quinta-feira, 17 de setembro de 2009

1267) As capas de Rosa (5.4.2007)



Estive folheando edições antigas dos livros de Guimarães Rosa em busca de ilustrações para um trabalho, e me dei conta do quanto a obra do escritor mineiro foi graficamente malbaratada nos últimos anos. Desde logo quero fazer a ressalva de que em 2006, ano do cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, e do sessentenário de Sagarana, a editora Nova Fronteira produziu edições de luxo caprichadíssimas, que ainda não adquiri por estar esperando um câmbio favorável. Espero que signifiquem uma espécie de “mea culpa” pelo empobrecimento gráfico que a Editora impôs à obra, depois que adquiriu seus direitos (que pertenciam à José Olympio).

As primeiras edições da Rosa, pela José Olympio, eram cheias de ilustrações feitas por artistas gráficos como Poty ou Luís Jardim, que trabalhavam em parceria com o autor. Desenhista hábil, Rosa fazia esboços das figuras que tinha em mente e as repassava para os artistas. Dava atenção especial a certos símbolos meio cabalísticos, meio astrológicos, que ele não explicava – apenas encomendava, e os artistas reproduziam. Em Primeiras Estórias, Rosa bolou um esquema que, pelo que eu me lembre, não tem similar na nossa literatura: o índice ilustrado, que aparece nas orelhas e no interior do livro. Cada um dos 21 contos do livro recebe uma ilustração horizontal que consta de uma série de pequenas figuras de pessoas animais, paisagens, etc., reproduzindo os aspectos distintivos de cada conto. Variantes destas ilustrações aparecem na capa e na contracapa, uma para cada um dos contos.

Rosa gostava de letras gregas, de símbolos matemáticos: o Grande Sertão: Veredas não se encerra pela palavra “FIM”, mas pelo símbolo gráfico do Infinito, o conhecido “oito deitado”. Tutaméia não tem ilustrações internas, a não ser algumas vinhetas gráficas padronizadas, mas sua capa é feita no mesmo espírito de Primeiras Estórias: uma colagem de pequenas figuras que, com alguma argúcia detetivesca, podemos ir aos poucos identificando como relativas aos contos do livro.

Depois que a obra de Rosa foi para a Nova Fronteira, o nível caiu assustadoramente. Preocupada em torná-la mais acessível aos leitores jovens (aos quais, invariavelmente, se atribui uma combinação de desinformação e amor ao clichê), os livros de Rosa adquiriram uma programação gráfica padronizada: capa branca, título e nome centralizados, e na parte superior uma foto colorida da paisagem sertaneja, o que faz os livros ficarem parecidos com um Guia 4 Rodas. A família, ao que parece, não reclamou, porque as vendas aumentaram. Mas se você achar num sebo, caro leitor, exemplares das edições da José Olympio, com as ilustrações de Poty ou Luís Jardim, entesoure-as. Elas representam pontos altos de nossa inventividade literária na direção de uma integração real entre texto e imagem, algo que poucos escritores tentaram – somente Rosa, Suassuna, Valêncio Xavier, e meia dúzia de outros.

1266) Grandes árvores do mundo (4.4.2007)


(Ténéré, 1961)

Sou um admirador da Natureza, mais com olhos de cientista do que de poeta. “Que belo crepúsculo!” exclamam as pessoas, com os olhos marejados de romantismo; e eu concordo. Como não ficar comovido? Fico pensando na quantidade de refrações e de sub-refrações que aqueles raios luminosos estão realizando entre camadas sucessivas de nuvens, de vapor rarefeito, de poluição atmosférica. É impossível que aquela combinação peculiar de obstáculos ópticos ocorra outra vez. Aquele crepúsculo que estou vendo jamais se repetirá.

O saite “As Dez Árvores Mais Magníficas do Mundo” (http://www.neatorama.com/2007/03/21/10-most-magnificent-trees-in-the-world/) produz uma sensação parecida. Se admiramos obras da engenharia (pirâmides, muralhas, templos) como não admirar uma coisa bela que brotou sozinha, sem prancheta, sem mestre-de-obras, sem licitação pública? Neste saite vemos fotografias de árvores como a sequóia “General Sherman” na Califórnia, a árvore mais volumosa do mundo (cerca de 1.500 metros cúbicos, 6 mil toneladas). Curiosamente, mais volumosa do que ela parece ser (mas não é, por não ser tão alta) a “Árbol del Tule”, um cipreste em Oaxaca (México) que parece (desculpem-me o antropocentrismo) um projeto a quatro mãos entre Gaudí e Santiago Calatrava. Também curioso é o “Gigante Trêmulo do Utah”, um único organismo vegetal composto de 47 mil caules muito finos que se espalham por 107 acres de terra; a foto em preto-e-branco, sob a neve, é de emoldurar e pendurar na parede.

