domingo, 25 de outubro de 2009

1325) “Cangaceiros” (12.6.2007)



Cangaceiros, de José Lins do Rego, é um romance que enxerga o cangaço pelo lado de fora, ou em volta dele. Em vez de descrever o dia-a-dia dos cangaceiros, seus combates, suas fugas, prefere contar a vida das pessoas que são parentes ou amigas dos cangaceiros, que pensam neles o tempo todo, que os temem, que os protegem, que torcem por eles ou contra eles. A toda hora chegam-lhes relatos das façanhas e das crueldades praticadas tanto pelos cangaceiros quanto pelas volantes de soldados que os perseguem. A trama acompanha Bento, irmão do cangaceiro Aparício. Através dele, na fazenda onde que se refugia, ficamos vendo a quantidade enorme de boatos, de lendas, de informações falsas e de histórias mal contadas que cercam a atividade desses indivíduos, num Sertão da década de 1920, carente de comunicações e de estradas.

A literatura de Zé Lins desenvolveu um monólogo interior com feição própria, extensos parágrafos que se expandem por páginas e mais páginas, nos quais ele acompanha as idas e vindas do pensamento do personagem, seus avanços e recuos, suas decisões, hesitações, suas intermináveis discussões íntimas nos momentos de ameaça ou de crise. Como Zé Lins usa um vocabulário claro e direto, o leitor acompanha sem muito esforço essas reviravoltas mentais sem perceber o labirinto de idéias em que está se metendo.

O livro, que aliás é uma continuação direta de “Pedra Bonita”, formando com ele uma unidade sem cesura, mostra um enorme entendimento do autor da mecânica social do ambiente que descreve, e uma grande familiaridade com usos e costumes, resultado de uma memória vívida, de um ouvido infalível. Isto lhe permite criar personagens de peso como os três irmãos Vieira: o cangaceiro Aparício, o pacífico Bento, e Domício, o poeta cantador que acaba enveredando pelo cangaço.

Mas os dois grandes personagens do livro são para mim os dois neuróticos. O primeiro é o Capitão Custódio, desmoralizado pela vergonha de ter visto seu filho ser morto pelo Coronel Cazuza Leutério e nada ter feito para vingá-lo. O código de honra do Sertão da época não admitia que um pai não vingasse o assassinato do filho, e o Capitão remói sua culpa e sua humilhação em todas as cenas em que aparece. O outro personagem é o Mestre Jerônimo, que foi embora do Brejo por ter cometido um crime de morte, não gosta do Sertão, e vai pouco a pouco entrando num delírio paranóico equivalente ao do Capitão Custódio. São dois personagens trágicos, que mostram o remoer de angústias e ansiedades que existe às vezes por trás da fisionomia impenetrável do sertanejo. Numa interiorização progressiva de culpas, ressentimentos, humilhações e medos, os dois vão sendo consumidos de dentro para fora diante dos nossos olhos. Quando Bento procura fugir dali, nos últimos capítulos, está fugindo ao terrível futuro que o ameaça, o de se tornar um cangaceiro como os irmãos ou um doido como os seus dois protetores mais velhos.

1324) O que faz um best-seller (10.6.2007)



Ninguém sabe o que faz um livro tornar-se sucesso de vendas. De vez em quando aparece por aí um Nome da Rosa, Código da Vinci, Alquimista e vende horrores. Por quê? Ninguém sabe: nem o autor, nem o editor, nem as pessoas que estão comprando, porque ao lado livro daquele tem outro, do mesmo autor, ou sobre o mesmo assunto, que está entregue às moscas.

Um dos grandes sucessos da década de 1980 foi Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva. O editor Caio Graco Prado era amigo do rapaz, que nunca tinha escrito um livro, e sugeriu-lhe escrever suas memórias. Marcelo era filho de um deputado de esquerda “desaparecido” pela ditadura, e tinha ficado paraplégico ao dar um mergulho de mau jeito. Apesar disso, era um sujeito “alto astral”. Caio Graco encomendou-lhe um livro prometendo que iria vender uns 30 mil exemplares. Vendeu 500 mil; está vendendo ainda hoje. Ninguém sabe por quê – ou melhor, depois que acontece, todo mundo acha que sabe, e toda vez que tenta repetir a receita, não dá certo.

