quarta-feira, 4 de novembro de 2009

1349) O objetivo do terrorismo (11.7.2007)



O objetivo do terrorismo não é explodir aviões, desmoronar arranha-céus ou fuzilar chefes de Estado. Isto são meios para alcançar um fim. É claro que quem botou abaixo as torres do World Trade Center sabia que estava dando um baita dum prejuízo financeiro, mas também não era nada que levasse os EUA à falência. O objetivo a médio prazo dos terroristas é impor dentro do território americano uma tal insegurança que a vida de todos se transforme num inferno sem que haja necessidade de mais bombas.

Recentemente a polícia americana alegou ter descoberto uma trama para explodir tubulações que levam combustível para o aeroporto, o que resultaria em milhares de mortes. Se for verdade (uma das conseqüências do terrorismo é a multiplicação dos boatos, inclusive os criados pela polícia), acho que estão indo na direção errada. Depois do 11 de setembro, as grandes cidades ficaram com os nervos à flor da pele aguardando um novo ataque. Para mim, teria sido de um efeito psicológico devastador se a Al-Qaeda fizesse explodir uma bomba de grande porte numa cidadezinha americana insignificante, um Big Creek ou um Springfield qualquer, matando algumas centenas de pessoas. Enquanto os atentados se limitarem a metrópoles como Nova York, com sua imensa visibilidade, o resto do país dormirá mais ou menos sossegado, achando que não é com eles. Mas na hora em que um carro-bomba mandar para os ares a prefeitura de uma Johnsonville qualquer, todas as Johnsonvilles da América entrarão em pânico.

A coisa já está bem encaminhada. Vi depoimentos recentes de que os americanos estão deixando de viajar pelo simples fato de que não agüentam mais as demoradas, minuciosas e às vezes constrangedoras revistas toda vez que vão entrar num avião. Fico imaginando os milhões de bate-bocas que ocorrem diariamente de costa a costa desde 2001, o grau crescente de irritabilidade da população, a sensação de desgaste desnecessário, e por trás de tudo a desconfiança de que aquele moído todo não vai adiantar de nada, porque na hora que o terrorismo quiser atacar de novo vai ser por um caminho em que ninguém tinha pensado antes.

O seriado de TV Além da Imaginação (Twilight Zone) tinha um episódio escrito por Rod Serling, “Os Monstros vão chegar na Rua Maple”. Uma nave pousa a alguns quilômetros de uma cidadezinha americana. A população entra em pânico. Todo mundo começa a achar que há alienígenas infiltrados. E de fato coisas estranhas começam a acontecer. Pessoas somem. Cachorros se comportam de modo esquisito. Ocorrem falhas na eletricidade, apagando todas as luzes – menos as de uma residência, e o bairro inteiro se volta contra o “estranho”, que jura inocência. Começam os quebra-quebras, os linchamentos. Com pequenas sabotagens desse tipo, os ETs manipulam o terror da população. Em breve vizinhos estão se fuzilando uns aos outros. Falta muito para isto?

1348) A bala e a vítima (10.7.2007)



Ando pensando num filme documentário no estilo daquelas reportagens esportivas que acompanham, por exemplo, dois boxeadores que vão disputar um título no fim do ano. Uma equipe de filmagem cola em cada um, e vão seguindo os seus passos, registrando seu cotidiano, etc. No final o filme é editado em paralelo, mostrando lá e cá o trabalho de preparação de ambos, em duas linhas que convergem para a noite daquela luta histórica.

Suponhamos, então, que uma equipe inicia seu trabalho numa maternidade do Rio de Janeiro, documentando a chegada de uma paciente, o parto, a volta para casa. Passam-se os meses e os anos; vemos a criança crescer, ir à creche, ir à escola. Acompanhamos sua aprovação no vestibular, sua formatura, seu casamento. Tudo isto através de flashes muito rápidos, é claro, uma técnica já consagrada de documentarismo do cinema e da TV. Temos em alguns minutos um compacto da vida inteira de uma pessoa, e a vemos chegar à vida adulta, à vida profissional, ao nascimento dos primeiros filhos.

