segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

1507) A arte de numerar mulheres (11.1.2008)


(Tintoretto, Women playing music)

Pode-se dizer que falta realismo mágico no filme O amor nos tempos do cólera de Mike Newell, que parece muito com um filme de Mike Newell e parece pouco com um livro de Gabriel Garcia Márquez. O Realismo Mágico conheceu neste meio século as duas faces do sucesso excessivo: a adoração desmiolada e em seguida o menosprezo esnobe. Como qualquer outro movimento ou gênero ou estilo literário, ascendeu à glória impulsionado pela criatividade de uma dúzia de inventores, e depois desabou de volta ao chão arrastado pelo peso de milhares de imitadores que pegaram o bonde andando. Críticos literários que antipatizam com ele costumam, ao condená-lo, brandir como prova da promotoria os piores clichês praticados por quem ouviu o galo cantar mas nunca soube de que lado nascia o sol.

O elemento mais “realismo mágico” que encontrei no filme (e que certamente pertence ao livro) é a compulsiva catalogação, por Florentino Ariza, de todas as mulheres com quem fez sexo ao longo dos 51 anos que durou sua paixão impossível por Fermina Daza. Florentino descobre sem querer que existe uma maneira de manter-se fiel à amada que preferiu casar-se com outro: diluir as demais mulheres do mundo numa sucessão de aventuras inconseqüentes em que a prática compulsiva do sexo não deixa lugar para o amor. No único caso em que algo como uma paixão começa a brotar entre ele e uma de suas escolhidas, a faca de um marido ciumento encerra de maneira trágica o episódio.

Florentino anota à mão, numa caderneta, cada um desses casos amorosos, fazendo uma breve avaliação técnica. A frieza, ou melhor, a monotonia dessa contabilidade demonstra o distanciamento que consegue manter, e que lhe permite, na velhice, dizer a Fermina: “Fiquei virgem à sua espera”, e permite a ela dizer-lhe, com um muxoxo: “Mentiroso”, sabendo que é mentira, e ao mesmo tempo sabendo que no fundo é verdade.

A compulsão burocrática de Florentino lembra o personagem de Guimarães Rosa em “O Recado do Morro”, o Coletor, que vive pela cidadezinha cobrindo os muros e as paredes com números que, no seu juízo de doido, correspondem às suas posses: “Ia alinhando números tão desacabados de compridos, que pessoa nenhuma não era capaz de tabuar: seus ouros, suas casas, suas terras, suas boiadas no invernar, sua cavalaria de ótimas eguadas, seus contos-de-réis em numerário, cada lançamento daqueles era feito uma correição de formiguinhas pretas enfileiradas. Aquele homem tinha uma felicidade enorme.”

A loucura lúcida de Florentino poderia ter dado o tom do filme, mas não é o caso. Talvez quem pudesse filmar melhor esse filme fosse outro maluco como o Peter Greenaway de Afogando em Números. Seria menos obediente ao original, e talvez mais parecido com ele. Fixação numérica e paixão amorosa parecem não ter muita coisa em comum – mas quando as vemos transformar-se na razão de viver de um doido manso, parecem ser as únicas coisas que realmente importam na vida.

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