Está aqui a famosa sequóia com uma abertura na base de seu tronco por onde passa um automóvel (na verdade, há quatro árvores assim na Califórnia). Tem a árvore-igreja de Allouville-Bellefosse, na França, em que uma capela foi construída num carvalho oco em 1669. A árvore foi morrendo aos poucos e as partes mortas sendo substituídas por próteses de madeira, a tal ponto que hoje não se sabe mais o que é natural ou artificial.

Não há limite para os prodígios da Natureza – nem para a estupidez humana. Em 1964 um estudante estava extraindo amostras de uma árvore, nos EUA, quando a sua broca quebrou dentro do tronco. Ele pediu autorização ao Serviço Florestal para cortar a árvore e recuperar a peça. Fê-lo. E aí descobriram, pelo exame dos anéis internos do tronco, que a árvore tinha 5 mil anos, e era provavelmente, naquela época, a árvore mais velha do mundo. E há o caso da “Árvore Solitária de Ténéré”, uma acácia situada no Saara nigeriano, que sobrevivia solitária na areia (a foto é impressionante) graças a raízes com 36 metros de extensão. Era a única árvore numa área de 400 km, e possuía dois troncos paralelos. Em 1959, um deles foi destruído pela colisão de um veículo, deixando apenas um toco; em 1973, um motorista líbio, embriagado, derrubou o tronco restante, que foi levado para o Museu Nacional da Nigéria, e substituído no local de origem por uma escultura em metal. Não precisa muito mais para desmoralizar a Humanidade.

1265) Do cangaceiro ao traficante (3.4.2007)



Vi na TV uma entrevista com MV Bill, “rapper” que realizou documentários em vídeo como Falcão: Meninos do Tráfico, o qual foi exibido no “Fantástico” e provocou grande polêmica. A certa altura, Bill tocou no problema do que ele chama de “invisibilidade” do adolescente negro e pobre. Numa época em que os garotos começam a tornar-se homens, a definir sua personalidade, eles percebem que não existem. Ninguém olha para eles, ninguém se dá conta de sua presença – porque eles são negros e pobres. Só perdem essa invisibilidade (segundo Bill) quando pegam numa arma Um sujeito com um arma na mão todo mundo enxerga, todo mundo respeita.

Isto me lembrou um trecho do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, no Folheto LXXIX, “O Emissário do Cordão Encarnado”, no qual Quaderna presencia o debate político-ideológico entre Adalberto Coura, o esquerdista romântico, e Arésio Garcia-Barretto, o individualista cínico e violento. Diz Adalberto que os rapazes sertanejos entram para o Cangaço sabendo que irão morrer muito cedo, mas achando que é preferível uma vida intensa com uma morte prematura do que uma vida longa mas cheia de humilhações, e sem sentido.

Diz Adalberto: “Por isso, não se importa de viver perseguido como um cachorro mordido. Sabe que esse é o preço que terá que pagar para poder possuir mulheres com as quais, antes, não poderia nem sonhar, as filhas de gente poderosa, lindas e orgulhosas, que passeavam os olhos por ele sem nem ao menos o avistarem, como se ele não existisse, e que agora o vêem, com espanto, terror e perturbação, vestido com sua Armadura de couro e com as insígnias de prata de sua realeza, aparecendo diante delas não mais como um ser ignorado e desprezado, mas como o temeroso Senhor de sua honra e de seu destino, o Emissário de uma vida cruel, selvagem, errante e guerreira, fascinadora e terrificante”.

Não pode haver descrição melhor para o que acontece com esses garotos de Morro que aos dezesseis anos já estão cobertos de colares de ouro e roupas importadas, com duas pistolas enfiadas no cinto e um AR-15 a tiracolo, desfilando no interior da favela como se fossem Reis. Sabem que vão viver pouco, mas não ligam. Estão vivendo muito.

Aqui no Nordeste celebramos e endeusamos os Cangaceiros porque eles são para nós os símbolos de uma vida livre e guerreira, de uma ruptura e de um inconformismo que, mesmo não tendo pretensões revolucionárias de mudar a sociedade (que algumas obras de arte lhes atribuem, projetando neles uma ideologia que é só do autor), romperam com a vida de servilismo e exploração, revoltaram-se contra um destino que lhes era imposto. O que admiramos neles não são os atos que praticam, é a coragem de terem deixado de praticar o que praticavam antes, e que, apesar de humilhante, era mais seguro. Como podemos, então, estranhar que algumas pessoas das favelas (não todas, nem muitas) façam desses novos cangaceiros os seus ídolos?