sábado, 27 de fevereiro de 2010

1719) Machado: “Mariana” (14.9.2008)



Não há quem não se comova um tanto com “O Caso da Vara”, um dos contos mais conhecidos de Machado de Assis, onde um seminarista sem vocação foge do seminário e se refugia na casa de uma amiga da família. Esta resolve interceder por ele junto ao pai, que é autoritário e quer por fina força um filho padre. Durante a tarde que passa ali, o rapaz simpatiza com uma das escravas da dona da casa, uma pretinha magra, que tosse muito. Ao anoitecer, a senhora vê que a escrava deixou de cumprir uma tarefa que lhe fora ordenada, e resolve castigá-la. Agarra a menina, pede ao seminarista que lhe entregue uma vara que lhe está ao alcance da mão. A menina implora que não o faça. Aturdido, dividido, angustiado, ele prefere ajudar a si mesmo e entrega a vara para o castigo.

Onde quer que haja afeto, numa sociedade escravocrata, entre um senhor e um cativo, no momento em que esse afeto for posto à prova o senhor pensará apenas em si próprio. Alguém argumentará que são numerosos os livros em que um senhor e uma escrava, ou uma senhora e um escravo, mandam às favas as convenções sociais e vivem uma paixão publicamente assumida. Eu direi que sem dúvida tais livros existem, e que é a existência dessas duas classes de livros que determina haverem Realismo e Romantismo. (E haverem, na vida real, pessoas realistas e pessoas românticas, porque, como percebia Oscar Wilde, é mais freqüente que a vida copie a arte do que o contrário).

“Mariana” (“Jornal das Famílias”, 1871) narra o reencontro de quatro amigos. Falam de amores, e um deles, o Coutinho, afirma: “Por nenhuma mulher fui amado jamais como fui por uma cria de casa”. Ele narra que quando era jovem, e estava noivo de uma prima, percebeu a paixão de Mariana por ele. Era escrava, não era livre, mas tinha sido criada como pessoa da família, sabia ler e escrever, estudara francês... Todos na casa gostam dela, e estranham quando ela começa a definhar após o anúncio do noivado. Mariana adoece, foge de casa duas vezes, e cabe ao narrador tentar convencê-la a voltar. Num rasgo de romantismo, Mariana envenena-se. Coutinho conclui:

“Tal foi, meus amigos, este incidente da minha vida. Creio que posso dizer ainda hoje que todas as mulheres de quem tenho sido amado, nenhuma me amou mais do que aquela. Sem alimentar-se de nenhuma esperança, entregou-se alegremente ao fogo do martírio; amor obscuro, silencioso, desesperado, inspirando o riso ou a indignação, mas no fundo, amor imenso e profundo, sincero e inalterável”.

Até parece estarmos em pleno Romantismo francês, em plena literatura-para-moças. Mas aí desce sobre as últimas linhas do conto o noves-fora implacável do mestre do realismo: “Mas daí a pouco saíamos pela Rua do Ouvidor fora, examinando os pés das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa tinham-nos restituído a mocidade”. Coitada da Mariana.

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