domingo, 7 de fevereiro de 2010

1622) O mundo que não existe (24.5.2008)




(Graham Greene)

O escritor (o artista imaginativo em geral) é um sujeito cuja maior preocupação na vida é uma porção de fatos que nunca aconteceram com pessoas que nunca existiram. 

O trabalho literário tem uma certa semelhança com os tais dos silogismos da Filosofia. Seu valor depende de sua adequação às próprias regras, e não do que está dizendo. 

Digo, por exemplo: “Todos os homens são mortais. Ora – Sócrates é um homem. Logo, Sócrates é mortal”. Para o leitor distraído, este raciocínio parece correto, mas ele pensa assim pelas razões erradas. Acredita porque sabe que Sócrates era um homem, e que já está morto. Provavelmente sabe que Sócrates foi obrigado a beber cicuta, um veneno daqueles do caba cair ciscando. Sabendo disso, ele acha que o raciocínio é verdadeiro.

Pois igualmente verdadeiro é este aqui: “Todos os kabungs são trambiáveis. Ora, Pampinello é um kabung. Logo, Pampinello é trambiável”. Se você não sabe o significado destes termos, então somos dois, porque eu, que acabo de inventá-los, também não sei. Mas a frase é verdadeira. 

Uma proposição de lógica formal (esta aí, por exemplo, chama-se, se não me equivoco, de “silogismo simples”) não é verdadeira porque corresponde a algo que enxergamos no mundo material: é verdadeira quando obedece às regras que ela mesma estabeleceu. Matemática é a mesma coisa. Cinco mais seis são onze, não importa se estamos nos referindo a laranjas ou a jogadores de futebol.

Vi uma citação do inglês Graham Greene: “Um escritor é um homem de barba por fazer e copo na mão, cercado de criaturas que não existem”. 

Isto me lembra um cartum de Jaguar no Pasquim, satirizando uma famosa frase de Paulo Francis. Primeiro quadrinho: Francis numa festa, cercado de gente inexpressiva. Segundo: Francis diz: “Bebo para tornar as outras pessoas mais interessantes”, e vira um copo de uísque. Terceiro quadro: Francis na mesma festa, mas cercado por gente famosa: escritores, poetas, pintores clássicos, filósofos, políticos.

A literatura cumpre a mesma função do uísque de Francis: fazer com que as pessoas que não existem se tornem mais interessantes do que as pessoas reais. Não por menosprezo a elas, mas porque entendê-las nos ajuda a entender as coisas de cá. 

Entender o porquê da trambiabilidade de Pampinello nos ajuda a entender o porquê da mortalidade de Sócrates. Como dizia Carlos Drummond, “a vida, quando vai aos livros, é para voltar mais vida”. 

As criaturas que não existem precisam da nossa atenção e da nossa crença. Quando atenção e crença ocorrem, a não-existência delas recede para segundo plano, e tudo que se passa em nossas mentes a partir daí é como se se passasse aqui no mundinho dos partidários da verossimilhança. 

Elas são como aqueles desenhos feitos com letras datilografadas que, superpostas, formam zonas de luz e de sombra, onde surge a imagem de um rosto humano. Personagens são uma inexistência por onde a existência se revela.





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