quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

1545) A noite escura da alma (24.2.2008)




(James Blish)

Um mistério da humanidade que para mim não tem mistério algum é: por que motivo algumas pessoas preferem trabalhar de noite, e não de dia? Como pertenço a essa espécie, meu modo de ser me parece óbvio, e os outros é que são estranhos. 

A alta madrugada é o único horário propício para o trabalho intelectual. Para escrever, para compor, ou apenas para pensar. Frederik Pohl descreve assim esse período mágico: 

“O meio da noite é especialmente benfazejo para um escritor. O telefone não toca, ninguém bate à porta, as crianças estão dormindo. É possível produzir pensamentos longos e consecutivos”.

Esta última frase diz tudo. Quem escreve precisa desenvolver idéias até uma certa extensão, sem perder de vista tudo que foi pensado antes. É um pouco como fazer castelos de cartas. Tudo se apóia numa base muito frágil. Qualquer perturbação bota tudo abaixo e é preciso recomeçar do zero. 

Eu comparo escrever a fazer contas de cabeça, somar vários números de cinco ou seis dígitos. Se a gente é interrompido, esquece tudo que veio antes, e tem que recomeçar.

Outro escritor de FC, James Blish, saiu-se com uma versão interessante e científica para essa importância atribuída à noite. Seu conto “The Dark Night of the Soul” (1956) descreve o cotidiano em uma colônia espacial situada em Calisto, um dos satélites de Júpiter. Ali, vários artistas (pintores, poetas, músicos, etc.) são reunidos para trabalhar em tempo integral, e um dos cientistas explica por quê:

“A maior parte do trabalho criativo é feito durante a noite. Durante essas horas, a massa inteira da Terra está entre você e o Sol. Ela o protege de um tipo muito penetrante de radiação solar, feito de partículas chamadas neutrinos. Estatisticamente, essa proteção é irrisória, porque toda matéria é quase perfeitamente penetrável pelos neutrinos, mas parece que os processos criativos são sensíveis até à menor proteção”. 

Quando lhe perguntam por que a colônia artística foi criada em Calisto, ele responde: 

“Primeiro, porque a esta distância do Sol o fluxo de neutrinos corresponde a apenas 3,7% do que experimentamos na Terra. O outro motivo é que por cerca de cinco horas a cada duas semanas, quer dizer, a cada ‘dia’ local, você está protegido não apenas pela massa do satélite, mas por toda a massa de Júpiter, que se interpõe entre você e o Sol. Durante esse período, você é capaz de utilizar suas forças criativas com um mínimo de interferência da estática dos neutrinos”.

A possibilidade de manter “pensamentos longos e consecutivos” é essencial para quem escreve. É como um compositor escrevendo uma sinfonia; ao escrever a parte de cada instrumento, ele precisa ter em mente tudo que os demais instrumentos estarão tocando naquele instante, lembrar o som de cada uma dessas combinações, etc. 

O pensamento linear é fácil de manter. Pensamentos complexos, simultâneos, em paralelo, só sem a interferência dos neutrinos.





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