sábado, 26 de dezembro de 2009

1455) “Hotel California” (11.11.2007)


Nunca tinha ouvido falar nessa música até que vi o clip acústico saído nos anos 1990: os Eagles sentados lado a lado no palco, com seus violões e percussões, e a canção sendo puxada por um vocalista que é a cara de Robin Williams. Foi “amor à primeira ouvida”. Depois fiquei sabendo que ela ganhou o Grammy de “Canção do Ano” em 1977 e é considerada um clássico do rock dos anos 1970. “Hotel California” é uma dessas canções em que uma bela melodia evolui ao longo de uma progressão harmônica nítida e satisfatória, culminando num refrão poderoso que incita ao canto coletivo. Um número obrigatório para solos instrumentais e exibição de virtuosismo, como “Bicho de 7 Cabeças” (Geraldo Azevedo & Renato Rocha) ou “Águas de Março” (Tom Jobim).

A letra tem começo, meio e fim, mas ocorre num ambiente alucinatório em que nunca temos certeza sobre o que de fato está acontecendo. Neste aspecto, eu a coloco ao lado de outras obras-primas roqueiras como “A Whiter Shade of Pale” (Procol Harum), “Lucy in the Sky with Diamonds” (Beatles), “Visions of Johanna” (Bob Dylan), etc. O Hotel do título é um local enigmático onde o narrador chega durante uma viagem pelo deserto. Ele vê personagens excêntricos entregues à dança, à festa, às drogas; e no final descobre que pode fazer o “check-out” no momento em que quiser, mas nunca poderá ir embora. Lembra a casa da Calle de la Providencia, em O Anjo Exterminador, a casa de onde ninguém sai; lembra o hotel de O Ano Passado em Marienbad e seus personagens aristocráticos vagando por infinitos corredores.

Descobri um blog (“La Sacoche à Rooroo”) cujo dono se deu o trabalho de reunir e oferecer nada menos de 26 versões desta música, por artistas de diferentes países. O resultado (http://rocknblog.canalblog.com/archives/2006/12/20/3453408.html)
é fascinante. Acho que as canções que mais se prestam para novos arranjos são, paradoxalmente, canções meio pobres de harmonia e melodia, porque o novo intérprete sente-se à vontade para mudar, inovar, interferir à vontade. Já uma progressão de acordes tão bonita e tão característica como a de “Hotel California”, se for alterada, desfigura a música. O desafio é mantê-la, sem cair na mesmice. Eu não sabia, por exemplo, que Bob Marley havia “reggado” esta música, e gostei muito do resultado. Já conhecia a gravação dos Gipsy Kings, que é frenética, ansiosa, cheia de exuberância solística. A gravação dos Scorpions é inesperadamente bem–comportada. Gostei da taciturna e severa versão em polonês de Krzysztof Piasecki; e da descontraída versão instrumental, cheia de banjos e violinos, dos Hayseed Dixie. O representante brasileiro é Emerson Nogueira, com uma versão sem novidades mas muito competente. O Alabama3 faz uma releitura meio Tom Waits, meio hiphop. Parece não haver limites para o que se pode extrair de uma canção que é totalmente nítida quando a ouvimos pela primeira vez e que continua misteriosa após a centésima audição.

1454) As vogais e as consoantes (10.11.2007)


(o manuscrito das "Voyelles" de Rimbaud)

As vogais e as consoantes! Será possível que sejamos tão cegos, tão desfocados, que não percebamos o Segredo transcendental que nos revelam? Rimbaud dedicou um soneto de alquímica simbologia às vogais, mas ainda nos faz falta um poeta de maior fôlego (valha o termo!) que faça o mesmo com as consoantes. Porque juntas estas duas entidades sonoras explicam, como metáforas corporais, lingüísticas, o funcionamento de nossa mente.

Você consegue conceber, caro leitor, uma língua composta apenas de vogais, ou apenas de consoantes? Impossível. Tão inconcebível quando o disco-de-um-lado-só imaginado por Borges, o objeto que existe de um lado mas não existe do outro (não me refiro a “ser invisível”, e sim a não existir mesmo). Podemos fazer brincadeiras, como Ítalo Calvino ao batizar o narrador de suas Cosmicômicas como Qfwfq, ou como a saudação jovial dos surfistas cariocas: “Ó o auê aí, ó!” Mas nunca iremos muito além disso.

A vogal é a Emoção, a consoante é a Razão. Sem uma das duas, ninguém diz nada, ninguém articula ou se expressa, ninguém existe. A vogal é a projeção do ar que temos nos pulmões, é o nosso gesto instintivo de botar para fora algo que temos no peito, e de fazê-lo ruidosamente, despertando a atenção de quem está próximo. E as consoantes são obstáculos que colocamos em torno desses sons, moldando-os, dando-lhes forma, modulando-os, fazendo com eles o que a mão do oleiro faz com a argila mole.

