terça-feira, 13 de outubro de 2009

1302) A postulação da realidade (16.5.2007)




Escrever (criar qualquer obra de arte narrativa) é selecionar, reduzir, filtrar, escolher o pouco que precisa ser dito, o muito que basta ser sugerido, e o incalculável que deve ser deixado de fora. 

Em seu artigo de 1931 “A postulação da realidade” (em Discussão), Jorge Luís Borges examina e cita trechos de algumas narrativas clássicas, tentando descobrir como estes autores conseguem transmitir, com economia de meios, a impressão de um ambiente complexo ou de uma história mais ampla.

Borges define (e exemplifica) os três procedimentos que considera mais importantes (e que viria a aplicar em sua obra literária posterior). 

O primeiro consiste em “uma notificação geral dos fatos que importam”. Este é o que ele menos comenta, e eu o glosaria assim: sabemos mais da história que contamos do que o leitor, e precisamos fornecer a este um mínimo de informações para que a história possa ser fruída por ele, aproveitando cada parágrafo, cada frase nova que o autor lhe fornece. 

Seja um romance de ficção científica, de crise conjugal, de cangaço, de infância feliz, de aventuras marítimas, sempre há uma porção de coisas sobre as quais ele precisa ter certeza, para poder assimilar o resto. Saber o quanto dizer ao leitor é um desafio ao qual o autor não pode fugir.

O segundo procedimento é “imaginar uma realidade mais complexa do que a declarada ao leitor, e referir suas derivações e efeitos”. 

Este vem para suprir as lacunas inevitáveis do primeiro. Suponhamos uma história sertaneja, entre vaqueiros, nos confins do fim do mundo. Aquilo podia estar ocorrendo em 1920, mas na terceira página o personagem ergue os olhos e vê um avião cruzando o céu. Isto ambienta a história num nicho de tempo mais nítido, mais demarcado, e ao mesmo tempo sugere todo o restante de um mundo que fica fora daquela história. 

Pode ser algo mais indireto, como quando Borges num conto mostra um cara chegando numa casa e diz: “Uma mulher cansada abriu por fim a porta”. Entende-se, com este “por fim”, que o cara ficou algum tempo batendo e chamando.

O terceiro procedimento é parente próximo deste, e consiste em exercer “a invenção circunstancial”. Mostrar um pequeno detalhe não-essencial mas que pela surpresa de sua aparição, e pela vividez com que é apresentado, torna mais real o contexto que o recebe. 

Borges se refere a “uma casa rosada que em outros tempos havia sido carmesim”, indicando sua antiguidade. Ao descrever outra casa, situada num descampado, diz (em “O Morto” e também em “O Congresso”) que “o primeiro sol e o último a golpeiam”. 

Detalhes assim correm o risco de incorrer em clichês, o que é previsto por ele em “O encontro”, quando o narrador entra numa sala onde homens bebem e jogam baralho: “Era evidente que todos estavam bêbados. Não sei se havia no chão duas ou três garrafas para lá jogadas ou se o abuso do cinema me sugere essa falsa recordação”. Pequenos detalhes que tornam mais verossímil o irreal.






1301) Reinaldo é nosso Rei (15.5.2007)



Quando ele apareceu no Pasquim, seus cartuns eram à base de texto, de piadas verbais, com bonequinhos resolvidos em poucos traços. Na época era costume adivinhar influências; eu dizia que o estilo de Reinaldo era uma imitação do de Dave Berg, da Mad. Os amigos retrucavam: “Tá maluco, não tem nada a ver”. De fato, o desenho não tinha nada a ver, mas o humor dos dois estava todo nos baluns, que em vez de apontar para personagens bem poderiam estar apontando para palavras: “Marido”, “Esposa”, “Guarda de Trânsito”.

O tempo passou e Reinaldo foi evoluindo, ou terá sido a minha percepção das coisas que se refinou. Saiu do Pasquim e fundou, com Hubert e Cláudio Paiva, o Planeta Diário – que os pernambucanos, bairristas como eles só, dizem ser uma simples imitação do recifense Papa Figo de Bione e Zé Teles (e pode até ser, visto que Teles é de Campina Grande). Depois, juntaram-se à turma de Bussunda, Marcelo Madureira “et caterva”, e criaram o Casseta & Planeta que hoje pontifica na Rede Globo. Tornaram-se milionários, e hoje todos têm contas bancárias nas Ilhas Cayman e vivem em condomínios fechados na Barra da Tijuca. Reinaldo, por exemplo, mora numa mansão desenhada por Steinberg. Diversificou suas atividades, que hoje incluem vestir-se de mulher diante de 50 milhões de telespectadores e tocar numa banda de jazz, embora esta última possa ser uma simples desculpa para que ele possa sair de casa à noite e retornar ao amanhecer exibindo leves traços de descoordenação motora.

A Teoria da Evolução pode ser confirmada cientificamente no livro Desenhos de Humor (Rio, Desiderata, 2007), que reúne em pouco mais de 120 páginas uma amostra de como a produção do desenhista se sofisticou tecnicamente. Alguns trabalhos são do tempo do Pasquim: aqueles baluns com vários hectares de extensão e texto em letras de imprensa que parecem ter sido traçadas com uma caneta-tinteiro antiga, daquelas Compactor ou Parker 51. A variedade de estilos é surpreendente, quando os desenhos são vistos de uma assentada só, comprimidos num espaço restrito (o único defeito do livro é não ter umas 600 páginas). Há inclusive uma seção sobre jazz, onde o autor afirma ser o único cartunista de jazz do país. Dois policiais contemplam um sujeito amarrado e de olhos vendados, sob uma lâmpada acesa pendurada no teto; um deles empunha um contrabaixo acústico e diz: “Chefe, acho que agora ele fala”. O outro brutamontes concorda: “É... Todo mundo começa a falar na hora do solo de contrabaixo”.

É um clichê dizer que o Brasil é “top de linha mundial” em três coisas: futebol, música popular e novelas de TV. A estas três categorias poderíamos juntar “humor gráfico”, ou que nome se queira dar ao que faz essa turma do verbo e do traço. Desde que Millôr, Appe e Borjalo começaram a me abrir os olhos no Cruzeiro e na Manchete Esportiva, nunca mais parei de tirar meu chapéu de linhas pontilhadas para esta galera cuja profissão é correr o risco.