Curtis Sittenfeld, autora do recente best-seller Prep não sabe por que motivo seu livro (no qual a própria editora não botava muita fé) vendeu 133 mil cópias em capa-dura e mais 329 mil em edição de bolso, além de ter sido negociado para 25 países e para o cinema. Tanto a autora quanto os editores foram colhidos de surpresa por uma resposta totalmente desproporcional à sua expectativa. “Na maior parte do tempo, é uma profissão regida pelo acidente,” diz William Stratchan, da Carroll & Graf. “Se alguém tivesse a chave do segredo, seria muito rico, mas ninguém a tem”.

Uma mudança interessante – e bem ao espírito capitalista – ocorreu em anos mais recentes, com a Internet. A facilidade e rapidez na troca de informações faz com que os editores de hoje possam pesquisar seu mercado quase tão bem quanto as redes de TV ou os estúdios de cinema. Num saite como a Amazon.com, leitores deixam páginas inteiras de comentários, fazem listas de livros preferidos, e de certo modo traçam um perfil da multidão silenciosa que consome livros. Os Blogs de leitores também são importantes neste processo. É um bom sinal? Não creio. Uma das melhores coisas no mercado do livro é a imprevisibilidade do próximo sucesso. No dia em que o mercado leitor puder ser passado num pente-fino pelos Ibopes especializados, aí sim, o livro vai mesmo ser tratado como se fosse um detergente ou um sabonete.

Nos EUA, diz o agente Eric Simonoff, as outras indústrias ficam perplexas com o rudimentarismo da indústria editorial: “porque é tão imprevisível, porque as margens de lucro são tão pequenas, os ciclos são tão longos, e pela ausência quase total de pesquisa de mercado”. Para nós, autores e leitores, isto são boas notícias. Tremo-na-base ao pensar no dia em que um gerente de marketing vai me estender dez laudas de pesquisas tabuladas nos mínimos detalhes e dizer: “Está tudo aqui, agora só falta escrever o livro”.

1323) A solidão do tenista (9.6.2007)



A TV a cabo está exibindo o torneio de tênis de Roland Garros, onde o nosso Guga foi campeão três vezes e ficou na História como o maior tenista brasileiro de todos os tempos. Devido ao fuso horário não vejo esses torneios ao vivo (passam de manhã), acabo vendo o VT durante a tarde, tendo antes o cuidado de não assistir o Globo Esporte – assim não sei quem ganhou, e é como se o jogo não tivesse acontecido ainda.

Sempre sonhei (ainda sonho) em ser jogador de futebol. Mas se pudesse voltar no tempo e escolher um esporte como vocação, missão e profissão, eu escolheria o tênis. O futebol é um jogo coletivo, onde ficamos à mercê do talento dos companheiros, da sorte ou azar dos companheiros, etc. No tênis, é o cara, a bola e a Providência Divina. Mais nada. Existe o lado negativo de não ter com quem comemorar e compartilhar a alegria das vitórias; mas tem o lado positivo de não se poder botar a culpa em outras pessoas. O tênis é um exemplo do individualismo no que ele tem de mais pesado, no sentido de tomar decisões sozinho e assumir responsabilidades sozinho.

Há um filme do “Free Cinema” inglês, de Lindsay Anderson, cujo título é: The loneliness of the long-distance runner. A solidão do corredor de longa distância – o maratonista, o cara que faz “cross country”, etc. Aplica-se também ao tenista, que por 2 ou 3 horas enxerga à sua frente apenas a raquete, a bola, a rede, a quadra, o adversário. É um esporte que exige uma concentração enorme, uma enorme capacidade de não fraquejar, não se desorientar, não se afobar, e isto sem um instante sequer para descontrair. No futebol ocorre às vezes do jogador ficar quatro ou cinco minutos sem participar do jogo: tudo está acontecendo do outro lado, a bola não vem para onde ele está. No tênis, a bola está vindo na sua direção o tempo todo, horas a fio, sem parar.