A Emoção cria e a Razão formata. As vogais são o ar em expansão que a razão transforma em ar comprimido, contendo-o, retendo-o, acumulando sua força e dirigindo sua explosão. Por isto que a voz é um instrumento musical: porque se baseia no mesmo princípio. Como a sanfona, em que o ar produzido pelo fole (as vogais) é formatado em notas pelas palhetas e teclas (as consoantes). Como o violão, em que a vibração da corda percutida pela mão direita (a vogal) é retida e modificada pela mão esquerda (a consoante).

Estou exagerando? Acho que sim, pois nem tudo é absoluto de um lado ou do outro. Na própria enunciação de cada vogal básica (á, é, í, ó, ú) já existem diferenças de modulação, ou seja, cada uma já tem algo de “consoante” a modificá-la. E no próprio jogo de consoantes existe uma emissão sonora autônoma: aí estão o zumbido do M, o ciciar do S... Aí está a sutil diferença entre sonoras e surdas que nos permite distinguir o J do X, o D do T, o B do P...

Antes que o meu argumento se estilhace num excesso de exceções e de sutilezas, melhor encerrar a metáfora, melhor carimbar e rubricar aqui o postulado teórico. Quem é que cria – a emoção, ou a razão? Resposta: as duas. Sem a emoção, a razão não passa de um aglomerado de regras e restrições, que não têm o que formatar. Sem a razão, a emoção não passa de ar derramado no ar. Cada vez que falamos, exercemos nossas duas liberdades: a de emitir sons e a de modificá-los, a de controlar nossa expansão através da nossa disciplina.

1453) O pequeno detalhe (9.11.2007)


Há obras que lembram um pouco aquele símbolo do Yin-Yang em que se vê uma gota branca com um ponto preto no centro e uma gota preta com um ponto branco. Ou seja, um elemento que traz em seu núcleo sua própria negação. Parece um pouco com o conceito de “clinâmen” que já comentei aqui (“Clinâmen”, 22.12.2006), aquele pequeno elemento de desordem que, infiltrado num sistema de ordem quase absoluta, garante a este um mínimo de desequilíbrio que lhe assegura a vida, a instabilidade, evitando que se cristalize, imobilize, morra. O filme La Jetée de Chris Marker é uma história de ficção científica ambientada num futuro indefinido, e consiste inteiramente de planos fixos em preto-e-branco. Fotos que se sucedem na tela, enquanto a trilha sonora narra o enredo. Em certo momento, vemos em close-up a imagem de um olho que pisca em câmara lenta. É a única imagem em movimento do filme inteiro.

A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, é outro filme com uma belíssima fotografia em preto e branco, registrando as peripécias de um grupo de judeus cujas vidas são salvas por um industrial alemão, o qual, a pretexto de empregá-los em suas fábricas, consegue evitar sua deportação e morte pelos nazistas. Há um momento do filme em que uma garotinha perseguida pelos nazistas deixa esvoaçar um xale vermelho – única imagem colorida de um filme totalmente em P&B.

O filme A última loucura de Mel Brooks (“Silent Movie”), feito nos anos 1970, é um filme mudo, do começo ao fim: a história de um produtor que está fazendo um filme maluco, sem som. O único som em todo o filme é quando o produtor tenta convencer o mímico francês Marcel Marceau a participar do filme e este, ao telefone, grita: “Non!” Ou seja: num filme mudo, a única palavra é pronunciada justamente por um artista que em toda sua carreira se exprimiu através dos gestos e jamais emitiu um som sequer.

O livro Dicionário Kazar de Milorad Pavic foi publicado em duas edições quase idênticas, chamadas “edição feminina” e “edição masculina”. Há um único parágrafo diferente entre as duas, talvez para nos lembrar que o homem e a mulher são fundamentalmente idênticos a não ser por um detalhe... “et vive la différence!”

Por que estes artistas procedem assim, quando lhes seria mais cômodo seguir até o fim a regra que eles mesmos se auto-impuseram? Creio que isto tem a ver com o conceito de “contrainte” (palavra francesa intraduzível: algo como “auto-restrição, auto-limitação, regra proibitiva deliberadamente escolhida”), em que um autor impõe a si mesmo uma regra arbitrária e a segue ao pé da letra. Quando ele introduz uma exceção deliberada, que não é fruto do descuido nem da falta de alternativas, está dizendo que tanto a decisão de se impor uma regra quando a decisão de abrir uma exceção são decisões conscientes, são fruto de seu livre-arbítrio. Ele não cria apenas a obra, mas a lei que governa a obra, e a exceção que reafirma a liberdade do seu gesto criador.

