sábado, 14 de novembro de 2009

1368) Fora de quadro (2.8.2007)



No filme Tempo de Guerra (Les Carabiniers), de Jean-Luc Godard, há uma cena em que um rapaz matuto, que se alistou no exército para combater, vê um cinema pela primeira vez. Ele senta na platéia, e logo aparece na tela a famosa imagem do trem vindo na direção da câmara. Como as platéias do Cinematógrafo Lumière de 1895, ele se apavora, cobre a cabeça com as mãos, encolhe-se na cadeira. Logo em seguida aparece a cena de um banheiro onde uma mulher enrolada numa toalha se prepara para o banho, bota a banheira para encher, etc. Quando a mulher começa a tirar a toalha, caminha para um dos lados, saindo do campo de visão da câmara. Animadíssimo, o rapaz sai pulando por cima das filas de cadeiras e, chegando junto da tela, cola o rosto ao pano, espiando na direção em que a mulher sumiu.

Como qualquer cena de um filme de Godard, esta tem uma importante mensagem semiótica e um profundo sentido metafísico. (Para sermos justos, é preciso reconhecer que quando o sujeito tem vocação semiótica e metafísica nem precisa de Godard, ele enxerga isso até num filme de Xuxa ou num comercial de pneu.) Em primeiro lugar, por que rimos do rapaz? Porque somos espertos, somos sabidos, temos consciência de que o que está fora do quadro cinematográfico tem existência implícita mas não pode, nem precisa, ser enxergado. Sabemos que há uma continuidade lógica entre o mundo da imagem e o mundo fora dela: uma mulher que sai envolta numa toalha não retorna metamorfoseada em libélula ou em cangaceiro. Fora do quadro, as coisas continuam sendo elas mesmas. Mas não têm imagem. A moldura retangular está ali para isto mesmo, para delimitar a área onde tudo precisa ter imagem.

Em segundo lugar, lembremos nosso espanto, na infância, quando percebemos que os personagens de um filme nunca precisavam – por exemplo – ir ao banheiro. Pareciam imunes a esta dimensão plebéia. Isto nos levou a descobrir que não somente o espaço, mas o tempo daquela Terra Plana era diferente do nosso. Assim como havia uma porção de espaços subentendidos, era lícito supor que acontecimentos não vistos tinham se passado.

E por fim... Talvez o nosso mundo aqui, de quatro dimensões, funcione do mesmo jeito. Nós, os filósofos e cientistas, somos os matutos teimosos que correm para junto da tela querendo ver a Natureza nua, querendo ver os super-cordéis vibrantes do espaço-tempo, querendo ver a purpurina dos quarks agitando-se nos campos de força. Queremos olhar para fora do quadro da matéria, das quatro dimensões, da seta unidirecional do Tempo. Platão, Aristóteles, Aquino, Hegel... E Einstein, Bohr, Heisenberg, Hawking, Feynman... Todos eles são matutos teimosos, recusando-se a admitir que o mundo acaba nisso que vemos. O que nos move é o impulso de saber, de ir às últimas deduções, de desvendar, de descobrir, de ver a mulher tirando a toalha. Existe coisa mais estimulante para o intelecto do que uma mulher tirando a toalha?

1367) A pirâmide olímpica (1.8.2007)



O esporte olímpico consagrou a imagem do pódio para os três melhores colocados: ouro, prata e bronze. Em torno dessa comemoração, existem duas atitudes diferentes. Uma é a dos atletas que repetem sem cessar, como cansamos de ver nesse Pan do Rio: “Estou muito feliz com este bronze...”, “Esta prata para mim vale ouro...”, e assim por diante. A outra é a dos torcedores que torcem o nariz para as medalhas de prata e achincalham os ganhadores do bronze: “Essa aí não vale nem uma tampa de garrafa”.

Por um lado eu compreendo. A prata é aquele prêmio que se conquista com uma derrota. Quem ganha a prata, teoricamente, era o sujeito que estava tentando ganhar o ouro, foi para a final, teve chance – e não conseguiu. É compreensível, até certo ponto, que o torcedor o veja como um derrotado. E que alguns medalhistas de prata tenham no pódio aquela expressão meio vaga, meio taciturna, de quem só está ali porque o regulamento obriga, mas se pudesse já tinha trocado de roupa e voltado direto pro hotel, para trancar a porta do quarto e apagar a luz. Quanto ao bronze, é o prêmio dos que “bateram na trave”, não conseguiram nem sequer ir à final.

