácil imitá-lo. Qualquer paródia acaba ficando parecida com o original.

1831) A conta do restaurante (21.1.2009)



(Malba Tahan, caracterizado como Beremiz)
 

Circula pela web um email com um problema que já fez meu cérebro consumir muito fosfato na adolescência, até que o encontrei explicado de forma cabal no clássico O Homem que Calculava, de Malba Tahan. 

Três amigos almoçam num restaurante. A conta dá 30 reais e cada um paga 10 ao garçom. Quando este leva o dinheiro ao caixa, o gerente diz que aqueles são antigos clientes, e vai cobrar apenas 25 reais em vez de trinta. Devolve ao garçom o troco sob a forma de cinco notas de um real. O garçom volta à mesa e, espertalhão, embolsa 2 reais para si, anuncia aos clientes que o gerente devolveu 3 reais, e cada um dos três recebe uma nota de um real. 

A questão é: Cada cliente pagou 10 e recebeu um. Portanto, cada um pagou 9 reais, e os três em conjunto pagaram 27,00. O garçom ficou com mais dois reais, o que perfaz 29. Para onde foi R$ 1 real que ficou faltando? 

Este é um problema útil na vida real, porque nos força a prestar atenção ao que está sendo discutido, e não tomarmos falsos atalhos, que irão nos afastar da resposta certa. Formular o problema, já dizia Sherlock Holmes, é meio caminho andado para resolvê-lo. A maioria dos problemas não resolvidos consiste em problemas tão mal formulados que seria quase impossível encontrar as conclusões certas a partir de premissas contraditórias. 

Neste caso, se bem me lembro da explicação de Malba Tahan, as condições do problema foram mudadas no meio do caminho. No momento em que o garçom chega com os 30 reais e o gerente diz que só vai cobrar 25, e devolve um troco de cinco, a tal despesa de trinta reais vai para o espaço. Só existem, concretamente, os 25 que o gerente aceitou, e os 5 que estão na mão do garçom. 

O garçom fica com dois para si, e devolve 1 real a cada cliente. A soma total de dinheiro passa a ser: 25 no caixa, 3 com os clientes e 2 com o garçom. Alguém perguntará: “Mas se cada um deles pagou 10 e recebeu 1 de troco, então os três em conjunto pagaram 27!”. De fato: pagaram 27 reais, sendo que destes 25 ficaram com o restaurante, e dois com o garçom. 

O erro da primeira conta, ao que parece, está em somar as parcelas erradas. Por exemplo: quando somamos os 27 reais pagos pelos clientes e os 2 que estão com o garçom, estamos somando alguns reais duas vezes, pois se o gerente só aceitou 25, então os 2 que sobram já estão na mão do garçom e não podem ser considerados duas vezes. 

No livro de Malba Tahan, ele faz a contraprova com uma série de despesas parecidas, mas com valores muito diferentes, e mostra que esse “um real que ficou faltando” pode chegar a ser uma soma enorme, equivalente ao valor do jantar inteiro. 

Dois conselhos. Examine bem a formulação de um problema para ver se não tem armadilhas involuntárias. E cuidado, muito cuidado, com os problemas que trazem armadilhas voluntárias embutidas: orçamentos, balanços fiscais, prestações de contas. Em caso de dúvida, chamem Beremiz Samir, “o Homem que Calculava”.





1830) Os raros e os caros (20.1.2009)



O saite Abebooks (American Book Exchange) é uma espécie de Estante Virtual internacional, ou seja, um portal que centraliza os bandos de dados de centenas de sebos, o que nos possibilita com apenas uma busca localizar todos os exemplares disponíveis do livro que nos interessa, e escolher o que mais nos convém. Todo começo de ano o saite publica uma circular ilustrada onde exibe os livros mais caros que vendeu no ano anterior. Não estou falando sobre o mercado de livros raros pra valer, aquele onde concorre gente como José Mindlin e outros. Esse mercado lida com manuscritos raros, obras dos séculos 17 e 18, etc. Falo de livros recentes e teoricamente acessíveis a qualquer um.

A circular de 2008 (ver em: http://www.abebooks.com/books/most-expensive-2008.shtml) chegou com algumas informações curiosas, que dão o que pensar sobre o mercado livreiro. A obra mais cara vendida no ano passado foi uma coleção de 25 gravuras em água-forte do pintor Francis Seymour Haden, que foi vendida por 17 mil dólares e uns quebrados. Não é um livro, contudo. O livro mais caro vem logo a seguir: uma primeira edição, de 1878, autografada, dos diários parisienses do árabe Abu Naddara, que foi vendido por 13 mil dólares. E a moeda de bronze ficou para uma rara primeira edição (autografada pela autora e pelo ilustrador) de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, vendido por 12.874 dólares. O valor deste último se deve ao fato de que na primeira prensagem um bloco de texto ficou ligeiramente fora de alinhamento. Da segunda prensagem em diante o problema foi corrigido, mas, pela lógica perversa do mercado de raridades, os livro defeituosos ficam valendo uma fortuna.

A Abebooks relaciona os livros mais caros vendidos em cada gênero, e na seção “Fotografia” fiquei sabendo que The Americans, o livro clássico de fotos P&B de Robert Frank, teve dois exemplares de sua primeira edição, de 1959, vendidos respectivamente por 4.357 e 3.164 dólares. Por coincidência, tenho aqui em casa um exemplar da segunda edição, de 1968, com prefácio de Jack Kerouac, e já me pergunto se devo ou não devolvê-lo a Antonio Augusto Fontes, que cometeu a imprudência de mo emprestar. Sendo segunda edição, deve valer pelo menos a metade da primeira.

A seção de “Poesia” foi encabeçada por duas primeiras edições: Poems 1909-1925 de T. S. Eliot (US$ 8.500) e The Collected Poems de D. H. Lawrence (US$ 4.983). Na de “Ficção Científica” fiquei sabendo que houve quem pagasse 7.950 dólares por uma primeira edição de Out of the Silent Planet de C. S. Lewis (1938), e 6.780 dólares por uma primeira edição de Nineteen eighty-four de Orwell (com o título escrito por extenso, aliás, prática que nem sempre é repetida nas edições de hoje).

Por que esses livros valem tanto? Valem apenas para quem os compra, e, em consequência, para quem os vende. O mercado de raridades é um mercado afetivo, movido pelo amor, o qual, de vez em quando, pode ser medido em cifrões.