quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

1395) Na estratosfera da globalização (2.9.2007)



Chamo-me Gunther Schneider, e trabalho num conglomerado financeiro com sede em Munique. Moro num apartamento de seis quartos com minha esposa Greta, um casal de filhos e um cachorro “husky siberiano” chamado Flash. Assumi esta semana o posto de CEO (Chief Executive Officer, assim mesmo, em inglês) do grupo, com a missão de fazer uma varredura em suas finanças. O CEO anterior foi demitido por roubalheira, e além do mais, bebia. Nos últimos dois anos o grupo perdeu seis posições no ranking. Estou aqui para botar a casa em ordem.

É uma manhã fria de segunda-feira, e recebo no meu escritório climatizado o grupo de auditores que “deu uma geral” na gestão anterior. Estive em contato permanente com eles por um mês; agora assumi oficialmente o cargo, e hoje é o primeiro dia de tomar decisões. Cumprimento a todos, peço águas e cafezinhos. Dieter Bohrmann, o porta-voz da equipe, um rapaz de rosto magro e óculos espessos, me estende duas folhas de papel grampeadas, com uma lista de 52 itens. Do 1 ao 30, estão em tinta azul; do 31 em diante, em vermelho. São os investimentos que estão dando prejuízo.

Percorro a lista com os olhos. Já vi do que se trata a maioria, e já sei o que vou fazer. Lá perto do fim vejo um nome desconhecido e pergunto o que é. Dieter responde: “É a editora brasileira que compramos em 2003. Pareceu um bom investimento na época”. Surpreendo-me: “Publicam-se livros no Brasil? Pensei que apenas jogavam futebol e dançavam o samba”. Dieter retruca: “É um mercado promissor. Os espanhóis estão entrando lá com tudo”. Peço detalhes, ele remexe na pasta, me entrega algumas planilhas.

Examino aquilo como um médico vendo um raio-X de um alienígena enfermo: sem saber que procedimento aconselhar. Os nomes próprios, ilegíveis, parecem todos iguais. “É grande o prejuízo?”, pergunto. “Mediano. Investiram muito, compraram muitos títulos estrangeiros, lançaram muitos títulos nacionais. Há quatro anos nos garantem que em um ano sairão do vermelho. E não saem.” “Quanto custa para fechar?” “Pagando os custos trabalhistas e jurídicos, e vendendo o catálogo e os bens, fica uma coisa pela outra”.

Vou até a janela. Lá fora, a neve se deposita em flocos suaves sobre o parque, sobre a arquitetura sólida dos ministérios da Blümerstrasse. Tenho 22 itens vermelhos para eliminar da minha lista, e é bom começar mostrando serviço. Viro-me para os auditores e digo: “Então, fecha”. Todos concordam num gesto breve de cabeça que parece ensaiado; Dieter pega sua cópia da lista e rabisca alguma coisa. “O próximo,” peço. Ele consulta a lista e diz: “A mina de diamantes em Angola.” Surpreendo-me de novo. Extraem-se diamantes em Angola? São 8:15 da manhã, e tenho até as cinco da tarde para decidir 22 itens. Estou ganhando quase o dobro do salário do sujeito a quem substituí. Sou um CEO. Estou aqui para resolver problemas, e quero ser uma mulata sambando se esses problemas não fôrem resolvidos.

1394) Luís Buñuel e Nelson Rodrigues (1.9.2007)




Um artigo recente de Nuno Ramos na revista Piauí de abril faz uma boa análise da obra teatral de Nelson Rodrigues. A matéria-prima de Nelson são os sonhos e pesadelos da classe média suburbana: emprego e desemprego; casamento e adultério; obediência e desobediência às convenções; pecados e remorsos; impulsos de ascensão social e de afirmação erótica. 

Seus personagens se debatem entre uma luxúria poderosa que os arrasta a todos os tipos de pecados, e uma ânsia desesperada por um amor puro, espiritualizado, não maculado pela sordidez humana. Querem fazer sexo no Inferno, e depois adormecer em paz no Céu. Diz Nuno Ramos sobre Nelson: 

Sua persona foi sempre mais específica, particular e lenta – o reacionário, aquele que não se universaliza, como uma má notícia ambulante a assombrar a velocidade do mundo lá fora. (...) A sua matéria é o particular, entendido como o detalhe significativo que produz escândalo e denota a falsidade do resto. (...) O Brasil do dramaturgo não é aquele que se procura, mas o que não se deixa ir – aquele que ao ser esquecido volta para assombrar. 

Nelson é um conservador, no sentido de que é fiel aos fantasmas que o obcecavam na infância e adolescência. Dedicou sua vida adulta a dialogar com eles, em vez de varrê-los para baixo do tapete (como faz a maioria, inclusive seus personagens) ou de transcendê-los através da psicanálise ou da revolução sexual dos anos 1960. 

Nelson foi chamado de pornógrafo por uns e de moralista por outros, o que é sempre um indício de que estava remexendo camadas profundas. Nisto ele se assemelha a Luís Buñuel, que, como ele, foi um grande leitor de romances em estilo folhetim, muitos dos quais (Tristana, Belle de Jour, Diário de uma Camareira, etc.) adaptou para o cinema. Quanto a Nelson, usou o pseudônimo de Suzana Flag para escrever ele próprio alguns folhetins imensos que li quando adolescente e foram agora reeditados: Meu Destino é Pecar, Escravas do Amor

A obra de ambos revela os exageros próprios do folhetim, que em Nelson são redimidos artisticamente através de sua concepção peculiar de dramaturgia e diálogo, e em Buñuel são enriquecidos pelo imaginário surrealista francês. 

Ambos extraem sua inspiração do melodrama, mas o melodrama moderno que fazem deixaria desconcertados os artistas a quem copiam ou parafraseiam. Sexo e morte são seus temas preferidos. Criados em sociedades machistas e repressoras, o erotismo era sua obsessão. Buñuel diz em suas memórias: 

Os homens da minha geração, e além disso espanhóis, sofriam duma timidez ancestral relativamente às mulheres e dum desejo sexual que era talvez o mais forte do mundo. (...) Sem sombra de dúvida que um espanhol tinha um prazer superior ao copular do que um chinês ou um esquimó. 

É essa a mesma luxúria irresistível que conduz os personagens de Nelson a todo tipo de pecado. Para eles, pecar é uma forma de auto-afirmação e de auto-conhecimento.