Num desses torneios conquistados por Guga houve um ponto decisivo. Ele começou mal o jogo, estava perdendo, e chegou um momento em que o adversário tinha o chamado “match point”: se ganhar aquele ponto, ganha o jogo. O cara sacou, Guga defendeu, ficaram trocando bolas, e ele ganhou o ponto. Aí disputou e ganhou o ponto seguinte. E ganhou aquele “game”. Ganhou o “game” seguinte. E o outro. E o outro. Ganhou o set, e o próximo set, e foi em frente até vencer a partida. Continuou no torneio, e acabou sendo o Campeão. Mas o título inteiro dependeu daquela jogada solitária em que houve uma troca de bolas durante a qual Guga sabia que se errasse perdia o jogo e estava fora do campeonato.

O tênis é uma disputa em que o cara pode ir de 1% de chances a 99% de chances (ou vice-versa) em questão de meia-hora. É um jogo de personalidades. Disse um comentarista que o nível atual de preparação técnica é tão grande que os títulos são decididos por fatores puramente emocionais: autocontrole, concentração, calma, obstinação, persistência infatigável. Pense numa coisa parecida com a Literatura!

1322) Os piratas e os sebistas (8.6.2007)



Sou freqüentador de sebos (livrarias que vendem livros usados) há mais de meio século. Cerca de dois terços dos livros que possuo em casa foram comprados em sebos ou equivalentes (calçada, banquinhas de rua, etc.). Por que? Primeiro, pelo preço. Um livro que na livraria custa 50 reais pode ser encontrado na calçada ou no sebo por 20 ou menos. Segundo, pela escassez. Uma livraria, por mais boa vontade que tenha para com um livro de cinco anos atrás, só o mantém no balcão ou nas paredes se ele estiver vendendo bem. Se eu quero um livro que não é novidade de catálogo, é mais provável que o encontre num sebo do que numa livraria. Em terceiro lugar, por algo que faz fronteira com a escassez, mas é outra coisa: a improbabilidade. Em livrarias a gente só encontra o que foi visto pelo livreiro num catálogo, pensado, discutido, encomendado à editora. Em sebo a gente vê de tudo, principalmente bibliotecas inteiras de colecionadores que passaram a vida reunindo coisas obscuras e que, quando morrem, a viúva se livra daquilo tudo a preço de banana em menos de um mês. Para onde vai? Para o sebo.

Num sebo (ou numa calçada) encontrei algumas raridades que me orgulho de possuir: A Liga dos Planetas de Albino Coutinho, o primeiro romance interplanetário brasileiro, de 1923; uma primeira edição de A Amazônia Misteriosa de Gastão Cruls, pela qual teria pago 100 reais mas o cara me ofereceu por 1 real; uma primeira edição das Vies Imaginaires de Marcel Schwob (1896), que inspirou Borges a escrever sua História Universal da Infâmia, e que achei por 10 reais; as traduções de Edgar Poe feitas por Baudelaire em reedições da década de 1890; a primeira edição de Sagarana, de Corpo de Baile. Tudo isto a preço de banana.

Nada disto poderia ser encontrado numa Saraiva ou numa Siciliano. Nem sequer numa Travessa, Cultura ou Leonardo da Vinci. O sebo é a província do imponderável, do inesperado, do raro, do obscuro, daquilo que deixou de existir um dia mas não foi obliterado de todo. Às vezes, um exemplar encontrado num sebo depois de cinqüenta anos leva um editor a dar vida nova a um livro ignorado, transformá-lo em sucesso póstumo.