O pódio com seus dois degraus é apenas o topo minúsculo de uma pirâmide gigantesca. Abaixo daquele segundo degrau, onde estão a prata e o bronze, está outro com quatro lugares, e depois um com oito, outro com dezesseis, outro com trinta e dois, e assim por diante, em progressão geométrica. Essa pirâmide é formada pelos atletas que disputaram as competições classificatórias e eliminatórias que um medalhista atravessa ao longo de anos e anos para poder alcançar os índices que lhe permitiram ir ao Pan, à Olimpíada ou ao Mundial da sua categoria. Se pudéssemos reunir em carne e osso todos os atletas que participaram dessas disputas, teríamos uma pirâmide-de-degraus da altura da Pirâmide de Quéops, e talvez precisássemos de um binóculo para ver lá no topo, miudinhos, os três medalhistas.

Como todo subdesenvolvido, como todo mundo que tem pouco, o torcedor brasileiro é Desejo puro. No futebol, ganhar uma Copa do Mundo já não nos basta: é preciso ganhar de goleada, e ridicularizando o adversário, dando olé, dando toquezinho. Quando simplesmente ganhamos mas não damos baile, como em 1994, os exigentes fazem cara feia. Essa mesma mentalidade, de quem tem tão pouco que só se contenta com tudo, é a que nos faz esnobar as pratas e os bronzes conseguidos por nossos atletas.

O atleta que ganha um bronze pode considerar que naquele momento, naquela modalidade, só existem dois caras melhores do que ele, e existem centenas ou milhares que ele deixou para trás, direta e indiretamente. Ser o terceiro num grupo de mil não é brincadeira. E não é uma derrota, mesmo que o derradeiro jogo tenha sido perdido. As medalhas são atribuídas em função do resultado da última disputa, mas quem sobe ao pódio está no ponto final de uma escalada cujo percurso se perde de vista.

1366) A enganação literária (31.7.2007)



Falei dias atrás sobre o escritor J. T. Leroy, autor de livros sobre sua vida como garoto de programa de beira de estrada, viciado em drogas, portador do HIV. Leroy lançou livros, teve obras filmadas, e depois descobriu-se que ele não existia. Era um pseudônimo de uma escritora que recorria a uma enteada para desempenhar o papel de “Leroy” em público. “Ele” esteve no Brasil em 2005, na Flip (Festa Literária de Paraty), e deu entrevistas que exploravam sua aparência andrógina, quase transexual. Em 2006 a verdade saiu nos jornais. E agora as pessoas (e os tribunais) discutem: Isso é crime? Falsidade ideológica, ou coisa equivalente?

Não vou discutir os aspectos jurídicos, mas os literários. Existem autores que só escrevem sobre seu próprio mundo. Escrevem com sua verdade pessoal, sua visão pessoal, sua experiência pessoal. Escritores assim são maus criadores de personagens, porque só sabem falar do que conhecem. Jorge Luís Borges e Henry Miller, por mais diferentes que sejam, têm isso em comum. Falam sobre seus próprios mundos; não saberiam, por exemplo, escrever um romance na primeira pessoa contando a vida de uma dona-de-casa numa fazenda.

Outros autores, contudo, sabem colocar-se na pele de personagens imaginários, vivenciar mentalmente situações que nunca conheceram, produzir em si próprios emoções fictícias. Quando Flaubert disse “Madame Bovary sou eu” deu a formulação mais simples desse processo, porque foi dentro dele, Flaubert, que se criaram as complexas emoções e vivências daquela mulherzinha boba, banal, ambiciosa, que, em princípio, em nada se parecia com Flaubert. Quando chamam Chico Buarque de “o Chico Xavier da alma feminina”, os críticos colocam essa questão da pseudo-mediunidade, da técnica (pois é uma técnica) de imaginar-se sendo outra pessoa, pensando com ela, sentindo com ela. Alguns sabem fazer. Outros não.

J. T. Leroy tem um livro, adaptado para o cinema, com o título The Heart is Deceitful Above All Things – “O Coração é Enganador Acima de Tudo”. O que nos traz aos versos de Pessoa: “O poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”. Emoções podem ser verdadeiras mesmo produzidas por uma vivência não real – o cinema está aí para isso, não é mesmo? Para que recebamos por duas horas o espírito daquele personagem interpretado por Dustin Hoffmann ou Fernanda Montenegro, soframos com ele, riamos com ele, identifiquemo-nos com seus menores trejeitos faciais, com as menores inflexões de sua voz. São falsas, essas emoções que nos violentam na sala escura? Não acho. São as mesmas de um escritor que as produz conscientemente em si próprio, num gabinete silencioso, a sós diante do computador. Guimarães Rosa dizia: “De repente, o diabo me cavalga”. Não o Diabo cristão: mas o “Daimon” grego, o espírito criador que pede para dizer algo. Se lhe inventamos um nome e uma biografia, aí são outros quinhentos.

