segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

1691) Machado: “A Carteira” (13.8.2008)



Não lembro o crítico que primeiro levantou essa lebre, a qual se tornou um critério irremovível na apreciação da obra de Machado: a quantificação monetária da moral e dos sentimentos, cuja melhor expressão é a frase famosa de Brás Cubas: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. No ambiente pseudo-chique de um Brasil subdesenvolvido e escravocrata, onde dinheiro e posição social são tudo, Machado tudo quantifica e tudo reduz a termos financeiros, compara lágrimas a tostões, afetos a pecúlios, matrimônios a investimentos na Bolsa.

“A Carteira” (publicado em A Estação, 1884) ecoa o duplo episódio do dinheiro achado, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Brás Cubas, a ponto de seduzir sua ex-namorada Virgília, agora casada com um deputado, encontra na rua uma meia dobra (moeda de ouro da época) e põe-na no bolso. Depois, a boa consciência o assalta e ele remete a moeda à chefatura de polícia com uma carta, explicando onde achou a moeda e pedindo que lhe localizem o dono. Sua atitude é elogiada, os louvores se espalham entre as pessoas que o conhecem. Mas a consciência de Cubas lhe acenara com uma recompensa: “Vi, claramente vista, a meia dobra da véspera, redonda, brilhante, multiplicando-se por si mesma, ser dez, depois trinta, depois quinhentas, exprimindo assim o benefício que me daria na vida e na morte o simples ato de restituição”.

E dias depois Brás Cubas tropeça, na praia de Botafogo, num embrulho que, levado às pressas para casa, revela conter cinco contos de réis! Quem o teria perdido? Como ele mesmo avalia, “cinco contos levam-se com trinta mil sentidos, apalpam-se a miúdo, não se lhes tiram os olhos de cima, nem as mãos, nem o pensamento”. Mas o fato é que alguém os perdeu. Cubas planeja com eles alguma ação boa, um dote a uma menina pobre... Leva-os ao Banco do Brasil, deposita-os na sua conta, e se não me equivoco ainda lá estão, pois no resto do livro não se fala mais nisso.

Em “A Carteira”, Honório, que é advogado e tem pendente uma dívida de 400 mil-réis, encontra na rua uma carteira recheada, apanha-a. Num café, examina-a: tem mais de setecentos mil-réis, algumas cartas e bilhetes dobrados, que ele não lê, e um cartão de visitas: é de Gustavo, advogado também, e amigo que freqüenta sua casa. Ela decide devolvê-la. Chegando em casa, lá encontra a esposa, Amélia, a conversar com Gustavo, e entrega-lhe a carteira. Gustavo a aceita com certa desconfiança que ele não compreende. Daí a pouco entrar para trocar de roupa, e... “...Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor”. Meia dobra de ouro, pacote na praia, carteira perdida... São assim as mulheres, parece pensar Brás Cubas, e quem conseguir deitar a uma delas as unhas, que a guarde, e repita consigo: “É minha!”.

Um comentário:

Eduardo Tornaghi disse...

Nunca tinha me tocado de como é comum. Lembra de um conto, acho que se chama "o almocreve", em que um camarada está apavorado num cavalo em disparada e promete tudo se for salvo, mas à medida que a segurança se restabelece a oferta vai diminuindo até se transformar numa moedinha? É um retrato implacável de todos nós.
abração,
ET