Imaginem só se as livrarias oficiais, e os escritores, começassem a fazer campanha contra a existência do sebos, chamando aquilo de pirataria. Porque um sebo não paga um centavo às editoras, não paga um centavo ao autor. Se um livro meu vende na livraria eu ganho 10% do preço pago pelo leitor; num sebo, não ganho nada. Mas nem por isso temos o direito de combatê-los. O sebo prolonga a vida útil do livro, alcança o leitor de bolso raso, atinge o leitor jovem, atinge todos aqueles que têm muita curiosidade mas pouco dinheiro. Não são concorrentes da livraria. Trabalham noutra faixa de mercado. Há livros que comprei por 5 reais num sebo, meio estragadinhos, e que depois de ler corri a comprar um exemplar novo na livraria por 30 ou 40. Por que? Porque pude arriscar, e conhecer.

1321) O paradigma indiciário (7.6.2007)




Há conceitos considerados o “sine qua non” da Ciência: exatidão, possibilidade de quantificação (reduzir tudo a números e estatísticas), previsibilidade de resultados, controle total dos processos, etc. Governos modernos e tecnocráticos, p. ex., trabalham em função disso. Ora, a predominância de tais conceitos se deve ao desenvolvimento de ciências como a Física, a Astronomia, a Química, etc., a partir do século 17. Alguns chamam a esse conjunto de conceitos “o paradigma de Galileu”, porque foi o grande experimentador italiano quem, de certo modo, deslanchou essa revolução.

Daí vem a desconfiança que os cientistas dessas áreas têm, p. ex., com as Ciências Médicas e as Ciências Sociais, cuja relação com o mundo não se reduz aos mesmos termos. (Embora tentem: os Economistas, por exemplo, são um caso à parte.) Li a transcrição parcial de um artigo de Carlos Ginsburg (em Mitos, Emblemas e Sinais, Cia. Das Letras) onde ele tenta fazer um do-in nesse ponto inflamado do conhecimento humano. Diz ele: “O verdadeiro obstáculo à aplicação do paradigma galileano era a centralidade maior ou menor do elemento individual em cada disciplina. Quanto mais os traços individuais eram considerados pertinentes, tanto mais se esvaía a possibilidade de um conhecimento científico rigoroso”.

Quer dizer – científico no outro sentido do termo. Não se pode criar um bebê como se constrói um edifício, e não se pode examinar uma pessoa doente como se examina um motor com defeito. (Como diz um médico amigo meu: “A principal diferença é que a pessoa sabe que está doente, e o motor não sabe que está defeituoso”) Tudo que envolve matéria orgânica apresenta complicações que a matéria inorgânica não tem. O que é físico e biológico é mais complexo do que o que é apenas físico. O que envolve a consciência envolve maiores complexidades. Tudo que envolve o relacionamento social é mais complexo ainda – embora, como alívio, o comportamento dos grupos sociais possa ser previsto estatisticamente, assim como pode-se prever estatisticamente o movimento coletivo das partículas sub-atômicas.

Diz Ginsburg que é necessário criar um paradigma “fundado no conhecimento científico do individual”. É o que pedem as disciplinas “indiciárias” (que incluem a medicina), onde tão importantes quanto as verdades genéricas sobre a espécie, etc. são os indícios específicos que aquele indivíduo fornece ao examinador e que caracterizam o seu caso – o qual tanto pode ser mediano e típico como pode ser extraordinariamente raro, e nem por isso menos cientificamente real. Quando nos queixamos de que o médico do nosso Plano de Saúde faz duas ou três perguntas, olha nossa língua e depois receita um antibiótico, sabemos por intuição que ele está se recusando (por negligência ou por exaustão de carga horária) a procurar o que nosso caso tem de único e específico, e que talvez seja crucial para nossa cura.

