quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

1577) O ponto-e-vírgula (2.4.2008)



(Neil Neches no metrô)

Seguindo uma pista fornecida por Jovany Medeiros, fiquei sabendo que usuários do metrô de Nova York depararam-se recentemente com um cartaz colocado pela administração, pedindo-lhes para jogarem no lixo os jornais já lidos, em vez de deixá-los sobre o banco. A mensagem dizia: “Please put it in a trash can; that’s good news for everyone” (“Por favor ponha o jornal no lixo; é uma boa notícia para todo mundo”). O fato saiu na imprensa, não porque a mensagem fosse politicamente correta, mas por ser gramaticalmente sofisticada. O uso do ponto-e-vírgula numa mensagem publicitária é coisa rara. Este sinal de pontuação parece ser uma sofisticação em vias de desaparecimento. Extinguir-se-á em mais alguns anos, como as abotoaduras de punho, o relógio analógico ou a mesóclise.

De passagem, observo uma sutileza, e me corrijam se estou errado: em inglês parece não ser uso a vírgula depois do “please”, ao passo que em português dificilmente pedimos “por favor” por escrito sem usá-la. A imprensa americana discutiu à larga esse ponto-e-vírgula colocado (diz-se) por Neil Neches, o responsável pelas mensagens do metrô. Acho esta uma discussão das mais saudáveis. O acesso das massas semiletradas à imprensa (principalmente a TV, onde o letramento não é pré-requisito absoluto) tem como efeito positivo uma descontração maior, uma coloquialidade saudável, o registro vívido e vital de uma língua em perpétuo processo de reinvenção. Como efeito negativo tem a perda de sutilezas adquiridas. Ponto, vírgula, ponto-e-vírgula, dois-pontos, travessão... Tudo isto pertence (penso eu) menos ao universo da gramática do que ao universo da música. São notações musicais. Determinam pausas ou quebras de ritmo; indicam inflexões; prescrevem funções sintáticas. São uma partiturazinha quase invisível que corre ao longo do texto, indicando a infalível melodia das perguntas, o lento fade-out das reticências, o breque brusco da exclamação.

O ponto-e-vírgula tem suas funções descritas em mais de um manual, e não irei redescrevê-las agora. Basta-me citar exemplos saborosos como o de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala (cap. IV): “Porque nada mais anticientífico que falar-se da inferioridade do negro africano em relação ao ameríndio sem discriminar-se antes que ameríndio; sem distinguir-se que negro. Se o tapuia; se o banto; se o hotentote.”

Lembro de passagem que o livro do mestre Freyre é um dos primeiros, e um dos raros em nossa bibliografia, a usar um ampersand (&) em pleno título. Assim como Grande Sertão: Veredas é talvez o nosso primeiro romance a trazer no título um dois-pontos, este sinal hoje tão açambarcado pelo formato dos títulos de “papers” universitários (“Veredas da Linguagem: A Pontuação na Obra de Guimarães Rosa”). Kurt Vonnegut dizia que Hemingway, ao se matar, colocou um ponto final em sua vida, mas que a velhice é uma espécie de ponto-e-vírgula; sempre existe a possibilidade de uma surpresa a mais.

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