1452) O arco-íris de Feynman (8.11.2007)



Richard Feynman é um cientista citado volta e meia aqui nesta coluna como uma das mentes mais criativas e menos convencionais da Física moderna. Um interessante livro a seu respeito é O Arco-Íris de Feynman de Leonard Mlodinow (Rio de Janeiro, Sextante, 2005) em que o autor narra o período em que foi bolsista no Caltech (California Institute of Technology) onde Feynman trabalhava. Mlodinow era um jovem cientista inseguro quanto ao caminho a seguir; Feynman estava encarando um câncer que já o levara a várias cirurgias e que acabaria por matá-lo alguns anos depois. Os diálogos entre os dois (gravados em fita) são uma das partes mais interessantes do livro.

Feynman costumava dividir os cientistas em dois tipos: os babilônios, que observavam o comportamento da Natureza e tentavam deduzir suas leis ou constantes, e os gregos, que desenvolveram um sofisticado sistema de idéias cuja validade dependia de idéias anteriores (axiomas, postulados, demonstrações lógicas, etc.). Os cientistas de espírito grego procuram teorias matemáticas sobre o Universo, cuja beleza ou elegância os convença de que são verdadeiras. Os de espírito babilônio procuram teorias que expliquem os fenômenos, mesmo que sua demonstração matemática seja pouco ortodoxa. Era o caso de Feynman.

No capítulo 17, Feynman compara a criatividade do cientista com a do escritor. Ele diz que na juventude tentou escrever histórias de ficção. Pegou como modelo um volume de contos populares dos Irmãos Grimm e achou que não seria muito difícil escrever uma daquelas histórias. E ele diz: “Não consegui fazer nada que não fosse uma rearrumação do que já tinha lido. Percebi que infelizmente, quando recombinava aqueles elementos, era incapaz de criar uma trama essencialmente diferente, uma saída criativa, enquanto na história seguinte havia sempre um tipo de surpresa que a distinguia das demais”.

Feynman desistiu porque pelo seu julgamento cada história recolhida pelos Irmãos Grimm tinha um “pulo do gato” que ele não sabia reproduzir. Era-lhe muito mais fácil ser anticonvencional na Física Quântica do que nos contos de fadas. Ao meu ver foi apenas uma questão de desistência prematura, e é possível que uma mente como a de Feynman conseguisse acabar criando algumas histórias aceitáveis. Contos populares como os dos irmãos Grimm (que não foram escritos por eles, como se sabe, mas recolhidos em pesquisas com pessoas idosas de regiões remotas da Alemanha) exibem uma tensão entre o tradicional e o inesperado. Obedecem a estruturas muito rígidas, que já foram analisadas, por exemplo, por Vladimir Propp; mas dentro dessas estruturas, que são complexas, as variações podem ser incontáveis. Feynman desistiu de escrever pelo mesmo motivo por que tantos outros indivíduos não se tornaram escritores: tinham a inteligência para entender o modelo, mas não tiveram motivação emocional para apossar-se dele, desobedecer-lhe, violentá-lo, enriquecê-lo com novidades.

1451) Torça pelo time da casa (7.11.2007)


Recebi uma “Nota à Imprensa” do Movimento Pela Valorização do Futebol Potiguar. A nota protesta contra a admiração subserviente da torcida e da imprensa de Natal pelos times de fora que vão enfrentar os times locais, e dá como exemplo o recente jogo América-RN x Flamengo, em que a imprensa alardeava, com orgulho, que 75% da torcida presente ao Estádio estava torcendo pelo time de fora.

Diz a nota: “Uma vergonha e um péssimo exemplo de jornalismo, como vergonhosa e ridícula tem sido a cobertura esportiva local. Que tenham as suas preferências clubísticas, quer seja pelo América, pelo ABC, Potiguar ou Baraúnas, mas, daí a incentivar o desprezo pelo futebol do RN e a fanfarronice por clubes que não têm nenhuma ligação com a nossa terra, diminuindo a auto-estima dos torcedores potiguares, é demais, senhores. (...) Enquanto que em Pernambuco essa mazela do torcedor misto foi erradicada, por aqui o jornalismo acha belo mostrar na tela da TV um pai flamenguista e uma mãe corinthiana segurando a mão de um filho de três anos que se diz (!) vascaíno. Com essa mentalidade retrógrada, ultrapassada, subserviente, nunca o nosso futebol será grande.”

Meus leitores já questionaram o destaque dado ao Flamengo nesta coluna. Tenho duas desculpas para o fato de ser um “torcedor misto” (que torce pelo time de sua terra mas também é fã de um time do Rio ou São Paulo). A primeira é que não escolhi racionalmente três dos times de que gosto (Treze na Paraíba, Sport em Pernambuco, Flamengo no Rio): herdei-os de meu pai, que era doente pelos três. O único que escolhi foi o Atlético Mineiro, porque fui morar em Belo Horizonte aos 19 anos e por acaso um dos times de lá era Galo e alvinegro.