1320) A maldição da morte burra (6.6.2007)




Que sedução tem sobre nós a morte burra? A morte que não é suicídio, mas um acidente cruel e gratuito – ou procurado às cegas, como quem pisa no acelerador e fecha os olhos. Quando pequeno eu me admirava da história do almirante inglês que venceu batalhas, sobreviveu a naufrágios, e uma noite, ao voltar para casa, tropeçou, caiu com o rosto numa poça na calçada e morreu afogado. Ou com a história do sujeito que estava bêbado no apartamento, foi até a varanda e começou a urinar do alto do décimo andar, mas aí o jato líquido tocou num fio de alta tensão e ele morreu eletrocutado. Sem falar em mortes famosas como a do dramaturgo Ésquilo: ele estava numa praia onde as águias costumavam erguer tartarugas com as garras e soltá-las lá de cima sobre as pedras, para partir sua carapaça e poder devorar o recheio. Uma águia pouco observadora soltou uma tartaruga lá do alto sobre a cabeça calva do autor de Prometeu Acorrentado. (Mas, como ele próprio disse um dia, melhor morrer de repente do que sofrer eternamente)

Nos EUA foi criado o Prêmio Darwin (http://www.darwinawards.com/) para homenagear simbolicamente aqueles indivíduos que morrem de morte burra. Não me refiro a mortes involuntárias, como a de Ésquilo, mas àqueles acidentes que contam com a colaboração do acidentado, fazendo alguma enorme bobagem e perdendo a vida em conseqüência. Chama-se “Prêmio Darwin” porque os organizadores consideram que o cara que morre assim colabora para a conservação da espécie, deixando vivos apenas os indivíduos mais inteligentes do que ele. É o caso, por exemplo, do sujeito que depois de limpar um depósito de gasolina entrou nele e acendeu um fósforo para saber se tinha ficado algum restinho (e foi parar a cem metros de distância), ou do casal britânico que, certamente inspirado pela canção dos Beatles “Why don’t we do it in the road?” parou o carro no acostamento, à noite, e foi fazer sexo no meio da rodovia.

Vocês acham que ser engolidor de espadas num Circo é coisa arriscada? Mais arriscado ainda é fazer como fez um deles na Alemanha, que engoliu um guarda-chuva e por distração apertou o botão que o abria. Ou o advogado de Toronto que, para mostrar a visitantes o quanto o vidro de seu escritório era à prova de impacto, arremeteu contra ele com o ombro, estilhaçou a janela e caiu vinte andares. Tem também o casal americano que foi fazer “rappel” numa ponte por onde passa uma via-férrea: prenderam as cordas, e desceram, pendurados sobre o abismo, curtindo o panorama até que o trem veio e cortou as cordas – que estavam amarradas aos trilhos.

Morrer de um acidente ou de uma bala perdida pode acontecer com a mais precavida das pessoas. Mas existe gente que, numa mistura de imprudência, distração ou insensatez, parece procurar uma morte que jamais lhe aconteceria mesmo na mais improvável combinação de circunstâncias. Só aconteceu porque a vítima obrigou o Acaso a matá-la.



1319) Um cara que escreve bem (5.6.2007)


(François Villon)

Vi uma vez em algum artigo de revista uma frase cujo autor não recordo, mas, na falta do autor, vá a frase sozinha. Discutia-se o caráter de um certo literato, e no meio de críticas amargas ao seu perfil moral o comentarista saiu-se com esta: “Mas, vamos deixar pra lá. Um cara que escreve bem não pode ser um canalha completo”. Isto me sossegou pelo resto da vida até agora, porque eu sempre me havia deparado com este aparente paradoxo: canalhas irremediáveis que, no entanto, pintavam maravilhosamente, ou jogavam um futebol de encher as vistas, ou dirigiam filmes belíssimos, etc.

Talento e bom caráter não são sinônimos, e vou mais longe: não são coisas que tenham muito a ver uma com a outra. Se assim fosse, todo sujeito de espírito bom seria também um excelente profissional em sua atividade. Ser um artista de talento, em qualquer atividade, requer uma noção intuitiva de harmonia, equilíbrio, obediência a normas, capacidade de inovação, uma série de virtudes estéticas que, mesmo que não se estendam ao nível da Ética (que sempre é mais problemático) fazem com que pelo menos naquele terreno específico o cara demonstre virtudes. Pode ser um desorientado, um bruto, um sangue-ruim, um calhorda, mas não o é por completo. Alguma coisa nele se salva.