Enquanto isto, uma outra equipe de filmagem estará documentando as atividades de uma fábrica de munição. Não tenho muita idéia de como se dá este processo industrial, mas não é nada que alguns dias de pesquisa não resolvam. Podemos começar desde a extração e a fabricação das matérias primas (o chumbo, a pólvora, etc.), indo em seguida para o processo de fabricação das balas e das cápsulas de metal. Como balas não são fundidas individualmente, acompanharíamos com a câmara e o microfone (captando as explicações dos técnicos) a preparação de um lote específico, que deve ser de alguns milhares, até que a pesquisa fosse se fechando em torno de algumas centenas ou dezenas de projéteis que seriam encaixotados e remetidos para o comércio.

Na loja registraríamos a chegada daquela caixa de munição, e, atendendo a um chamado previamente combinado do lojista, documentaríamos o momento em que a caixa que nos interessa seria vendida para um cliente, que poderia ser o Exército, a Polícia, ou algum particular. Nele se concentraria então a nossa cobertura, com a ressalva de que seria preciso o revezamento de equipes para um plantão 24 horas por dia à espera do momento em que aquela bala específica fosse colocada na arma, e o momento do disparo – quando então as duas equipes de filmagem se cruzariam pela primeira vez, e se filmariam reciprocamente.

Sei muito bem dos problemas de produção envolvidos, porque na verdade não se pode prever quanto tempo teríamos de acompanhar a vítima desde o nascimento até ela receber o tiro – poderiam ser apenas 10 anos, mas poderiam ser 70. Quanto à bala, o problema seria não nos perdermos, pelo fato de que toda bala se parece (não acho que cápsulas tenham numeração individual, ou coisa assim) e a qualquer momento poderíamos perder a trilha e sair acompanhando um projétil diferente do que vínhamos seguindo até então. Mas enfim – vocês pensam que é fácil fazer cinema no Rio de Janeiro?

1347) A religião de Isaac Newton (8.7.2007)



(Isaac Newton)

Em Jerusalém foi aberta uma exposição de manuscritos religiosos de Isaac Newton, mais conhecido como o formulador da Lei da Gravitação Universal, inventor do Cálculo Diferencial, além de outras descobertas científicas. 

Muita gente não sabe que Newton, em seus últimos anos de vida, mergulhou fundo na exegese da Bíblia, que lhe ocupava o tempo inteiro. Já vi avaliações de que do total de manuscritos que deixou apenas um terço era de natureza científica; o resto eram especulações sobre a época do Dilúvio ou a possível data do Fim do Mundo. O qual, de acordo com manuscritos exibidos em Jerusalém, está marcado para o ano de 2060, o que nos deixa tempo, para ir até o fim deste artigo. 

Ciência e Religião já foram uma coisa só, e ainda o são, nas chamadas sociedades primitivas. Todo grupo humano quer saber o porquê das alternâncias do dia e da noite, o porquê das estrelas e dos planetas, o porquê da vida e da morte. Quando atribui essas causas a seres sobrenaturais, cria a Religião. Quando as procura na própria Natureza, acaba produzindo a Ciência. 

Mas o objetivo das duas é o mesmo: entender como o Universo funciona, saber o como e o porquê das coisas. Isto é algo tão óbvio que é preciso levantar os olhos do monitor e ver o mundo dilacerado em que vivemos, onde Ciência e Religião parecem não apenas atividades diferentes, mas mortalmente inimigas. 

Newton viveu num tempo (séculos 16 e 17) em que a Ciência começava a suplantar a Religião na explicação das coisas, e o fez, em grande parte, graças a ele próprio. Newton talvez acreditasse que não havia muita diferença entre o Dilúvio e a Gravidade: ambos seriam manifestações de Deus para melhor administrar a sua Criação. 

