segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

1600) Antonioni vs Shell Scott (29.4.2008)




Há coincidências que dão o que pensar. Um sujeito escreve um livro, e cedo ou tarde alguém descobre um livro antigo e obscuro, contando praticamente a mesma história. Não é plágio. O exame dos fatos indica que o autor do segundo livro não poderia de modo algum conhecer o primeiro; mas isto nos dá o que pensar sobre o modo como as idéias vêm parar na nossa mente. 

Em 1966, Michelangelo Antonioni (1912-2007) foi para Londres realizar Blow-Up, seu primeiro filme colorido e falado em inglês, inspirado num conto de Julio Cortázar intitulado “Las babas del diablo” (da coletânea Las armas secretas, 1959). 

O conto de Cortázar tem pouco a ver com o filme resultante, pois o roteiro de Antonioni foi noutra direção, e conta a história de um fotógrafo que uma tarde clica à distância um casal que passeia num parque, conversa e se beija. Ele se distrai e depois vê que o homem sumiu, e a moça está sozinha. 

Ao voltar para casa e revelar as fotos, percebe que o homem havia sido (aparentemente) morto a tiros por alguém escondido no mato. O fotógrafo volta ao parque, encontra o corpo, mas não sabe o que fazer. Durante suas idas e vindas pela cidade ele cruza com um grupo de atores de teatro-de-rua com rostos pintados como arlequins, e que passeiam num jipe, fazendo a maior algazarra. 

No fim do filme, ele volta ao parque. O cadáver sumiu. Os atores estão jogando tênis numa quadra, mas sem bola ou raquete. Fazem a mímica perfeita de um jogo, a tal ponto que depois de uma cortada a “bola” invisível vem parar (percebe-se pelos olhares de todos) aos pés do fotógrafo. Ele abaixa-se, finge apanhá-la e arremessá-la de volta para os jogadores. 

O filme acaba aí, e não discutirei aqui o “simbolismo” da bola invisível, que já fez correr tanta tinta quanto o monolito de 2001, uma Odisséia no Espaço

Basta-me dizer que quando assisti esta cena pensei estar revendo uma cena do romance policial A Glamurosa Dra. Lyn, de Richard Prather (1921-2007), com o impagável detetive Shell Scott, publicado nos EUA sob o título Always Leave ‘Em Dying (1954). 

Neste livro, que li com uns doze anos, Shell Scott, no curso de uma investigação, vai parar sem saber num desses manicômios de gente rica, com enfermaria, piscina, quadra de esportes, etc. Caminhando pelo terreno, ele vê à distância alguns sujeitos jogando algo que lhe parece badminton ou tênis, mas observa que eles não empunham raquetes, embora façam todos os movimentos. 

A certa altura um dos sujeitos pede-lhe a bola. “Onde?” diz ele. “Aí, junto do seu pé... Não, não! Do outro! Você é cego?!” Scott “apanha” a bola e a devolve. 

Só então ele entende que está numa casa de saúde para doidos. De onde veio a cena do filme, que Antonioni roteirizou com Tonino Guerra? Não está no conto de Cortázar. Eles teriam lido Shell Scott? O mais provável é que ambos (Antonioni e Prather) estejam recordando uma outra história mais antiga, que agora talvez seja impossível rastrear.




Um comentário:

PAULO VALIENGO disse...

Nunca mais esqueci as histórias de Shell Scott.
Me lembro do caddilac azul, do sofa cor de chocolate e do hotel e apartaments Spartan.
Onde poderia encontrar os seus livros?
Parabéns por lembrar tanto e tão bem do
grande "Scott"!