Quando falamos em casos assim, alguém sempre se sai com exemplos de escritores criminosos, como o poeta François Villon ou o Marquês de Sade; mas estes são casos extremos, que pelo próprio extremismo não valem como regra, e sim como exceção. A regra, no mundo literário e artístico, é o mau caráter em escala cotidiana: o poeta brilhante que dá calote em todo mundo, o romancista vigoroso que bate na mulher mais vigorosamente ainda, o cineasta que trata a equipe a pontapés, o jornalista que faz da mentira gratuita uma atividade remunerada, o roqueiro que cospe nos fãs e arrebenta quartos de hotel. Ou então é simplesmente o Gênio que é um Chato. Coisa mais freqüente do que podemos imaginar. Tudo que o cara tem de bom sai nos seus escritos, mas ninguém agüenta passar uma tarde conversando com ele.

Será que o talento redime sujeitos assim? Pelo que posso imaginar, os defeitos pessoais tendem a se esvair anos após a morte do sujeito, enquanto o seu talento, se for um talento real, vai ficando mais encorpado e mais visível. Que sabemos nós, afinal, da pessoa de Camões ou da de Michelangelo? Não mais que algumas páginas de dados biográficos. Talvez, se pudéssemos conversar com algum contemporâneo seu, ouviríamos algo como “Pelo amor de Deus, esse cara era insuportável, ninguém agüentava ele, só conseguia se manter porque as coisas dele faziam sucesso...” Do mesmo modo, fico imaginando que certos figurões intragáveis de hoje (mas talentosos) serão endeusados daqui a cem anos como se fossem anjinhos, e os pósteros comentarão entre si: “Coitado, foi tão incompreendido em vida... Realmente, era um indivíduo à frente do seu tempo”. E não terão entendido nada.

1318) A função da gíria (3.6.2007)



A favor ou contra a gíria? Eu sou a favor – dentro dos parâmetros! Apóio qualquer coisa que venha para tornar nossa relação com a língua mais rica, mais flexível. A Realidade é inesgotável, e precisamos sempre de novas maneiras de percebê-la e comentá-la. 

Volto ao tradicional exemplo dos esquimós, que têm dezenas de palavras diferentes para descrever a neve. Não é por serem desocupados ou porque são barrocos. É porque vivem cercados de neve, neve á uma coisa essencial para suas vidas, e é importante para eles distinguir dezenas de tipos diferentes.

A gíria vem muitas vezes para sacramentar a existência de uma nuance que existia na prática, era percebida por todo mundo, mas faltava uma palavra exata para ela. É a mesma coisa que na Matemática: existia um conceito que não era satisfeito pelos números naturais, porque nem era 3 nem era 4. Era mais do que 3, mas era menos do que 4. Aí chegou um gênio e inventou o 3,5. E com ele todas as nuances infinitesimais decorrentes deste gesto fundador. 

Pois na língua é a mesma coisa, e a gíria funciona como (anotem; estará nos dicionários daqui a meio século) o sistema fracionário e intersticial da nomenclatura, um sistema aberto, tipo Linux, de contribuições semânticas dos usuários.

A gíria é muitas vezes um erro voluntário para introduzir uma mutação numa palavra insuficiente para cobrir a área de significação desejada. Vou dar um exemplo de uma gíria campinense: o Pertubado (assim mesmo, sem um “R”). Todo mundo tem um amigo ou um conhecido que é descrito assim. “Sabe quem é Fulano de Tal?” “Conheço, é um pertubado que mora na Otacílio de Albuquerque”. O “pertubado” é um indivíduo encrenqueiro, difícil de lidar, pessoa problemática que acaba gerando confusão onde quer que se meta. Não é necessariamente um mau caráter, um mau sujeito. Muitas vezes é – ou seria – um cara até legal. Só não é legal porque é um pertubado.

Atenção, revisores: o detalhe está na grafia, porque se colocar a palavra gramatical, “perturbado”, estraga tudo. Tem que tirar esse segundo “R”, para distinguir a palavra nova da palavra anterior de onde deriva. 