Eis uma interessante pergunta retórica: se Deus criou as Leis da Natureza, ele pode desobedecê-las, produzindo um milagre? Diz a Religião que sim, a Ciência que não. Mas talvez estejamos colocando a questão de maneira errada. A Natureza não tem “leis” que devamos “obedecer”, tem uma maneira única de administrar a si mesma, através de fenômenos que vão desde a eletricidade e o magnetismo até a gravidade, a vida, as reações químicas, etc. Estes fenômenos obedecem a regularidades obrigatórias. Dadas as mesmas condições, repetem-se sempre da mesma forma. 

Se Deus não interfere nisso não é por impossibilidade de sua parte, é porque ele escolheu essa forma, entre todas, para exprimir a si mesmo no mundo material. Como diz o Gênesis, Deus fez tal e tal coisa, “e viu que era bom”. 

Há um poema do cientista polonês Miroslav Holub, "Zito, the Magician", em que um mágico, na corte do rei, faz surgir uma porção de coisas impossíveis: uma estrela negra, água seca, etc. Então alguém lhe pede para produzir “um seno de alfa maior do que 1”. O mágico empalidece: “Sinto muito,” diz ele, “seno de alfa está situado entre +1 e –1”. E vai embora derrotado. Uma bela fábula para mostrar que certos milagres não batem com a vontade de Deus.





1346) Dois tipos de autor (7.7.2007)


(Thomas Ligotti)

Na literatura existem dois focos distintos (para simplificar uma situação muito mais cheia de nuances) onde se concentram duas formas de produzir textos. Vamos chamá-los de Alta Literatura e de Literatura de Massas. Na primeira estão aqueles autores que constituem o cânone literário, os mais capazes praticantes da arte. São autores diferenciados, personalíssimos, de perfil inconfundível, mas compartilham alguns traços: visão profunda e complexa do mundo e da vida; e domínio da palavra escrita capaz de recriar a profundidade e complexidade dessa visão.

Na Literatura de Massas a visão é mais rasa e não vai muito além do que é consensual ou largamente aceito. É uma visão com menor índice de contribuição individual, e mais apegada ao clichê. O estilo não inova, apenas procura usar com eficiência os recursos expressivos criados por outros autores e já assimilados pelo público. O típico autor da Literatura de Massas procura criar poucos problema para ser compreendido pelo leitor. O que ele quer é ganhar tempo e “ir direto ao assunto”.

Na Alta Literatura, o Inconsciente está presente no processo de auto-revelação implícito no ato da escrita, e da escrita considerada de alto nível. Todo o material inconsciente que aflora durante o processo de criação é assimilado pelo intelecto criador e regente, ao qual cabe dar a última palavra. Por mais que o autor de Alta Literatura pareça delirante, caótico, incoerente (neste aspecto pode-se pensar na primeira impressão causada por um texto de James Joyce, ou Samuel Beckett), percebe-se afinal na elaboração do texto um intelecto poderoso em ação, mesmo que seja um intelecto trabalhando num plano além do racional.

No caso do autor da Literatura de Massa, pode-se dizer que, em vez de dominar o texto, é dominado por ele. Este tipo de autor escreve para consumo imediato. Não o faz para exprimir idéias pessoais ou suas próprias emoções, mas para satisfazer as expectativas de um público. Recorre a si mesmo porque isto é inevitável no processo da escrita, mas para ele importa muito mais “o que o público quer ler” do que “o que eu tenho a dizer”. Como diz o escritor Thomas Ligotti, “a arte é feita para exprimir as emoções do artista; o entretenimento é feito para produzir emoções no público”.

Pela natureza de seu ofício, o autor de Literatura de Massas dialoga com o público de maneira mais superficial que o outro Autor, mas de uma maneira mais próxima e imediata. O autor das Massas é um sismógrafo do gosto que lhe é contemporâneo, do Espírito do Tempo. Se o grande autor revela seu próprio Inconsciente, cabe ao autor popular revelar o Inconsciente Coletivo de sua sociedade e de sua época. Dois grandes grupos de autores podem servir como exemplos típicos deste processo: os autores de folhetins europeus do século 18 (Alexandre Dumas, Ponson du Terrail, Eugene Sue, etc.) e os autores da “pulp fiction” norte-americana nas décadas de 1920-1940.