1365) O espírito esportivo (29..7.2007)



O Pan do Rio de Janeiro tem suscitado um interessante problema filosófico: devemos ou não vaiar os atletas estrangeiros, quando disputam um título com os brasileiros? A resposta é clara, evidente e óbvia. O problema é que essa resposta evidente, para metade dos torcedores, é “sim”, e para a outra metade é “não”. Pois é, amigos – até mesmo o óbvio ululante costuma ulular em desacordo.

Para o brasileiro, acostumado à paixão do futebol, vaiar o adversário é não apenas um direito garantido pela Constituição, é uma obrigação moral. Se não vaiamos o adversário ficamos com aquela sensação incômoda de estar abrindo as pernas, dando mole, entregando o ouro aos bandidos. Perder, tudo bem, todo mundo que disputa perde; mas perder sem vaiar, sem ofender, sem xingar a mãe? Ah, isso não.

Oscar, nosso craque do basquete, foi assistir a ginástica artística e ficou vaiando em altos brados as ginastas estrangeiras. As brasileiras ficaram horrorizadas; “Não se deve fazer isso! Quando nos apresentamos lá fora, em qualquer país, eles nos aplaudem! A gente está competindo, mas não tem que atrapalhar as outras!” Oscar discorda: “Tem que atrapalhar, sim, tem que vaiar, passar uma energia negativa, pra ver se elas erram e o Brasil fica com o ouro”. Depois, na TV, desculpou-se pelo arrebatamento.

O problema é que o esporte olímpico, representado no Pan, tem uma imensa variedade de situações. Existem esportes em que a concentração é fundamental, e a torcida obedece a uma ética implícita de respeito ao adversário. Antigamente, um torneio internacional de tênis parecia uma cantoria de viola: silêncio absoluto durante a jogada (ou o verso) e, após a conclusão, aplausos demorados, seguidos por novo silêncio no início do verso (ou da jogada) seguinte. Essa formalidade está sendo quebrada. Qualquer dia desse vai ter a bateria da Mocidade Independente servindo de charanga para um tenista brasileiro em Wimbledon.

Esportes de massa, tradicionalmente, pedem torcidas ruidosas e inflamadas. Mas há esportes praticados em ambientes mais restritos onde a tradição é observar, e no final aplaudir educadamente. Tênis, ginástica e hipismo são exemplos. Há esportes onde é necessária uma concentração muito intensa no momento de executar um saque, dar um salto, transpor um obstáculo. Algo difícil de fazer quando existe uma torcida vaiando, batendo bombo, chamando palavrão. É chato saber que quando nossos atletas se apresentam mundo afora têm silêncio quando precisam de silêncio, e têm aplauso quando ganham e quando perdem. No tênis, por exemplo, vejo isso a torto e a direito. O Brasil, infelizmente, parece arrebatado por essa mentalidade de quem vai com muita sede ao pote, aquele desespero de quem nunca ganhou nada e que se depara com a possibilidade de vitória. Uma torcida com aquele olho escanzinado de cachorro faminto enxergando um filé ao alcance dos dentes. Pense numa coisa que pega mal!

1364) A história de J T Leroy (28.7.2007)


(J. T. Leroy?)

Falei aqui recentemente sobre os “fantasmas escritores”, que não são o que em inglês se chama de “ghost writers”. Meu artigo era sobre os escritores mediúnicos como Chico Xavier ou Zíbia Gasparetto, pessoas que crêem na doutrina espírita de que a alma é imortal e pode se comunicar com os vivos. Esses escritores entram em transe, recebem (dizem eles) o espírito de escritores já falecidos e produzem novas obras literárias.

Nos tribunais americanos está rolando um processo judicial envolvendo a obra autobiográfica do escritor J. T. Leroy, que estreou em 2000 com o livro Sarah (publicado no Brasil pela Geração Editorial), onde contava sua infância sofrida como filho de uma prostituta de beira de estrada que atendia caminhoneiros. Leroy cresceu e tornou-se também garoto de programas, atendendo aos fregueses de sua mãe. A história era arrepiante, cheia de uma verdade pungente. O livro ficou famoso, vendeu pra caramba, teve os direitos adquiridos para o cinema... a trajetória habitual dos sucessos nos EUA. Aí descobriu-se que era tudo invenção. J. T. Leroy não existia: era a invenção de uma escritora chamada Laura Albert.