A segunda razão é que moro no Rio de Janeiro, mergulhado num turbilhão flamenguista. Acompanho o dia-a-dia do Flamengo pelo rádio, TV, jornal, papos de elevador, de táxi, de botequim, encontros com amigos... Não posso viver o dia-a-dia do Treze com a mesma intensidade.

Mas... torcer pelo Flamengo contra o Treze?! Nunca de núncaras, senhoras e senhores! Nas poucas vezes em que minhas duas paixões principais se enfrentaram, ergui com nobreza o invicto pavilhão alvinegro do Galo da Borborema, e nada neste mundo me faria aderir aos invasores. Assino embaixo do que o pessoal de Natal escreveu. Antigamente discutíamos se era ético torcer pelo time de fora quando este enfrentava nossos adversários tradicionais (Campinense, Botafogo de João Pessoa, etc.) Mas pelo que vejo os torcedores de hoje torcem pelo Flamengo até quando este vem enfrentar o clube local pelo qual eles dizem torcer. Considero isso falta de auto-estima, e grave sintoma de passividade, de colonização cultural. Simpatizar com um time carioca ou paulista é normal, mas tenho pena de qualquer paraibano que prefere a vitória de um time de fora sobre o seu próprio time. Duvido que um flamenguista torcesse pelo Barcelona contra o Mengo, no Maracanã. Os cariocas têm personalidade.

1450) Os crimes de Skidmore (6.11.2007)


Quando David Lynch mandou ao ar nos anos 1980 sua série de TV Twin Peaks ele pegou no contrapé todos os espectadores e críticos para quem a criminalidade doentia nos EUA era privilégio das desumanizadas metrópoles, enquanto nas cidadezinhas do interior repousava o coração pacato e democrático da verdadeira América. Lynch passou o rodo por cima dessa falácia e mostrou que também no coração remoto da América fervilha um ambiente sombrio de crueldade mórbida. Este ambiente já era familiar aos leitores e espectadores dos filmes de terror, desde os romances de Stephen King até filmes como Massacre da Serra Elétrica e outros parecidos.

Vi na imprensa uma matéria curiosa sobre a cidadezinha de Skidmore (Missouri). Crimes bárbaros têm ocorrido ali nos últimos anos. Nos anos 1980, a cidade vivia aterrorizada por um valentão chamado McElroy, que agredia todo mundo. McElroy foi morto a tiros numa rua central, diante de inúmeras pessoas, mas ninguém declarou ter visto de onde partiu o tiro. Em 200, Wendy Gillewater foi morta a pontapés pelo namorado, que agora cumpre prisão perpétua. Em abril de 2001, um rapaz de 20 anos desapareceu e não foi mais encontrado, embora um “serial killer” da região tenha sido acusado de sua morte. O crime mais recente foi o assassinato de uma mulher grávida cujo feto foi arrancado do ventre.

Tudo isto seria chocante, mas não surpreendente, se Skidmore fosse do tamanho de Campina Grande. Acontece que a cidade tem apenas 350 habitantes, o que lhe dá o índice mais elevado de crimes brutais “per capita” nos EUA. O xerife da cidade confessa, constrangido, que em qualquer lugar do país as pessoas lhe dizem: “Ah, você é de Skidmore? Aquela cidade dos crimes violentos?”

Não podemos discutir a origem da violência específica de Skidmore sem conhecer a cidade. Mas podemos extrapolar desse fato uma constatação provisória. Os crimes violentos não são sempre conseqüência da pobreza, da falta de instrução, do desemprego, da impessoalidade e frieza das grandes cidades. Mesmo em lugares onde todos estes fatores estão ausentes, crimes bárbaros podem acontecer. Acontecem em Skidmore, acontecem na Suíça, na Suécia ou em qualquer outro aparente paraíso de estabilidade social. Num pacato vilarejo europeu um maluco invade um local público e fuzila dez pessoas. Quando reduzimos o emprego e a miséria, quando damos educação, motivação, cultura, senso de valores, estamos sem dúvida eliminando grande parte da violência em nosso mundo – mas não toda. Eliminamos os crimes sociais, mas não os crimes individuais. Existe no ser humano (em muitos seres humanos) uma espécie de bicho feroz preso por uma corrente. Diferentes condições ambientais e diferentes histórias de vida fazem com que um certo indivíduo, num certo lugar, sinta o bicho acordar, atirar-se para a frente, partir a corrente e fugir ao controle. São crimes quase impossíveis de prever e de reprimir.