Introduz-se um ruído, e esse ruído é, na Língua como na Literatura, a informação, a criação, a novidade. A gíria é a introdução de um erro aparente para suprir uma lacuna da língua, criando uma palavra que se encaixe com exatidão naquela categoria ainda sem nome que percebemos mas que só podíamos referir através de longas descrições, de circunlóquios.

As gírias são bem-vindas quanto aumentam nossa capacidade de expressão, e são mal-vindas quando a diminuem. (Ninguém usa dizer “mal-vindas”, não é mesmo? Pois eu uso.) 

Gírias são contribuições individuais para o todo, e seria uma pena se o surgimento de uma nova gíria cancelasse as anteriores, ou tornasse obsoleto o vernáculo tradicional. Em casos assim, a gíria seria uma perda, uma subtração à língua, um encolhimento, um sinal de decrepitude à vista.





1317) Douglas Hofstadter (2.6.2007)




Douglas Hofstadter é um dos indivíduos mais inteligentes que eu já vi. Muitos textos sobre Ciência que aparecem nesta coluna comentam assuntos extraídos dos seus livros. 

Três deles ocupam lugar de honra na minha estante : 

Godel, Escher e Bach (1979), um ensaio sobre inteligência artificial, consciência, linguagem e significação, com pontos de partida extraídos da Matemática (o Teorema de Godel), das Artes Plásticas (as gravuras de M. C. Escher) e da Música Barroca (as obras de Bach); 


Metamagical Themas (1985), uma enorme coletânea dos artigos que ele publicou durante vários anos na revista Scientific American, nos quais fala de computação, física, design, biologia, Teoria dos Números, cubo mágico, ativismo ambiental etc.; 


e Le Ton Beau de Marot (1997), em que ele retraduz compulsivamente um curto poema francês do século 19 e desafia outras pessoas a fazerem o mesmo, o que redunda em centenas de traduções, paródias e pastiches, além de longas elucubrações sobre linguagem, poesia e semiótica.



Uma preocupação de Hofstadter é definir o que é consciência: como nosso pensamento elabora e manipula conceitos, e como isto pode ser transmitido de uma mente para outra, de um idioma para outro, de uma linguagem-de-computador para outra, e assim por diante. É fascinante vê-lo comparar a linguagem das valsas de Chopin com a linguagem das fugas de Bach, e mostrar as estruturas expressivas que existem numa coisa tão artificial e abstrata quanto a música. 

Igualmente provocativo é ver suas discussões sobre a maneira como projetamos significado num sinal gráfico (a escrita), num gesto, numa expressão facial, etc. Lendo seus textos, percebemos que a mente humana é uma máquina de produzir significado, de traduzir o novo e o desconhecido em termos do que é velho e conhecido, e ao mesmo tempo de produzir idéias e formas totalmente novas nos contextos e nas circunstâncias mais inesperadas.

Hofstadter deu uma entrevista recente a Jorge Pontual no canal GloboNews, da GloboSat. Perguntado sobre o que diferencia a mente humana da mente dos animais, ele citou um exemplo que lhe ocorrera poucos dias antes: de madrugada, numa loja de conveniência, ele viu o caixa correr atrás de uma freguesa e devolver-lhe uma nota de 10 dólares que ela esquecera de pegar. 

Ele compara isto com a inacreditável capacidade de nosso cérebro para gerar conceitos abstratos, e dá como exemplo algo como: “Cancelamento de assinatura de revista de sinopses de séries televisivas”, algo que intuitivamente entendemos do que se trata, mas que para existir consiste num empilhamento de incontáveis níveis de fatos sociais e de abstrações resultantes destes fatos: “O que é TV? O que é série? O que é revista? O que é assinatura?”. 

Comparando nossa imensa capacidade intelectual e nosso impulso moral de tratar os outros como gostaríamos de ser tratados (devolvendo os 10 dólares), Hofstadter nos faz recuperar a nossa fé no futuro da espécie humana.