Os produtores do filme sentiram-se lesados. Julgavam estar comprando uma história autobiográfica; se os fatos do livro eram ficção, aquilo mudava tudo. Mas aí Laura Albert foi mais fundo. Revelou que J. T. Leroy era na verdade um “alter ego”, uma dupla personalidade real, alguém que tinha existência própria e vivia dentro de sua mente. Sua mãe testemunhou, no tribunal, que a filha tinha graves depressões, foi internada várias vezes, e era de uma timidez patológica: chegou a ficar três anos sem sair do quarto. Nesse quadro de neurose e desepero, J. T. Leroy emergiu (diz a escritora) como um respiradouro, uma válvula de escape. E foi ele quem passou a se comunicar com o mundo, por escrito.

Notem bem: a sra. Albert não alega estar captando o espírito de alguém que morreu. Tecnicamente, trata-se do contrário: alguém que nasceu dentro dela, sem ter tido uma existência corpórea. A psiquiatria trata isto como caso de “dupla personalidade”, e os exemplos na história médica são numerosíssimos. O que isto tem de interessante para a literatura é o fato de que pessoas provavelmente incapazes de escrever um livro por conta própria conseguem fazê-lo quando imaginam que são outra pessoa, seja essa pessoa um autor famoso como Balzac ou Eça de Queiroz (já “canalizados” por médiuns brasileiros) ou um autor fictício como J. T. Leroy.

A dissociação psíquica e a divisão literária da personalidade podem ser um processo consciente, deliberado, sob controle: está aí “Fernando Pessoas” que não me deixa mentir. A vida e a obra de Zíbia Gasparetto, Laura “J. T. Leroy” e Pessoa (com seus heterônimos) são talvez diferentes facetas de um mesmo processo de criação de uma “voz literária”, que deveria ser tratado pela ciência e pela crítica literária com uma percepção mais ampla do que realmente ocorre.

1363) Brasil 5x0 Estados Unidos (27.7.2007)



Eu sou tão viciado em computador que quando terminou este jogo, a disputa da medalha de ouro no futebol feminino, esbocei instintivamente o gesto de apertar a tecla do “Print Screen”, para “fotografar” aquela imagem e guardá-la para sempre: as meninas abraçadas em círculo, pulando no meio do campo, e o placar indicando este poema concreto: BRA 5 EUA 0. Só então me lembrei que a tela que eu estava vendo era a da TV, mas não tem problema, a festa era real. Não preciso guardar imagens. Existe um fato, um fato real, duro, obstinado, irremovível, consumado. Braziu-ziu-ziu!

Tem várias facetas, esta façanha. A menos nobre de todas é o prazer de derrotar os norte-americanos. Alguns leitores me criticam o vezo anti-americano desta coluna, mas eu não sou inimigo dos EUA, sou inimigo do seu atual governo, do capitalismo selvagem que o sustenta, e do militarismo que ele patrocina. Critico as idiotices do povo americano como critico as do povo brasileiro, que são em igual número. Tenho simpatia por muitas qualidades que os americanos têm e nós deveríamos ter. Portanto, peço desculpas a alguns leitores especiais (hi Bill, Tom, Michael, Libby... Scott, are you there?). Mas ganhar dos EUA numa competição internacional é uma obrigação moral nossa, para nossa afirmação como povo.

O Maracanã viveu um dia de felicidade sem violência, como há muito tempo não vivia. Fiquei feliz na entrega das medalhas, vendo o estádio inteiro aplaudir a seleção americana. Isso compensou algumas inconveniências e até grosserias que nossa torcida tem praticado neste Pan. As meninas americanas estavam felizes. São um time jovem, um time sub-20, ao que parece, que está sendo preparado para as próximas Olimpíadas, os próximos Mundiais. Louras, rosadas, sardentas (aqui e acolá tem uma neguinha para dar um charme), receberam as medalhas com festa, com alegria, e a câmara captava em close seus sorrisos puros, a felicidade inocente de criança que fica feliz porque ganhou uma prata.

O time brasileiro me comove. Passe uma câmara lateralmente naquela equipe e veja que coisa linda. Umas são balzaqueanas com mais de 30 anos, outras são garotas que estão começando. Deram cinco goleadas, mostraram técnica, tática, habilidade, entusiasmo na hora certa, auto-controle quando foi preciso. Todas reivindicam respeito com o futebol feminino, apoio, verbas, estrutura. Todas comemorando, sorrindo, dançando; todas belas. Tem umas que é ver uma cangaceira; tem outras com cara de baile funk. Todas exibindo orgulhosas as Angolas e os Xingus dos seus genes. Você olha, e só vê povão: índia, passista, manicure, estudante, secretária, cobradora de ônibus, enfermeira. Todas poderiam estar fazendo o mesmo que suas iguais fazem, mas não, estão batendo escanteio, cortando chuveirinho, fazendo gols, salvando gols. As pernas cheias de cicatrizes, e a cabeça cheia de sonhos. Todas beijando a medalha, radiantes, sofridas, cheias de alegria de viver.